Legislativo recebe mais de 60 propostas para recriar conselho de segurança alimentar e Ministério Público avança para barrar extinção. Governo já recuou em outros temas
Enquanto o presidente Jair Bolsonaro recua mais uma vez, após afirmar na última segunda-feira (1º) que desistiu de transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, o governo federal segue sem planos públicos para o futuro da segurança alimentar e nutricional no Brasil.
O Ministério da Cidadania, criado em janeiro e herdeiro das atribuições do Ministério do Desenvolvimento Social, não apresentou qualquer medida que reorganize a atuação dos órgãos federais, abalada pelo fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), medida adotada já no primeiro dia da nova gestão.
Enquanto isso, avançam duas frentes que podem recriar o Consea. No Poder Legislativo, a comissão mista que irá votar a medida provisória responsável por extinguir o Consea recebeu 66 emendas que versam sobre a reabertura, em um total de 541 propostas. De outro lado, o Ministério Público Federal (MPF) prepara uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), reclamando a inconstitucionalidade da extinção do órgão colegiado.
Um dos mais importantes setores no governo federal para o combate à fome e à desnutrição, o Consea foi extinto pela Medida Provisória (MP) 870, primeira após a posse de Bolsonaro, em 1º de janeiro. O colegiado, de caráter consultivo e responsável por formular políticas públicas de segurança alimentar e nutricional no país, perdeu atribuições, estrutura e foi jogado em um limpo que o inviabilizou. No texto da MP, três artigos o suprimem. As atribuições seriam destinadas ao recém-criado Ministério da Cidadania, que nada fez até o momento.
No fechar das portas, porém, entidades da sociedade civil e ex-integrantes do conselho passaram a reivindicar a reabertura. Após procurarem deputados e senadores e acionarem o MPF, eles conseguiram articular duas frentes que podem devolver o Consea à rota. A gestão Bolsonaro se aproxima de completar 100 dias de tormenta e as iniciativas no Legislativo e no Ministério Público remam em ritmo vagaroso, mas podem representar mais uma derrota do governo e a sua chamada “nova política”.
No Legislativo, a comissão mista da MP 870 ainda não iniciou os trabalhos, mas conta com 12% das propostas pedindo a recriação do conselho. O ritmo se deve às diferenças entre a data da posse do Executivo, em janeiro, e a da posse dos parlamentares, em fevereiro, bem como ao calendário deste ano, já que a agenda de atividades da Casa só começou, na prática, depois do Carnaval. No momento, deputados e senadores ainda estão votando medidas provisórias oriundas do governo Michel Temer (2016-2018).
O regimento do Congresso estabelece que medidas provisórias devem ser apreciadas em até 45 dias desde a publicação, porém há uma brecha nas regras que permite postergar. O prazo inicial de vigência de uma MP é de 60 dias, mas pode ser prorrogado por 60, como no caso da MP 870. Não existe algum tipo de sanção quando são descumpridos, então, é comum que certas votações tenham o prazo dilatado.
Como esses procedimentos dependem de articulação entre parlamentares, pressão da sociedade e da correlação de forças políticas, há, no entanto, uma forte expectativa que a comissão mista entre logo em funcionamento. Nos bastidores, parlamentares afirmam que as idas e vindas do Executivo tornam o dia a dia do Legislativo caótico. As rusgas, porém, de Bolsonaro com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o grupo de deputados ligados ao bloco denominado Centrão, nos últimos dias, estão dando fôlego às propostas que colocam o governo federal em saia justa.
Resolvidas as pendências da gestão Temer, será necessário apenas um acordo entre os líderes do Congresso para que a comissão da MP 870 comece a funcionar. O mandato do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), líder da oposição na Casa, disse que isso deve ocorrer a partir desta semana. A líder do governo, por sua vez, a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), não atendeu aos telefonemas desta reportagem, mantendo silêncio sobre o assunto.
A articulação pela reabertura do conselho está fortalecendo grupos da sociedade civil que lidam com assuntos como fome, alimentação saudável e segurança alimentar e nutricional, de acordo com a ex-presidente do Consea, a nutricionista Elisabetta Recine, professora da Universidade de Brasília. “A sociedade reconhece a importância desses temas. Não será a ausência de uma estrutura de governo que vai enfraquecê-la. A extinção gerou uma intensa mobilização social e as iniciativas para reabertura do Consea estão, ao contrário do que talvez se pretendia, fortalecendo e ampliando os compromissos da sociedade civil com esta agenda”, afirmou ao Joio.
O número expressivo de propostas tratando do Consea no Legislativo é um sinal positivo sobre isso, segundo ela. “O número de emendas apresentadas mostra que houve grande sensibilização dos parlamentares sobre o tema. Agora precisamos manter e ampliar esse compromisso quando a comissão mista for instalada para que as emendas sejam acatadas e aprovadas”, disse Elisabetta, que exercia o cargo até a extinção do colegiado, no início do ano.
Para a ex-presidenta do Consea, a postura de vários deputados e senadores é oposta ao que ocorre no governo federal. “Do ponto de vista do Poder Executivo, é lamentável que esteja de costas para a agenda da segurança alimentar e nutricional. Nada foi feito. Pelo contrário, o Ministério da Cidadania, que herdou as atribuições, não tem demonstrado interesse por uma causa que é fundamental para a sociedade brasileira”, critica.
A essa altura, o Consea já teria realizado a primeira plenária, para traçar o norte das ações do conselho ao longo do ano, e também teria continuado os preparativos da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O evento é responsável por enviar ao governo federal as prioridades para a nova edição do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o principal documento que orienta as políticas públicas sobre este assunto.
Pedido de inconstitucionalidade
No MPF, a bola está com a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que recebeu um belo passe de outra colega de Ministério Público. Falta só ajeitar e mandar para o gol. A procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, protocolou em 19 de fevereiro um pedido à Procuradoria-Geral da República (PGR) requisitando a abertura de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no STF contra a extinção do Consea.
Ela sugere que os artigos 23, 24 e 85 do texto da Medida Provisória 870, responsáveis pela supressão do conselho, ferem a Constituição Federal, e também solicita que o Supremo emita uma decisão liminar (provisória e antecipando o julgamento).
Extinguir o Consea, de acordo com a procuradora dos Direitos do Cidadão, seria o mesmo que provocar uma situação de retrocesso social, algo proibido pela Carta Magna. “O princípio do não retrocesso social visa à proteção de direitos sociais concretizados por normas anteriores contra medidas regressivas legislativas e atos governamentais posteriores”, afirmou. Segunda ela, o texto da MP 870 fere a Constituição Federal nos artigos 3º, sobre erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, e 6º, que inclui a alimentação como um direito social.
Daí vem o pedido de uma decisão liminar: “Considerando que o tema tratado nessa representação requer urgência, por envolver as necessidades mais elementares de qualquer ser humano, postula também pedido cautelar, para suspensão imediata dos efeitos do dispositivo impugnado.”
Antes, ainda, Duprat havia questionado o Ministério da Cidadania sobre os rumos do conselho. A pasta protelou a resposta, desrespeitando o prazo de dois dias requisitado, e no fim disse que o problema era da Presidência da República — e só isso mesmo.
O pedido dela já está no gabinete de Raquel Dodge, sob análise da equipe técnica, que está recolhendo subsídios sobre o tema. Procurada pela reportagem, a PGR informou que ainda não existe previsão para que a peça de ação de inconstitucionalidade fique pronta.
“A Secretaria de Função Constitucional recebe diversas representações mensais sobre controle de constitucionalidade. Esta apreciação não tem prazo definido, pois a matéria é complexa e requer a avaliação minuciosa para decidir sobre o cabimento de uma ação perante o STF”, declarou em nota enviada por sua assessoria de imprensa.
Pelo portal da transparência do MPF, é possível acompanhar o andamento do processo. No momento, a representação está com Secretaria da Função Constitucional. A expectativa, entretanto, é que Dodge não vá se indispor com uma colega de Ministério Público e ajuíze a ADI no Supremo, ainda que demore algum tempo para isso. Procuradores da República mais sensíveis ao tema estão buscando conversar com a procuradora-geral para informá-la da importância do Consea.
Elisabetta diz que há uma grande expectativa para que a PGR ingresse no STF. “Em termos de Ministério Público, a atuação tem sido impecável. Não só a respeito do Consea, mas em outros assuntos relacionados aos retrocessos que estamos testemunhando, os procuradores federais têm tido uma atuação exemplar.”
Entenda o caso
O Consea funcionava como um órgão consultivo ligado à Presidência da República. Entre suas atribuições, o conselho fazia o controle social e abria espaço para a participação da sociedade na formulação, monitoramento e avaliação de política públicas voltadas a promover a segurança alimentar e nutricional. Era um dos três pilares do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que articula setores do governo voltados a promover o direito humano pela alimentação adequada e saudável.
O conselho se diferenciava de outras autarquias do Poder Executivo por ser composto em dois terços por representantes da sociedade civil e em um terço por integrantes governamentais. Além disso, era presidido por um representante da sociedade civil, indicado pelos outros conselheiros e chancelado pela Presidência da República.
Competia ao colegiado propor à Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), um fórum intersetorial do governo para formular políticas públicas, as diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Isso era feito com base no que era discutido nas Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional, por todo o país, também realizadas pelo Consea.
Em 1º de janeiro de 2019, a medida provisória da posse do presidente Jair Bolsonaro suprimiu trechos da Lei 11.346/2006, que dita o funcionamento do Consea, criando um impasse. Oficialmente, o colegiado passaria a ser parte do Ministério da Cidadania, que não encaminhou a sua regularização.
A ação tomada no primeiro de governo, no entanto, confirmou um alerta que já havia soado no ano passado, nas eleições. Enquanto ainda existia, os representantes da sociedade civil no Consea analisaram durante o primeiro turno de campanha os projetos de governo dos 13 postulantes à Presidência da República. Eles usaram como referência o texto da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) para verificar quais pontos previstos na regra estavam contemplados nas propostas dos candidatos.
E a conclusão: Bolsonaro seria um cheque em branco, que representava um risco de agudização da fome e da miséria. O Joio chegou a noticiar isso. O que se vê hoje, portanto, já era —infelizmente— esperado. Agora o destino do conselho está na mãos do Congresso Nacional e do Ministério Público.
Abaixo, veja a linha do tempo com um resumo da história do Consea:
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- 1993: Foi instituído por Itamar Franco como órgão consultivo da Presidência da República.
- 1995: Deixou de existir no início do governo Fernando Henrique Cardoso, que o substituiu pelo Programa Comunidade Solidária.
- 28 de maio de 2003: Foi reestabelecido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
- 2006: Promulgação da Lei 11.346, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, integrando o Consea.
- 2009: O então relator especial sobre o Direito à Alimentação da Organização das Nações Unidas, Olivier De Schutter, elogiou a atuação do Consea no combate à fome e promoção da segurança alimentar e nutricional.
- 2010: O direito à alimentação foi incluído como direito social na Constituição, após atuação dos integrantes do Consea.
- 2014: As ações do Sisan, e do Consea, levam o Brasil a deixar o Mapa da Fome, da FAO.
- 2017: Elisabetta Recine assume como presidenta do Consea, cargo que iria ocupar até o final de 2019.
- 1º de janeiro de 2019: Recém-empossado, o presidente Jair Bolsonaro revoga na Medida Provisória 870 trechos da lei que prevê a composição do Consea. Na prática, o conselho deixa de existir.
- 1º de janeiro de 2019: As atribuições do Consea são transferidas para o Ministério da Cidadania, mas a troca é feita de forma pouco clara, criando um impasse.
- 17 de janeiro de 2019: A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do MPF, questiona o Ministério da Cidadania sobre qual a situação do Consea, dando dois dias para resposta.
- 28 de janeiro de 2019: 11 dias depois, o Ministério da Cidadania solicitou extensão do prazo para o envio da resposta em cinco dias úteis.
- 4 de fevereiro de 2019: O Ministério da Cidadania responde ao MPF dizendo que encaminhe o questionamento à Presidência da República, por se tratar de ato do chefe do Poder Executivo.
- 12 de fevereiro de 2019: 66 emendas à Medida Provisória 870, ou 12% do total, são apresentadas ao Congresso Nacional pedindo a reabertura do Consea.
- 15 de fevereiro de 2019: O Congresso Nacional designa os integrantes comissão mista que irá votar o texto da MP 870.
- 19 de fevereiro de 2019: A procuradora Deborah Duprat afirma que a extinção do Consea é inconstitucional, enviando nota técnica ao Congresso, e solicita abertura de ação no Supremo.
- 28 de fevereiro de 2019: Relatores da ONU alertam que medidas de Bolsonaro afetam combate à fome e à pobreza. Eles também pedem a reabertura do Consea.
- 14 de março de 2019: A solicitação de ação de inconstitucionalidade entra em análise pela Procuradoria-Geral da República.
- 21 de março de 2019: A MP 870 passa a tramitar em regime de urgência no Congresso Nacional e se aproxima de entrar em funcionamento.