Já não é cedo para dizer: Bolsonaro não se preocupa com a fome ou a miséria

A cena é forte. Nos últimos dias, repercutiu a imagem de um grupo de pessoas revirando um caminhão de lixo, em busca de comida nos restos deixados por um supermercado em Olinda, Pernambuco. Perturbante, o fato, no entanto, é revelador do estado das políticas de segurança alimentar e nutricional no Brasil. A esta altura do campeonato, já não é cedo para dizer: o presidente Jair Bolsonaro não se preocupa com a fome, a desnutrição ou a miséria.

Ele tentou jogar, em 18 de junho, a última pá de cal nos programas do governo sobre estes temas. Vetou a reabertura do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), quando sancionou a Medida Provisória (MP) 870, transformando-a na Lei 13.944. Bolsonaro fez o que fez apenas quatro dias após a Rede Globo flagrar as pessoas revirando o lixo — algo que se repete há mais de um mês, segundo o canal de televisão.

O Consea, para quem não sabe, existe desde 2003 e foi um dos setores do governo federal responsáveis por obter, entre outras conquistas, a saída do Brasil em 2014 do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Trata-se de uma relação listando os países que têm 5% ou mais da população ingerindo uma quantidade de calorias menor que os patamares considerados saudáveis.

A decisão do presidente, por sua vez, mostra um esforço especial em desarticular as políticas públicas contra a miséria. O veto ao Consea atropelou o tema que mais mobilizou emendas parlamentares (66 dentre 541) durante as discussões da MP 870 no Congresso Nacional. A situação, por decorrência, é complexa. Na avaliação de deputados e senadores, o veto presidencial não alterou a lei original que criou o conselho — e ele, também pode ser derrubado por nova votação no Legislativo.

Junte a isso, entretanto, uma série de outros ataques aos programas de segurança alimentar e nutricional.

Bolsonaro quis extinguir o Consea já em 1º de janeiro, ao promulgar o texto original da medida provisória após tomar posse. Depois disso, patrocinou a exoneração de servidores públicos responsáveis por chefiar os mais importantes programas de segurança alimentar e nutricional do Poder Executivo. O governo federal, além do mais, foge, como o diabo da cruz, das discussões sobre o assunto.

O Ministério da Cidadania, que, em tese, tem a atribuição de cuidar das políticas públicas contra a fome e a miséria, é uma caixa preta. Na semana passada, uma comitiva de conselheiros estaduais de segurança alimentar e nutricional encontrou dificuldades para participar de uma reunião com José Roberto Carlos Cavalcante, o funcionário à frente da Secretaria Nacional de Inclusão Social e Produtiva Rural, um dos braços da autarquia.

Pessoas reviram caminhão de lixo atrás de comida, em Olinda (Foto: Reprodução)

Apenas o presidente da Comissão de Presidentes de Conseas Estaduais, o potiguar Jean Pierre Tertuliano Câmara, recebeu permissão para conversar com o secretário. Outros representantes ficaram de fora do encontro. Após algum tempo, tiveram a entrada permitida, mas sem que pudessem se manifestar. Procurado por meio da assessoria de imprensa, o Ministério da Cidadania não comentou o caso até a publicação deste texto.

Não custa lembrar, como se não fosse o bastante. A panela de pressão apitou ainda durante as eleições. Bolsonaro não apresentou no seu projeto de governo, no ano passado, qualquer iniciativa razoável de combate à fome e à desnutrição. A constatação veio não só de uma reportagem do Joio, como de uma minuciosa análise dos principais especialistas em segurança alimentar e nutricional do Brasil.

É consenso que a fome é um tema transversal. Isto é, não é resolvida apenas com caridade, como a pura distribuição de alimentos; demanda a articulação de políticas de várias áreas. O país, contudo, atingiu a marca de 13,1 milhões de desempregados, de acordo com a medição mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Até agora, o governo federal não apresentou um programa de geração de postos de trabalho. Desemprego, fome e miséria, vale dizer, são como trigêmeas siamesas.

O ex-arcebispo de Olinda, Dom Hélder Câmara (1909-1999), não viu a cena das últimas semanas. Mas, em vida, deixou uma frase marcante: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista.” A todo momento, Bolsonaro afirma que o comunismo ameaça o Brasil. Isso não é verdade. Mas não há nada mais digno da pior hipocrisia do que acusar os outros sobre aquilo que se omite.

(Imagem do destaque: Denise Matsumoto/O Joio e O Trigo)

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