O Joio e O Trigo

Quando as águas se misturam, quem sai perdendo?

Medida provisória da privatização da água expõe como o Estado é transformado cada vez mais em um apêndice de interesses bilionários


“Pescadores de águas turvas” é uma série de cinco reportagens do Joio sobre a Medida Provisória 868. Ao longo das últimas semanas, reviramos documentos, conversamos com várias pessoas, assistimos a horas e horas de debates e audiências públicas



Se você acredita na separação entre público e privado, os parágrafos a seguir podem te fazer perder as esperanças. A história da Medida Provisória 868, que força os municípios a privatizar os serviços de água e esgoto, apaga qualquer linha divisória. Conflitos de interesses não são uma parte da narrativa: são o centro.

É um estudo de caso sobre como o Estado pode ser convertido em mero intermediário dos interesses de grandes atores. Como vimos, a MP nasceu de um pedido da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon). Apesar de já contar com contratos em 320 municípios, chegando a 30 milhões de pessoas, a Abcon quer mais. Muito mais.

A organização apresenta como uma demanda por igualdade a obrigação de os municípios consultarem empresas privadas sobre o interesse em assumir os serviços: seria a maneira de público e privado serem colocados lado a lado para competir.

Ao longo das últimas semanas reviramos a teia de relações que envolve a tramitação da medida. Os laços secundários de cada ator são tão importantes quanto aquilo que apresentam no cartão de visitas. E é para isso que fizemos um complexo infográfico (abaixo) no qual é possível conferir as relações envolvidas nesse trâmite.

Olhar para a Comissão Especial do Congresso que analisa a MP 868 é um bom ponto de partida. No ano passado, quando ainda era a MP 844, um articulador-chave foi o senador Roberto Muniz (PP-BA), que presidiu a Abcon até assumir o mandato parlamentar, pouco antes do início da tramitação do texto legal.

Agora, o relator é Tasso Jereissati, multimilionário com interesse em variadas áreas conectadas ao uso de água, de quem falaremos outra hora.

Essa complexa teia de conflitos de interesses está longe de se esgotar nos mandatos parlamentares. A comissão realizou três audiências públicas em abril, num total de 18 convidados. Se olharmos apenas para as afiliações oficiais de cada um, veremos agentes públicos, representantes do setor privado, representantes dos estados e das prefeituras, representantes da sociedade civil. Na prática, a situação é outra.

Águas turvas

A Agência Nacional de Águas (ANA) é uma das grandes beneficiadas pelo texto da MP. Se aprovado como está, o órgão federal recebe o papel de regulador geral dos serviços de saneamento. Em tempos de penúria no orçamento estatal e de embargo em concursos públicos, ganharia 26 novos cargos.

“Todo esse novo arranjo não prevê a criação de mais de 30 cargos na ANA, ou seja, uma oportunidade de relevante ganho para o setor a um considerável baixo custo administrativo”, resumiu Martha Seillier, que esteve à frente dos estudos da Casa Civil de Michel Temer que resultaram na MP.

Mais uma vez, não deixa de ser curioso que o mesmo governo que alega não ter recursos para investir em saneamento encontre dinheiro para criar cargos voltados a supostamente regular a prestação de serviços privatizados. Na verdade, o intuito do fortalecimento da ANA é atender a mais um pedido do setor privado, que reclama de estar submetido a diferentes regras determinadas pelos municípios.

De outro lado, críticos dessa mudança alegam que as regras são diferentes porque lidam com realidades diferentes. E recordam que a ANA tem conhecimento sobre gestão de recursos hídricos, em especial sobre bacias hidrográficas, e não sobre saneamento.

Quem tem representado a agência nos debates públicos sobre a MP não são os diretores. É o superintendente Adjunto de Apoio ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, Carlos Motta Nunes. Ele esteve na audiência pública realizada em 9 de abril.

Dois dias mais tarde foi a vez de Federico Turolla, professor da ESPM e integrante do projeto Infra 2038 – calma que já falaremos a respeito. Defensor da MP, ele não deixou de agradecer publicamente ao deputado de primeiro mandato Felipe Rigoni (PSB-ES) por ter apresentado as emendas parlamentares de desejo do Infra 2038. São questões de ajuste, já que tanto Rigoni como a organização são bem favoráveis ao texto.

Por parte do Ministério da Economia, a figura mais ativa nos debates sobre a MP 868 é o secretário de Desenvolvimento de Infraestrutura, Diogo Mac Cord de Faria. Antes de ser do governo, Mac Cord atuou na KPMG, consultoria diretamente interessada na discussão sobre saneamento. E na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.

Assim define o perfil público dele no Linkedin:

“Executivo sênior, com mais de 15 anos de experiência como consultor. Neste período, pude assessorar investimentos da ordem de R$40 bilhões em vários setores de infraestrutura (por meio de concessões públicas), como energia elétrica, saneamento básico e mobilidade urbana. Meu trabalho junto aos governos e agências reguladoras vai desde desenhar o framework regulatório até escrever a matriz de riscos do contrato de concessão (incluindo o detalhamento de todo o processo subsequente de revisão tarifária dos contratos) e definir as regras da licitação.”

O que tudo isso tem a ver? Todos se encontram no Infra 2038, que por sua vez se apresenta assim:

“Neste contexto, no encontro anual da Fundação Lemann de 2017, um grupo de entusiastas pelo tema de infraestrutura – que haviam voltado de universidades como Harvard, Columbia e Oxford – resolveu se unir para tomar um café. De um simples grupo de WhatsApp surgiu algo enorme: o projeto Infra2038: a meta, nada modesta (no melhor estilo Jorge Paulo Lemann), é colocar nos próximos 20 anos o Brasil entre as 20 primeiras colocações no ranking de infraestrutura do Fórum Econômico Mundial (hoje ocupamos a posição #73).”

Mac Cord é fundador do Infra 2038. Carlos Motta é o atual coordenador. Felipe Rigoni foi Lemann Fellow, ou seja, um estudante de destaque que contou com apoio da Fundação Lemann – nesse caso, mestrado em Políticas Públicas em Oxford e estruturação do RenovaBr, que se apresenta como uma instituição de formação de quadros para a política. Então, o Infra 2038 tinha um representante oficial nas audiências públicas sobre a MP, somados a dois que não se apresentaram como tais.

Disso a Fundação Lemann entende. Foram quatro deputados federais e dois estaduais eleitos em 2018. Jorge Paulo Lemann, um dos homens mais ricos do Brasil, tem na produção de alimentos e bebidas o investimento mais conhecido – a cervejaria Ambev e a alimentícia Heinz, entre outras, têm ele como um dos grandes acionistas. Água é o insumo mais caro para quem produz bebidas. O que isso tem a ver com a MP 868 é assunto para outra hora.

Por agora, vamos falar sobre uma das funções da Fundação Lemann: posicionar quadros estratégicos na máquina pública, sempre alinhados com um ideário liberal na economia. Um ideário que entenda que o que é bom para as empresas é bom para o Estado e os cidadãos. Um ideário que torna possível que o criador de um instituto privado sobre infraestrutura se transforme no homem forte da execução do orçamento público em infraestrutura.

Em 28 de março, os amigos dos tempos de Lemann se encontraram em São Paulo no GRI PPPs e Concessões. Cuma? O GRI Club é uma organização especializada em farejar privatização. Realiza encontros, digamos, “diferenciados” nos quais reúne agentes públicos estratégicos e agentes privados estratégicos. Lá, além de Motta Nunes e Mac Cord, esteve o ministro do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, que reafirmou a posição de que o Estado não dá conta de investir em saneamento.

“Tive oportunidade de conversar com muitas pessoas, atores importantes do setor. Foi uma chance de apresentar também o que, como ministro, penso em relação a várias políticas, deixando bem claro que a iniciativa privada é muito bem-vinda, propostas são muito bem-vindas, e que o público está aberto a ouvir o privado. É assim que avançamos”, agradeceu Canuto.

Porta giratória

Voltemos para nossas audiências públicas. Em 9 de abril, o presidente do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos, esteve no plenário 2 do Anexo II do Senado para defender com firmeza que a MP 868 permaneça como está.

Como já vimos, o Trata é bancado pelas grandes empresas privadas de saneamento e é um negociador importante da medida. É deles o diagnóstico de que há uma grande possibilidade de avançar na cobrança compulsória dos serviços de esgoto em qualquer lugar em que seja oferecido.

Na mesma sessão falou Alceu de Castro Galvão Júnior, diretor executivo da Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados do Estado do Ceará. Ao longo das últimas décadas, ele exerceu vários cargos na área. O currículo é tão extenso que não deu tempo de citar que ele é sócio da Reinfra Consultoria, que por sua vez presta serviços para empresas de saneamento e para o Trata Brasil.

Alceu também já fez estudos para a Associação Brasileira de Agências de Regulação (Abar), que tem interesse direto na MP. Em um dos estudos, as conclusões são de que é preciso aumentar as tarifas e criar mais parcerias público-privadas em saneamento.

Bastidores

Sem participar das audiências públicas, Karla Bertocco não é uma personagem menor. A diretora de Governos e Infraestrutura do BNDES tem reuniões constantes com Mac Cord, o ministro Canuto e o secretário nacional de Saneamento, Jônathas Castro. Quando rolar a abertura total para a privatização, o BNDES será o grande financiador das empresas, com juros bem abaixo da inflação. De novo: o Estado não tem dinheiro para fazer as obras, mas tem para bancar, com prejuízo, as corporações privadas.

Jônathas, por sua vez, é uma figura relevante a ponto de constar entre os 28 nomes da equipe de transição nomeada entre outubro e novembro por Jair Bolsonaro. Lá, encarregou-se diretamente das negociações envolvendo saneamento para que o rio seguisse o curso mesmo com a mudança no comando do Planalto.

Karla Bertocco foi direto da presidência da Sabesp para a diretoria do BNDES. É admiradora das parcerias público-privadas e foi uma das pessoas que pensaram na modelagem para que a empresa estadual paulista repasse o controle ao setor privado, operação esperada para rolar mais cedo ou mais tarde. Antes, foi subsecretária de Parcerias e Inovação da Secretaria de Governo, estratégica para definir privatizações.

A teia de relações exposta pelas audiências públicas da MP 868 ainda rende alguns desdobramentos. Mas são tão férteis, tão interessantes, que é melhor pararmos para respirar antes de continuarmos.

Navegue por tags

Matérias relacionadas