Em documento ao Congresso, procuradora Deborah Duprat aponta ilegalidades na medida provisória da posse de Jair Bolsonaro
A procuradora federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF), Deborah Duprat, declarou na última terça-feira (19), em Brasília, que a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) é inconstitucional. Um dos mais importantes setores de combate à fome e à desnutrição ligado ao governo federal no Brasil, o Consea deixou de existir após a publicação da Medida Provisória (MP) 870/2019, primeira depois da posse do presidente Jair Bolsonaro, em 1º de janeiro. A priori, o órgão, antes ligado à Presidência da República, havia sido transferido para o Ministério da Cidadania, que não fez nada para efetivá-lo, ou seja, na prática, deixou de existir.
Duprat também recomendou a reabertura imediata do conselho e requisitou à Procuradoria-Geral da República, sob o comando de Raquel Dodge, que ingresse no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a inconstitucionalidade dos artigos sobre o Consea na MP.
Em uma nota técnica enviada ao Congresso Nacional, ela se manifestou dizendo que a medida provisória fere princípios da ordem jurídica — o Legislativo deve votar o texto da MP nas próximas semanas e há parlamentares atuando para tentar reabrir o colegiado. Segundo a procuradora, a extinção do Consea desorganiza por completo o sistema previsto na Lei 11.346/2006, que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) e fomentou algumas das principais ações de combate à fome. Parte dessas iniciativas se tornaram referência internacional e fizeram o país avançar no enfrentamento da pobreza e da miséria.
A Sisan, para seu funcionamento, se sustentava em três pilares: a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN) e o Consea, que trabalhavam conjuntamente. “A ausência de qualquer dessas instâncias retira a funcionalidade dos demais, visto que o governo federal não substituiu o conselho por qualquer outro órgão”, declarou a representante do MPF.
Além disso, a procuradora afirmou que o Consea é reconhecido mundialmente por ter sido um dos principais setores, dentro do governo federal, a fazer com que o Brasil saísse, em 2014, do Mapa da Fome, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Trata-se de uma relação onde estão os países que têm 5% ou mais da população ingerindo uma quantidade de calorias menor que a dos patamares considerados saudáveis. Na prática, uma nação fora dessa lista pode se considerar um território quase livre da fome.
“O desmonte dessa estrutura, se já impensável em tempos de bonança, mais impacta o combate à fome e à miséria em um cenário de baixo investimento público nas políticas pertinentes”, acrescentou a integrante do MPF. Ela lembrou que a pobreza e a miséria voltaram a crescer no país e que é preciso garantir a existência de instâncias no governo federal preparadas para lidar com este problema. Segundo dados do IBGE, entre 2014 e 2017, o número de miseráveis no Brasil saltou de cerca de 5,2 milhões para 11,8 milhões.
Na nota técnica, ela sugere recomendações aos congressistas para que estes peçam a recriação do Consea nas emendas à medida provisória. O documento foi enviado para a comissão mista do Congresso, com deputados e senadores, responsável por analisar a MP 870/2019. Apesar de, por enquanto, a comissão não estar com todos os titulares definidos, a procuradora dos Direitos do Cidadão pede celeridade ao processo. “A fome e a miséria têm pressa, não podem esperar que alguma mente engenhosa, por capricho, proponha algo em substituição àquilo que funcionava, mas que tem o selo político adversário.”
Ação Direta de Inconstitucionalidade
Também na terça (19), Duprat requisitou à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que ingresse no STF com uma ação direta de inconstitucionalidade contra o artigo referente à extinção do Consea na medida provisória. Para a responsável do MPF pela área de direitos do cidadão, o texto da MP fere a Constituição Federal nos artigos 3º, sobre erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, e 6º, que inclui a alimentação como um direito social.
No pedido, Duprat pede que o Supremo emita uma decisão liminar: “Considerando que o tema tratado nessa representação requer urgência, por envolver as necessidades mais elementares de qualquer ser humano, postula também pedido cautelar, para suspensão imediata dos efeitos do dispositivo impugnado.”
Extinguir o Consea, de acordo com a procuradora dos Direitos do Cidadão, seria o mesmo que provocar uma situação de retrocesso social, algo proibido constitucionalmente. “O princípio do não retrocesso social visa à proteção de direitos sociais concretizados por normas anteriores contra medidas regressivas legislativas e atos governamentais posteriores”, ela afirmou.
Além disso, a integrante do MPF citou jurisprudência do STF que veta a subtrair direitos já adquiridos pela população brasileira. A formulação do raciocínio é do decano da Corte, o ministro Celso de Mello, citado na peça: “O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive (…) o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas,também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.”
Entenda o caso
O Consea funcionava como um órgão consultivo ligado à Presidência da República. Entre suas atribuições, o conselho fazia o controle social e abria espaço para a participação da sociedade na formulação, monitoramento e avaliação de política públicas voltadas a promover a segurança alimentar e nutricional. Era um dos três pilares do Sisan, que se voltava a promover no Brasil o direito humano pela alimentação adequada e saudável.
Ele se diferenciava de outras autarquias do governo federal por ser composto em dois terços por representantes da sociedade civil e em um terço por integrantes governamentais. Além disso, era presidido por um representante da sociedade civil, indicado pelos outros conselheiros e chancelado pela Presidência da República.
Competia ao colegiado propor à Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), um fórum intersetorial do governo para formular políticas públicas, as diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional com base no que era discutido nas Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional.
Em 1º de janeiro de 2019, a medida provisória da posse do presidente Jair Bolsonaro suprimiu trechos da Lei 11.346/2006, que dita o funcionamento do Consea, criando um impasse. Oficialmente, o colegiado passaria a ser parte do Ministério da Cidadania, que não encaminhou a sua regularização. Após questionamentos à pasta, o MPF declarou a inconstitucionalidade da extinção do conselho.
Abaixo, veja a linha do tempo com um resumo da história do Consea:
- 1993: Foi instituído por Itamar Franco como órgão consultivo da Presidência da República.
- 1995: Deixou de existir no início do governo Fernando Henrique Cardoso, que o substituiu pelo Programa Comunidade Solidária.
- 28 de maio de 2003: Foi reestabelecido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
- 2006: Promulgação da Lei 11.346 que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, integrando o Consea.
- 2009: O então relator especial sobre o Direito à Alimentação da Organização das Nações Unidas, Olivier De Schutter, elogiou a atuação do Consea no combate à fome e promoção da segurança alimentar e nutricional.
- 2010: Após atuação dos integrantes do Consea, o direito à alimentação foi incluído como direito social na Constituição.
- 2014: As ações do Sisan, e do Consea, levam o Brasil a deixar o Mapa da Fome, da FAO.
- 2017: Elisabetta Recine assume como presidenta do Consea, cargo que iria ocupar até o final de 2019.
- 1º de janeiro de 2019: Recém-empossado, o presidente Jair Bolsonaro revoga na medida provisória 870 trechos da lei que prevê a composição do Consea.
- 1º de janeiro de 2019: As atribuições do Consea são transferidas para o Ministério da Cidadania, mas a troca é feita de forma pouco clara, criando um impasse.
- 17 de janeiro de 2019: A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do MPF, questiona o Ministério da Cidadania sobre qual a situação do Consea, dando dois dias para resposta.
- 28 de janeiro de 2019: 11 dias depois, o Ministério da Cidadania solicitou extensão do prazo para o envio da resposta em cinco dias úteis.
- 4 de fevereiro de 2019: O Ministério da Cidadania responde ao MPF dizendo que encaminhe o questionamento à Presidência da República, por se tratar de ato do chefe do Poder Executivo.
- 19 de fevereiro de 2019: A procuradora Deborah Duprat afirma que a extinção do Consea é inconstitucional, enviando nota técnica ao Congresso, e solicita abertura de ação no Supremo.