Funcionários de secretaria de segurança alimentar são exonerados sem receber satisfações, na carona do impasse envolvendo o Consea
Após deixar o destino do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) à deriva, a gestão do presidente Jair Bolsonaro desarticula outro setor importante do país para o combate à fome. Funcionários da antiga Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sesan), que havia deixado de existir depois da criação do Ministério da Cidadania, foram exonerados nos primeiros dias do novo governo federal. E uma nova leva de demissões é esperada.
Pelo menos sete servidores que eram da Sesan, entre quadros concursados — que foram realocados — e comissionados, terminaram, conforme mostra o Diário Oficial da União (DOU), afastados pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, nas últimas semanas. Essas pessoas eram responsáveis por conduzir os programas de segurança alimentar e nutricional do governo federal.
Alguns deles, ouvidos sob sigilo pelo Joio, falam em perseguição. Os desligamentos acontecem sem aviso prévio e sem comunicar os chefes diretamente responsáveis pelos demitidos. As decisões, dizem, estão sendo tomadas de forma unilateral pelo ministro Osmar Terra. E há dois casos para lá de emblemáticos que constam no DOU. Uma funcionária foi exonerada de forma retroativa, enquanto outra teve a demissão publicada por duas vezes no Diário Oficial.
A pesquisadora Carmen Priscila Bocchi, ex-coordenadora de Monitoramento das Ações de Segurança Alimentar e Nutricional, exercia as suas funções, quando soube no dia 8 de fevereiro, por meio do DOU, que havia sido exonerada em 30 de janeiro. No hiato entre as duas datas, ela seguiu trabalhando normalmente e não foi informada de sua situação. Seus chefes tampouco sabiam que ela seria desligada.
A nutricionista Kathleen Sousa Oliveira Machado, ex-coordenadora-geral de Equipamentos Públicos de Segurança Alimentar e Nutricional, por sua vez, teve a demissão anunciada em duas datas diferentes. Primeiro, em 29 de janeiro. Depois, em 8 de fevereiro.
Além delas, nomes como o da advogada Lara Menezes Bezerra Sampaio, ex-coordenadora de Fomento à Produção para o Autoconsumo, e o da socióloga Lilian Rahal, última servidora a ocupar o posto de secretária nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, foram desligados, como mostra o Diário Oficial. Ainda não foram definidos os substitutos de todas as funções, e especula-se que os cargos vazios podem ser extintos.
Essa dança das cadeiras afasta alguns dos quadros do funcionalismo público que foram fundamentais para organizar iniciativas de combate à fome e à desnutrição no Brasil. A Sesan — um dos pilares do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional — surgiu vinculada à pasta de Desenvolvimento Agrário e depois foi incorporada pelo Ministério do Desenvolvimento Social na gestão Temer, mas terminou extinta pela Medida Provisória 870, assinada em 1º de janeiro pelo presidente Bolsonaro.
As medidas acompanham a portaria publicada no DOU na última quarta-feira (6), com um despacho do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que nomeou um servidor sem experiência para assumir a Secretaria de Inclusão Produtiva e Desenvolvimento, herdeira das atribuições da antiga Sesan. O cearense José Roberto Carlos Cavalcante, ex-coordenador-geral de convênios do Ministério do Turismo, será o responsável por chefiar o setor.
A mudança no perfil da equipe levanta dúvidas quanto à continuidade das ações desempenhadas pelo órgão. Os funcionários dele eram peça-chave para movimentar as ações de combate à fome da máquina pública nos três níveis de governo. Também eram importantes para aproximar essas políticas das demandas da sociedade civil.
Neste ano, os servidores iniciariam a reformulação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e seriam responsáveis pela organização da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nuticional, reunindo atores sociais e políticos de todo o Brasil para discutir ações de combate à fome e à desnutrição.
Tal incerteza lembra algo importante: a Sesan conduzia uma agenda de articulação com o terceiro setor e entes governamentais, mantendo certa autonomia. Isso é, quando os caras da secretaria entravam em jogo, não se pensava em uma ação que favoreceria o governo X ou Y, mas se tomavam decisões duradouras, que se tornariam, mais tarde, políticas de Estado — a exemplo do que aconteceu com o Bolsa Família.
A secretaria articulava a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), um fórum de formulação de políticas públicas intersetoriais, capaz de reunir vários ministérios, secretarias e autarquias. Além disso, a Sesan era a interlocutora da União com os órgãos de nível estadual e municipal responsáveis pelo combate à fome e à desnutrição.
Os servidores exonerados ou ameçados de deixar a área foram alguns dos responsáveis por levar o Brasil a sair, em 2014, do Mapa da Fome, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Trata-se de uma relação onde estão os países que têm 5% ou mais da população ingerindo uma quantidade de calorias menor que a dos patamares considerados saudáveis. Na prática, uma nação fora dessa lista pode se considerar um território livre da fome —algo que, no entanto, periga mudar.
Os funcionários da Sesan, também, dirigiam políticas de fomento à agricultura e de distribuição de comida, como o Programa Nacional de Aquisição de Alimentos, previsto na última edição da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Eles ainda tinham papel central nas iniciativas de combate à seca, coordenando, entre outros, o Programa de Cisternas do governo federal.
Nos corredores do Ministério da Cidadania, ventila-se que a mudança dos quadros da secretaria não deve afetar essas políticas de uma hora para outra, mas pode, de um lado, fazer com que suas agendas fiquem desatualizadas aos poucos; de outro, o troca-troca deve retirar o caráter de articulação da pasta, afastado a autarquia que assumiu as funções da Sesan de outras entidades públicas e de grupos do terceiro setor.
Na visão de pessoas que acompanham o caso, o rumo que as ações da extinta Sesan deve tomar dependerá do destino do Consea, que segue em um impasse sobre a sua continuidade ou não. Caso o conselho seja recriado por meio de pressão no Legislativo, a agenda de segurança alimentar e nutricional deve ganhar força. Em caso contrário, entretanto, o futuro é nebuloso para as políticas da área.
O Joio questionou o o Ministério da Cidadania sobre a exoneração dos funcionários e sobre os cargos que podem ser extintos. Também requisitou entrevista com Carlos Cavalcanti por meio da assessoria de imprensa da pasta, mas não recebeu retorno até a publicação desta reportagem. Tentamos, ainda, contato com o superior dele, o secretário de Desenvolvimento Social, Lelo Coimbra. Até o momento, não houve, porém, retorno de nenhum dos pedidos. Este texto será atualizado, em caso de resposta.
O Consea à deriva
Os ataques do governo às políticas de segurança alimentar e nutricional não são de primeira hora. Assinada logo no primeiro dia de mandato, a Medida Provisória 870 extinguiu o Consea, principal canal da sociedade civil para o diálogo no nível federal em relação às políticas públicas voltadas para a segurança alimentar e nutricional. Mas houve um recuo, e o órgão se tornou argumento de roteiro para uma novela sem fim: até agora, não se sabe bem se o conselho deixou de existir ou se terá um novo desenho, em outro órgão de governo.
Entre as idas e vindas de Bolsonaro, a última decisão é a de que o destino do Consea seria de responsabilidade do Ministério da Cidadania, que, até o momento, só deixou claro que tem um abacaxi em mãos e não sabe o que fazer com ele. Não houve, desde o início do ano, uma resposta mais contundente sobre o futuro.
“O Consea, bem como os demais conselhos vinculados à Presidência da República, foi extinto. Foram mantidas todas as competências que havia nos conselhos, mas agora em outros órgãos. A partir dessa forma de organização, a entrega governamental se tornará mais célere”, afirmou em nota o Ministério da Cidadania chefiado por Osmar Terra, que assumiu as atribuições da política de segurança alimentar e nutricional no governo.
O Ministério da Cidadania, no entanto, não explicou onde foram parar os conselheiros, quem exercerá as funções que cabiam a eles, quem nomeará essas pessoas, como será exercido o controle da sociedade sobre essas atividades, quem apresentará as prioridades nacionais em termos de segurança alimentar e nutricional e quem organizará as conferências setoriais.
A procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, do Ministério Público Federal (MPF), enviou, em 17 de janeiro, um ofício questionando o Ministério da Cidadania sobre o que seria feito com o Consea. O documento estabelecia 48 horas corridas para resposta, e o que veio foi o mais puro silêncio. Em 28 de janeiro, onze dias depois, o Ministério da Cidadania solicitou extensão do prazo para o envio da resposta em cinco dias úteis. O pedido foi aceito pelo MPF.
O novo prazo esgotou na última segunda-feira (4). E o retorno foi quase o mesmo que nada. Abre aspas, para a nota enviada pelo Ministério Público ao Joio: “O Ministério da Cidadania encaminhou resposta afirmando que a solicitação de informações deveria ser feita diretamente à Presidência da República, uma vez que tratava-se de ato expedido pelo chefe do Poder Executivo.”
Nos bastidores, deputados federais articulam com colegas de Congresso uma emenda para a recriação do Consea durante a votação da Medida Provisória 870. A previsão é de que a MP seja levada ao plenário da Casa nos próximos dias. No entanto, não se sabe de iniciativas por parte do governo federal.
Para um presidente como Bolsonaro, que diz realizar uma espécie de “democracia direta”, o impasse sobre o conselho soa contraditório. O órgão tinha dois terços dos integrantes indicados pela sociedade e garantia uma interlocução rara com as populações mais vulneráveis em termos de segurança alimentar e nutricional.
Ao fim do Consea se somam o esvaziamento das funções da Funai, responsável pela política em relação aos povos indígenas, e uma enorme incerteza no Incra, o encarregado pela reforma agrária no território nacional.