Compra direta e distribuição estadual são melhores formas de fazer chegar à população os R$ 686 milhões do Programa de Aquisição de Alimentos
Uns – nem tantos assim – têm comida de sobra. Outros – muitos – passam fome. Num país de dimensões continentais e rico em terras, mas com alta desigualdade social, uma medida governamental que diminua os impactos da miséria e da pobreza na mesa de milhões de brasileiros e brasileiras durante a pandemia causada pelo coronavírus parece um caminho óbvio.
Porém, o óbvio nunca fez sentido para o governo de Jair Bolsonaro: o que o atual governo federal vem fazendo desde os primeiros dias de mandato é justamente o contrário de assegurar alimentos para a população mais vulnerável.
Assim, só agora, mais de três semanas após anunciar que apoiaria famílias agricultoras com dificuldades de escoar a produção durante a emergência sanitária da Covid-19, o governo federal publicou na segunda feira, 27 de abril, a Medida Provisória 957/2020, que irá liberar R$ 500 milhões para o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA).
Essa medida, claro, não saiu sem pressão: é fruto da articulação de 877 organizações da sociedade civil. O resultado desse esforço foi apresentado ao governo federal pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que afirmou a necessidade de um aporte imediato de R$ 1 bilhão para o programa e de R$ 3 bilhões até o final de 2021.
Do total de recursos, R$ 370 milhões serão destinados para a compra de alimentos das cooperativas de agricultores familiares, por meio de doação simultânea, uma das modalidades do PAA, sendo R$ 220 milhões para a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e R$ 150 milhões para governos estaduais e prefeituras.
Além disso, R$ 130 milhões serão alocados à modalidade PAA Leite, para a compra de leite in natura de pequenos produtores de laticínios e agricultores familiares do Semiárido Brasileiro, na região Nordeste.
A expectativa é de que o total de recursos beneficie 85 mil famílias de agricultores, além de 12,5 mil entidades e 11 milhões de famílias em vulnerabilidade social.
No período em que o Brasil estava no Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), o Programa de Aquisição de Alimentos, criado em 2003, teve uma repercussão muito importante e chegou fortemente às comunidades e às populações em estado de vulnerabilidade e insegurança alimentar.
“Esse é um programa que já foi testado e que tem eficácia, inclusive foi modelo para outros países”, ressalta Carlos Eduardo Leite, coordenador-geral do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais da Bahia (Sasop) e membro do núcleo executivo da ANA.
Carlos Eduardo ajuda a entender o panorama do PAA inicialmente previsto para este ano e o impacto da medida emergencial.
“A primeira questão importante é que a lei orçamentária de 2020 prevê R$ 186 milhões, então, se eles estão liberando R$ 500 milhões, a gente tem um montante de 686 milhões”, diz.
Para se ter uma ideia da queda vertiginosa de aplicação de recursos no PAA desde o segundo mandato de Dilma Rousseff – que se agravou no governo de Michel Temer e desceu a ladeira com Bolsonaro – a medida que disponibiliza os R$ 686 milhões só para 2020 equivale a mais do que os orçamentos de 2015, 2016, 2017 e 2018 juntos.
Em 2019, por exemplo, foram aplicados somente R$ 32 milhões em compras, quantia distribuída a pouco mais de 4.500 agricultores. Isso significa 5% do investido em 2012, o melhor ano, quando o governo comprou de 95 mil agricultores um total de 213 mil toneladas apenas para doação, desembolsando quase R$ 400 milhões.
Volta para ficar?
Já alertamos no Joio, em texto publicado no mês passado, que o Brasil não teria estoques públicos de alimentos estratégicos para enfrentar o desabastecimento diante da pandemia. Sem esses estoques, é difícil entender os rumos e projetar o futuro para os agricultores e as comunidades mais vulneráveis no Brasil em meio a um cenário tão grave.
Desde 2016 a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) passa por um processo de desmonte. A estatal vinculada ao Ministério da Agricultura é fundamental para articular o PAA e uma série de outros programas de proteção aos produtores.
No ano passado, o desmonte foi acelerado com a venda ou o fechamento de quase um terço da rede de armazéns públicos, justamente utilizados para comprar ou estocar alimentos e sementes para a agricultura familiar e comunidades indígenas e quilombolas.
Na ocasião, em resposta às perguntas enviadas pelo Joio, o governo indicava a intenção de que a Conab tivesse “participação estratégica” na vida do agronegócio, e não mais da agricultura como um todo. “Tal modernização alinha-se com os anseios da atual política de governo, que prioritariamente aponta para o fortalecimento do agronegócio, com geração de informações estratégicas para as decisões de gestão do setor.”
No começo da pandemia, o discurso da maioria dos ministros era de que não havia risco de desabastecimento. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, recusava a necessidade de medidas especiais.
A MP 957 marca, portanto, uma mudança grande de rumos. O texto no qual o Ministério da Agricultura divulga a medida vai no tom contrário dos 16 meses anteriores. “Esses recursos vão potencializar ainda mais o PAA. É um programa importante, porque ele atende a dois públicos: a agricultura familiar e a rede socioassistencial dos municípios, as pessoas que são as mais vulneráveis nas cidades”, destaca o secretário de Agricultura Familiar e Cooperativismo, Fernando Schwanke.
Carlos Eduardo Leite, da ANA, aposta na compra direta de alimentos, uma das modalidades do programa, para ganhar agilidade nos processos de distribuição. Isso porque a modalidade de doação simultânea envolve 12 passos – passando por solicitação dos produtos pelos órgãos públicos estaduais, municipais e a Conab.
“Embora importante, essa modalidade tende a demorar um período razoavelmente longo entre a solicitação e a entrega. Já na compra direta, o produtor tem o produto, a Conab e o Estado fazem a compra. E a entrega desse produto é a forma de atestar a venda. Ou seja, a compra direta, nesse momento de pandemia, é mais ágil para que os alimentos cheguem a quem mais necessita”.
“A nossa expectativa é que só uma crise como essa, de saúde pública, infelizmente, possa recolocar o PAA como uma política pública fundamental e que essa política pública possa se reestruturar na sociedade como vinha acontecendo até 2014”, conclui.
Contudo, lembremos: um dos primeiros atos de Bolsonaro ao assumir o governo federal foi o fechamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Depois, veio o quase esgotamento dos estoques estratégicos de alimentos da Conab, e ainda os orçamentos cada vez menores destinados ao PAA, como já mostramos neste texto.
Vê-se, portanto, que serão essenciais muita pressão e organização social contínuas para que políticas públicas como o PAA possam recuperar algum protagonismo na agenda governamental durante e depois da pandemia.