Acervo Cedac

Sem governo e corporações, ‘solidariedade política’ se espalha pelo Rio

No Rio de Janeiro, organizações da sociedade civil doam comida de verdade, fortalecem a agricultura urbana e a luta pelo direito à água por meio da educação popular 

“A grande carência hoje é da fome, mas, também, da questão sanitária.” A psicóloga e pedagoga Rosa Alvarenga começa, assim, a analisar os desdobramentos da pandemia de coronavírus (Covid-19). Há 41 anos, ela faz parte do Centro de Ação Comunitária (Cedac), criado em 1989, com sede no bairro da Glória, no Rio de Janeiro. O centro surgiu da articulação de movimentos sociais rurais e urbanos com demandas por educação popular. A organização é composta por voluntários e voluntárias da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e economia solidária, que lutam por democracia com foco em políticas públicas e desenvolvimento local. 

A vida de Rosinha, como é mais conhecida, é dedicada à educação popular. Articuladora e lutadora incansável, é daquelas que atuam em várias frentes em âmbitos local e nacional, e em diálogo com organizações da América Latina. Atualmente, integra a coordenação política da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ). Já assumiu duas vezes a presidência do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea-RJ) e foi integrante do Consea Nacional, extinto em 1 de janeiro de 2019 pelo governo Bolsonaro.

Na sede do Cedac, Rosinha (em pé), Miriam Firmino (à direita) e Felisbela Costa (à esquerda), recebem e montam as cestas do Mutirão Solidário. Arquivo Cedac

Em março, o Cedac foi uma das mais de 150 organizações no país que assinou a carta. “Garantir o direito à alimentação e combater a fome em tempos de Coronavírus: a vida e a dignidade humana em primeiro lugar”.  

O documento apresenta propostas de combate à fome a serem implementadas em caráter urgente e emergencial pelos governos nas esferas federal, estadual e municipal. Dentre as medidas está a revogação imediata da Emenda Constitucional 95 (EC 95), que congelou os gastos sociais com saúde e educação por vinte anos; a criação de comitês de emergência para o combate à fome; o fortalecimento da agricultura familiar; a distribuição de alimentos para as populações mais vulneráveis, por meio de programas como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC); e o controle dos estoques e dos preços.

Nascidas da emergência sanitária, ações de assistência social nunca fizeram parte das estratégias do Cedac. 

“Isso é uma preocupação que tinha que ser dos órgãos governamentais, da prefeitura, do estado e em nível federal. Mas, enquanto essas políticas não chegam, ou não são suficientes, a gente se mobiliza para fazer. Não é uma ação costumeira do Cedac. A gente está acompanhando as lutas do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) também”, explica Rosinha. 

Desde o início da pandemia, mesmo período em que a carta foi assinada, as voluntárias e os voluntários da organização se mobilizaram para fazer o “Mutirão Solidário”. A ação é voltada para a distribuição de refeições e cestas com alimentos comprados de famílias agricultoras, feiras orgânicas e agroecológicas e de assentamentos da reforma agrária. Além dos alimentos, são doados material de limpeza e higiene, máscaras descartáveis e de tecido. A cesta inclui receitas com sugestões de preparo, que são oferecidas pelas nutricionistas voluntárias. 

“Explicamos a importância desse alimento para realmente melhorar a imunidade e poder enfrentar esse período de pandemia, que tem afetado tanta gente. Embora algumas pessoas digam que afeta a todos e que a doença é democrática, a gente sabe que alguns sofrem mais do que outros”, destaca Rosinha. 

Inicialmente, o mutirão contou com a colaboração de amigos e redes parceiras, mas logo se ampliou com a participação de pessoas que não militam em movimentos sociais. 

O Cedac disponibilizou uma conta bancária específica para receber doações em dinheiro. Toda semana é feita a prestação de contas para os mais de 250 doadores, com fotos das entregas nas redes sociais no Facebook e Instagram e por e-mail. 

Também voluntária do Cedac, Felisbela Costa, a Belinha, médica sanitarista da Secretaria Estadual de Saúde, que atua como voluntária há mais de 20 anos no grupo, vê de perto, na pandemia, a população faminta e desempregada. A drástica perda de empregos e rendimentos em trabalhos informais acentuou ainda mais a precarização das relações trabalhistas nesses quatro meses. 

Em tempo de crise, o capitalismo de plataforma amplia domínios, com a demanda pelos serviços de entregas de comida, por exemplo, criando uma empregabilidade frágil, sem direitos ou garantias, exploradora e excludente. São esses, hoje, os “subempregos” mais ofertados, mas, mesmo a essas vagas, os mais vulneráveis atendidos pelo Cedac não têm acesso.     

Outra carência que Belinha observa é a necessidade de orientação do ponto de vista sanitário, pois os discursos contraditórios dos governantes geram dúvidas e desconfianças. Induzem à população a tomar decisões contrárias às orientações de cientistas e organizações de saúde. Com isso, são mais pessoas infectadas pelo coronavírus e mortes, que já ultrapassam 73 mil em todo o Brasil, sendo mais de 11 mil no Rio de Janeiro.  

 “A gente está fazendo essas ações para suprir demandas de dar de comer para as pessoas realmente matarem a fome. E de levar o embasamento de orientação sanitária, por meio de distribuição de máscara, panfleto e de como se portar nesse momento para resistir à pandemia. A gente faz esse papel por ausência do poder público mesmo, entendendo que essa ausência exige de nós, sociedade civil, ação”, afirma Belinha. 

O Cedac auxilia, ainda, principalmente agricultores e agricultoras, a realizar o cadastro para o auxílio emergencial do governo federal.

Fortalecendo corpos e aproximando diferentes  

De acordo com Rosinha, o objetivo do mutirão é atender à população mais vulnerável, que são as comunidades da favela, periferia, trabalhadores informais, população de rua, catadores de material reciclável, povos de terreiro (integrantes de religiões de matriz africana), quilombolas, povos indígenas, pescadores e pequenos agricultores. 

Parte dos alimentos comprados da agricultura urbana é utilizada para o preparo de refeições (café da manhã, almoço e jantar). Na cozinha do Cedac, é preparada uma parte da alimentação e também são repassados alimentos para outros grupos que atuam com o preparo de refeições. Para almoço e jantar, nove grupos se revezam nessa tarefa. 

“Quando compramos frutas e está um dia muito quente, a gente circula à noite pela cidade, distribuindo”, conta Rosinha.

Aproximadamente sessenta comunidades são atendidas pelo “Mutirão Solidário”. São grupos que já trabalham com o Cedac e o contato é feito com as lideranças.

As entregas das cestas e refeições também são feitas diretamente pelas voluntárias da organização, para entidades indicadas por parceiros e em municípios do Rio, como Campos dos Goytacazes, Nova Iguaçu, Mesquita, Belford Roxo, Nilópolis. 

Comida de verdade com alimentos da agricultura urbana, feiras orgânicas e agroecológicas e assentamentos da reforma agrária. Arquivo Cedac

Entre as parcerias com outras organizações da sociedade civil, está, por exemplo, a rede de apoio à população de rua Porto ConVida, que opera em conjunto com diversos grupos religiosos, como igrejas evangélicas, católicas e povos de terreiro. 

Rosinha chama a atenção para novos arranjos de pessoas e organizações que passam a trabalhar em conjunto ou intensificam esforços de forma articulada com outras redes em função da pandemia. 

Na sede do Cedac, ela presenciou pai de santo e pastor dividindo cestas para serem entregues em diferentes comunidades. 

Sem empresas que passam boiada

Belinha comenta que as cestas não incluem enlatados, embutidos, biscoitos e calorias vazias. “A gente tenta trazer um alimento saudável para educar também e não somente matar a fome”, pontua. 

Rosinha acrescenta: “Todas as empresas que passam boiada, deixamos de fora da cesta”, fazendo referência à declaração do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que afirmou aproveitar o período da pandemia para flexibilizar a legislação ambiental, durante reunião ministerial do governo Bolsonaro do dia 22 de abril deste ano. 

“Quando a gente fala sobre comida de verdade, a gente não pode deixar de falar da questão da agroecologia, enquanto proposta de bem-viver, que é muito mais do que plantar e colher sem agrotóxicos. É essa proposta de bem-viver que a gente acredita profundamente, né? Temos procurado comprar com os agricultores que a gente já trabalha normalmente, mas, também, temos dado um apoio muito grande no Circuito Carioca de Feiras Orgânicas porque algumas não estão conseguindo nem manter as despesas para instalação das feiras por causa das quedas nas vendas”, comenta Rosinha.

Doações de cestas e o preparo das refeições apontam saídas para fortalecer a agricultura urbana na cidade. Arquivo Cedac

De março até o dia 10 de julho, foram doados 30.047 quilos de alimentos, 1.435 cestas, em 71 comunidades/grupos, sendo 15 de população de rua. Foram servidas 6.710 refeições e distribuídas 2.630 máscaras descartáveis e 2.013 máscaras de tecido. 

Diante da urgência de matar a fome, o centro enfrenta essa realidade com educação popular aliada à ação de doação de alimentos, conciliando o emergencial com o estrutural, como afirmava ser fundamental o sociólogo e ativista Herbert José de Sousa, o Betinho. 

De bicicleta ou carrinho de mão, solidariedade 

Belinha enfatiza que o trabalho de assistência é potencializado pelas redes construídas ao longo dos anos das últimas quatro décadas. Essa trajetória possibilitou ao Cedac identificar quem mais precisa de auxílio no momento de crise e reconhecer os grupos com quem atua. 

Uma questão que ela ressalta é a fome entre as famílias agricultoras, que são responsáveis por colocar na mesa brasileira cerca de 70% dos alimentos consumidos. 

“As pessoas falam assim ‘ah, agricultor não passa fome porque planta, vai comer aipim, pelo menos tem aipim’, mas faltam outras coisas, né? ”, diz Belinha. 

A partir dessa reflexão, o Cedac passou a apoiar as trocas solidárias entre famílias. A agricultora Miriam Firmino, do Assentamento Terra Prometida, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), teve a ideia de circular a vizinhança com um carrinho de mão, ou uma bicicleta, para trocar produtos de higiene, limpeza e alimentos, como óleo, arroz e feijão, entre os agricultores e agricultoras. 

A agricultora Miriam Firmino é voluntária e promove as trocas solidárias no assentamento Terra Prometida. Arquivo Cedac 

Ela propôs ao Cedac realizar trocas solidárias com a produção da agricultura familiar por itens que os agricultores necessitem em casa. E a ideia acabou se tornando mais uma frente de atuação. 

Uma das visitas recentes foi no Quilombo Santa Rita de Bracuí, em Angra dos Reis, região da Costa Verde do Rio de Janeiro.  A produção de chuchu, inhame e banana foi trocada por outros itens de necessidade, como material de papelaria para crianças. 

O local como potência contra a crise 

Os Povos e Comunidades Tradicionais (PCT) estão entre as prioridades do Cedac para inclusão no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do estado do Rio de Janeiro. O esforço está em encontrar brechas na legislação para que indígenas, quilombolas e povos de terreiro possam vender e comercializar alimentos, e também receber as doações do PAA. 

“A gente está nessa insistência, nessa luta. A política [do Estado] que a gente tem não é suficiente, mas a gente tem que aproveitar o que tem, aproveitar as brechas”, diz Rosinha. 

Em junho, o Cedac também assinou a “Carta da Cidade do Rio de Janeiro em defesa da vida”, que propõe a construção de um programa democrático-popular com eixo na defesa da vida e da proteção socioeconômica. 

Num contexto de lutas e desigualdades que se aprofundam, o grupo amplia a atuação sem perder de vista as medidas de médio e longo prazos para garantir vida digna, com comida de verdade, e um município abastecido pela agricultura que promova saúde e sustentabilidade. 

Outra frente intensificada com a pandemia é a luta pelo direito à água e saneamento e a defesa da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae). 

“Nas comunidades da favela e periferias, não têm água para tomar os devidos cuidados de higiene, como lavar as mãos. Cada vez mais, a gente vê a importância da defesa da Cedae”, alerta Rosinha.

Ocupações e solidariedade crescem na favela 

Serra da Misericórdia. Vídeo: Paulinho Castiglioni

“A pandemia escancara, revela todas as desigualdades sociais, todas as violências da favela, em especial para mulheres e as mulheres negras”, afirma Ana Santos, uma das cofundadoras do Centro de Integração na Serra da Misericórdia (CEM). 

Desde 2011, a organização trabalha com promoção da soberania alimentar e agroecologia na favela Terra Prometida, no Complexo da Penha, entre a Vila do Cruzeiro e Chatuba, na Serra da Misericórdia. A serra localiza-se entre as baixadas de Inhaúma e Irajá, abrigando 26 bairros, como Penha e Olaria, na zona norte do Rio de Janeiro. 

Em parceria com a ONG ASP-TA, o CEM articulou o “Arranjo da Penha”. O objetivo é promover agricultura urbana, alimentação saudável e as culturas tradicionais locais em quintais e áreas coletivas e impulsionar o debate sobre agroecologia e saúde no território com mulheres e crianças. 

“A gente não tinha nenhum trabalho de assistência. Ele se dá com a necessidade da pandemia. Nosso trabalho era todo mesmo com a agroecologia, aqui no território”, explica Ana, que é agricultora urbana e educadora popular. 

Ana Santos ao lado da voluntária Rose em dia de doação de cestas agroecológicas no Grotão. Foto: Paulinho Castiglioni

Desde o início da quarentena, ela atentou para o crescimento da ocupação de famílias na Serra. Sem ter como pagar o aluguel e sem emprego, a solução encontrada por moradores do Complexo e de outros territórios é construir barracos em busca de abrigo e moradia. 

Ana calcula o crescimento de cerca de dez novas ocupações por dia, em comparação ao que observava antes de março, em torno de uma por semana. E, nesse novo cenário, o CEM busca fortalecer o sentido político de morar e plantar na favela. 

Reaprender com as bases para agir 

O primeiro passo foi fazer um processo de escuta, descendo as escadas da comunidade com cartazes sobre a doença, os sintomas e como preveni-la. Os moradores pediam para colocá-los nos bares, na igreja e nos postes. Também foram utilizadas as peças da campanha de comunicação “Se liga no Corona!”, criada por coletivos de comunicadores da Favela da Maré em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz). 

Para Ana, a principal colaboração na quarentena viria,  principalmente, das ações de comunicação. Assim como o Cedac, uma das primeiras demandas do CEM foi ajudar a fazer o cadastramento para receber o auxílio emergencial. Ainda não estava evidente para a educadora que havia a necessidade de comida, pois a igreja é uma das instituições da favela que faz o trabalho de assistência social com regularidade. 

“O despertar da necessidade de doar alimentos veio a partir dessa comunicação, de escuta, acolhimento e informação sobre a covid”, explica Ana, ao contar que começou a receber pedidos de cestas básicas. O auxílio emergencial demorou a chegar e, com isso, vieram relatos como “se a gente dependesse desse auxílio, a gente morria de fome”.

Segundo a pesquisa “Coronavírus – Mães da Favela”, divulgada pelo Instituto Data Favela, uma iniciativa do Instituto de pesquisa Locomotiva e da Central Única das Favelas (Cufa), nove em cada dez mães moradoras de favelas têm dificuldade para comprar comida após apenas um mês sem renda. 

As favelas brasileiras abrigam 5,2 milhões de mães, com média de 2,7 filhos cada uma. No Brasil, aproximadamente 13,6 milhões de pessoas moram em favelas e 67% dos moradores são negros, segundo dados do Data Favela, em pesquisa feita com 261 mulheres com filhos em 260 favelas no país, no final de março.

Os gastos em casa aumentaram em 76% para as mães cujos filhos estão em casa. De acordo com o estudo, 37% das mães que vivem em favelas são autônomas e somente 15% têm carteira assinada. A pandemia reduziu a renda de oito a cada dez mães e mais de 70% delas afirmam que a alimentação será prejudicada pela ausência de renda. Ainda, 92% temiam dificuldades para comprar comida após um mês sem renda. 

Foi a partir dessa realidade que o CEM, junto com a Rede Ecológica mobilizou campanhas de solidariedade com vaquinhas e depósito bancário para ampliar as doações, oriundas da Feira Orgânica de Olaria, a Feira Agroecológica da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e o grupo Terra Prometida, em Caxias. 

“A gente começa a ter uma cesta mais política, para que as pessoas vejam a importância da agricultura urbana”, avalia Ana. Para a educadora popular e agricultora urbana, esse caminho faz mais sentido para refletir com a comunidade sobre morar e plantar no território. 

“Como colocar primeiro a consciência – que não é quantidade, mas a qualidade – quando tem um monte de gente querendo, necessitando daquela cesta?”, questiona.

Esse foi um dos desafios para montar as cestas de alimentos priorizando a agricultura urbana. E, a partir desse processo de amadurecimento, surgem novas estratégias para comunicar sobre os sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis.

É na conversa com os moradores que Ana demonstra que, quando se compra diretamente do mercado, quem tem muito é abastecido. Mas quando a compra é feita com as famílias agricultoras a mesa é alimentada com comida sem veneno, fortalece a saúde, principalmente em tempos de covid-19, e também quem produz alimentos agroecológicos. “Isso foi muito forte e, aí, você vê como a favela é solidária”, diz. 

As cestas são doadas a cada 15 dias e quem recebe repara na diversidade dos alimentos cultivados pela agricultura urbana. A primeira construção política na pandemia se deu pelas cestas, ao estimular a reflexão de que o se come pode fortalecer agricultores e agricultoras que conhecemos pelo nome, que o alimento pode ser mais saboroso e trazer à memória o gosto da terra-natal de muitos moradores. 

Comentários como ‘Dona Ana, que aipim é esse?’, ‘olha, esse aipim derrete’ e ‘a batatinha roxa que vai para o prato vai também para debaixo da terra’ são alguns dos áudios que Ana recebe por WhatsApp. 

De uma ação que inicialmente surgiu para atender a necessidade da fome, o debate se amplia para os direitos à terra, à água e à alimentação adequada e saudável. 

Ana avalia que a organização deve manter essas ações de solidariedade mesmo após a pandemia, pois não pretende perder o lugar que passou a ocupar junto com a igreja e o tráfico, em busca de diálogos intersetoriais e plurais para alcançar mais pessoas. 

Ela diz que os movimentos sociais estão reaprendendo a agir com as bases. O planejamento e a ação passam a ocorrer ao mesmo tempo, assim como o acolhimento do voluntariado que chega para a construção dos novos projetos.

“Eu, primeiro, preciso me reunir com a base, porque é com a base que eu faço a ação, é com a base que o movimento vai se dar. Se eu jogar a bola e elas [as mulheres] não receberem, não adianta eu construir grandes projetos, grandes ações”, reflete.  

A agroecologia em cestas 

A doação de cestas é feita com alimentos agroecológicos, principalmente do estado do Rio de Janeiro por meio de doações em conta bancária. As entregas são quinzenais e atendem cerca de duzentas famílias cadastradas para que a equipe consiga manter as demais atividades, como o plantio de mudas. 

Há a perspectiva de fazer em estudo em parceria com o Instituto de Nutrição da Uerj para entender o que mudou na vida das famílias com a cesta, desde as finanças, as práticas alimentares e o engajamento para fazer um trabalho e acompanhamento, escuta e trocas. 

No mês de junho, a ação contou com o apoio e parceria da ASP-TA que, que por um edital da Fundação Banco do Brasil, obteve recursos para investir em três mil cestas agroecológicas para os estados do Rio de Janeiro, Paraná e Paraíba, sendo mil para cada região. 

Mutirão para acolhimento, organização e distribuição das cestas agroecológicas na Arena Carioca Dicró. Vídeo: Paulinho Castiglioni

Os alimentos foram adquiridos da agricultura familiar urbana, camponesa, como da Associação de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro (Abio) e o sítio Canaã, em Magé, e de assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). 

No Rio, a articulação também contou com a ONG Verdejar e o Levante Popular da Juventude, que lançou, junto com o MST, a campanha “Nós por Nós contra o Coronavírus”. Essas organizações se mobilizaram para acolher os alimentos, organizar e entregá-los nas comunidades. 

A cesta foi montada com frutas da época, legumes, hortaliças e folhosas, arroz, feijão, farinha de mandioca, pães artesanais, sabão caseiro e água sanitária. A logística foi realizada na Arena Carioca Dicró, na Penha, e depois seguiu para as favelas.

Autocuidado que soma

Antes da quarentena, nas férias escolares, o CEM promoveu uma colônia de férias com visitas à Fazendinha Agroecológica, no município de Seropédica, trilhas ecológicas dentro da Serra da Misericórdia, oficina de plantio e de culinária. Com o início do período letivo, a ideia era continuar atendendo as crianças com um projeto de leituras agroecológicas, tendo como demanda  ensiná-las a ler. 

No entanto, as atividades tiveram de ser interrompidas em função da pandemia. O trabalho seguiu, então, com as mulheres, por meio de encontros virtuais, bate-papos sobre autocuidado, tema escolhido para trabalhar em 2020. 

“Porque a gente sabe o que é cuidado, a mulher está sempre cuidando do outro, mas autocuidado foi uma palavra que despertou nelas. Então, vamos pensar na gente? Não é egoísmo. Toda vez que a gente pensa na a gente, a gente está mais forte para fortalecer a outra”, comenta Ana. 

O partir dessas trocas, surge uma nova forma de atuação nos quintais das casas. Antes, eram feitos mutirões de plantio. Agora, os moradores recebem doação de sementes, estacas e adubos para plantar. 

A mineira Sandra Regina, mãe de dois filhos jovens, é uma das mulheres que teve a renda reduzida. Há 26 anos, ela mora no Complexo da Penha e se voluntariou para ajudar nas doações de cestas e no preparo das refeições. 

Ela conta que tem aprendido com Ana novas receitas, como carne de jaca e maionese de banana, que já substitui a manteiga. Entre os novos aprendizados, descobre a possibilidade de estimular a comunidade a plantar hortas e comer de forma mais natural. 

Sandra Regina posa ao lado do mutirão feminino para a pintura da escadaria do Morro do Grotão. Foto: Acervo CEM

“Eu só chegava em casa [depois do trabalho como empregada doméstica na Ilha do Governador] para dormir. Para mim, estar no projeto é muito gratificante. Estou ajudando a comunidade e as pessoas que precisam”, conta Sandra, que revela que essa é  a primeira vez contribui com um projeto social.

As mulheres também se organizam em mutirões para capinar, limpar e pintar escadas, além de participarem das rodas de conversas virtuais semanalmente. Cerca de dez se juntaram ao grupo do CEM durante a quarentena e já formam um grupo de 25 moradoras. 

Da roda, fazem parte evangélicas atuantes, esposas de presidiários e de homens que estão no narcotráfico. Para Ana, o encontro permite uni-las e despertar a sensibilidade para perceber a outra. 

“A solidariedade partiu de uma maneira tão forte que ela já não enxerga de onde você vem, nós estamos um do lado do outro. É essa política de solidariedade”, comenta.  

Em parceria com o Grupo de Trabalho de Mulheres da Associação de Agroecologia do Rio de Janeiro (GT da AARJ) foram doadas as “Cestas Cuidar-se”, um kit de cuidados com homeopatias, tinturas, pomadas, óleo de massagem e mudas de ervas medicinais oriundas de quintais produtivos agroecológicos para multiplicação de receitas; máscaras de algodão para proteção; sabão em barra ecológico e sabão em pó, ambos produzidos a partir do mamão verde, além de um caderno com orientações de acolhimento.

Os itens da cesta são feitos regularmente por mulheres. De acordo com informações do GT da AARJ, muitos já são confeccionados de forma solidária e distribuídos nas redes de proximidade delas. A iniciativa garante escala e viabilidade econômica em um período crítico onde muitas pessoas veem uma redução no escoamento de produtos. 

O engajamento no CEM mostrou para Sandra outros caminhos possíveis para enfrentar a luta das mulheres na favela. Entre os planos para o futuro, ela quer fazer uma horta no quintal e, na frente de casa, abrir um espaço para acolher mulheres para gerar renda e colocar em prática o que aprende no CEM. 

“Está sendo uma experiência gratificante. Estamos distribuindo carinho, amor e a atenção que a comunidade precisa. Não adianta esperar do governo de fulano”, ressalta Sandra. 

A educadora Ana observa, ainda, que o atual cenário apresenta outras formas de trabalho no território. As mulheres que fornecem quentinha para a equipe recebem pelos serviços, como também a juventude que faz a cobertura jornalística dessa atuação na favela com o apoio da Juventude Agroecológica da Rede de Agricultura Urbana do Rio de Janeiro (RedeCau). 

Sede de igualdade

“Por que não pensar uma cisterna de água?”. Esse foi um questionamento feito por moradoras a partir do sentido político da solidariedade. Segundo Ana, a quarentena é excludente e faz os moradores refletirem sobre a desigualdade social, o racismo, a falta de água, a ausência do governo. 

“Com a crise, as desigualdades gritam, berram. Não sobe ninguém do governo para doar cesta, mas sobe a polícia para matar. Então, é muito forte. A gente percebe a ação do governo a partir da ação policial”, afirma Ana. 

Mulheres engajadas na luta pelo direito à água, geração de renda, autonomia e agroecologia na favela. Da esquerda para a direita: Ana Paula, Milena, Vanessa, Ana Santos e Juliane. Acervo do CEM

A demanda da cisterna para a comunidade colaborou com essa tomada de consciência. O Grotão terá um reservatório de água porque a população será responsável e, por isso, começa a ter voz. O CEM lançou a vaquinha virtual e, em 11 dias, a organização conseguiu arrecadar 49 mil reais, a meta era 29 mil. A campanha contou também com apoio internacional. 

Além da possibilidade de armazenar água, a cisterna traz um impacto na geração de renda das mulheres. São elas que farão a gestão do projeto, desde a coordenação, contratação de profissionais da favela para a obra, incluindo mulheres para o fornecimento do serviço de alimentação,a juventude da comunicação para divulgar a ação, o fortalecimento do plantio e da agricultura urbana sem veneno. 

E, se tem água, tem também o quintal produtivo. A cisterna vai captar água de uma nascente da serra e a construção será feita sob a supervisão de uma engenheira ambiental. 

“O governo não percebe esse espaço como potência de produção agrícola, mas como potência para ação de uma mineradora”, destaca Ana. 

Da serra, já se vê o pós-pandemia

O CEM já tem planos para a vida na favela pós-pandemia. Com a inauguração da nova sede, será criado o “Espaço Mulher” para trabalhar com agricultura urbana, autocuidado, produção de ervas, xaropes, oficinas culinárias em um fogão à lenha e também com atividades culturais como cinema. Também está previsto o lançamento de uma feira cultural. 

Nos muros serão feitos grafites para contar as narrativas e os frutos gerados pelos encontros, reencontros e aprendizados com os modos de viver nos territórios.Também há planos para fortalecer a frente de comunicação do território com jovens e mulheres. 

“O povo tem a força, só precisa descobrir. Se eles [nos governos] lá não fazem nada de lá, nós faremos aqui. E produzir nossa comunicação é muito importante, porque, senão, a gente sempre vai ser invisível. O vírus é invisível, mas tudo que nos ataca é muito visível e, se não for relatado, a gente é só mais um”, conclui Ana. 

No contexto atual, os grupos que atuam pelo fortalecimento do sistema neoliberal, de crise em crise, aproveitam-se das fragilidades para reafirmar narrativas como indispensáveis e verdadeiras em detrimento de outras formas de conhecer e pensar o mundo. 

Contudo, o contra-poder, as contra-narrativas – como as experiências do Cedac e do CEM -, reafirmam as contradições do neoliberalismo e apontam as inter-relações implicadas para enfrentar a urgência da fome por meio da educação e comunicação popular. 

Em meio ao urgente, essas experiências demonstram que, ao mesmo tempo em que se garante comida de verdade, busca-se garantir a vida, a dignidade, os modos sustentáveis e saudáveis de produzir alimentos e o reconhecimento da sociobiodiversidade nos territórios. 


Para colaborar com o Mutirão Solidário 

Banco Bradesco 
Agência 0814
Conta Corrente: 75027-1 
CNPJ: 30.479.869.0001-21

Para colaborar com os projetos do CEM

Acesse o site da campanha de doação “Campo e Favela de Mãos Dadas contra o Coronavírus e a Fome: A Rede Ecológica ampliando o acesso à Comida de Verdade”. 

Além disso, no próximo sábado, dia 18 de julho, o CEM lança a campanha do “CozidoAgroecológico”.  O prato será vendido a R$ 20 reais pela internet para ser servido às famílias cadastradas na organização. A renda do cozido será revertida para o Espaço Mulher, que será inaugurado até o final de julho, e contribuirá para amadurecer o trabalho de geração de renda das mulheres. No local, o prato será vendido a R$ 15. Para apoiar, acesse aqui.

É possível ajudar, também, a campanha de doação “Campo e Favela de Mãos Dadas contra o Corona Vírus e a Fome: A Rede Ecológica ampliando o acesso à Comida de Verdade”. Apoie aqui.  


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