A próxima pandemia já está no caldeirão do agronegócio. Se será de fato uma pandemia, ou se teremos a “sorte” de que não passe de uma epidemia, dependerá de uma série de fatores. Alguns deles claramente negligenciados e, portanto, a “sorte” não parece andar do nosso lado. Já não é uma questão de se haverá uma próxima, mas de quando. E isso, acredite, não é sensacionalismo: é sensatez.
Mais de um ano atrás, quando não podíamos imaginar esse terrível 2020, começamos aqui no Joio a fazer perguntas sobre a legislação sanitária para a produção de alimentos no Brasil. Queríamos entender se os padrões microbiológicos fixados pelas leis estão corretos, ou seja, se as exigências de infraestrutura e de tolerância à presença de microrganismos estão corretas. Se esses padrões protegem a saúde pública ou interesses privados. Qual o grau de influência que a indústria de alimentos teve na formulação de normas criadas antes e durante a ditadura, e até hoje vigentes.
Porque foi esse o discurso que nos venderam. De que os agricultores familiares não conseguem entregar alimentos seguros do ponto de vista sanitário. Que precisamos de grandes empresas e padrões rigorosos. Que o Brasil tem um elevado grau de exigência. Bom, a história oficial já conhecemos.
O repórter Gustavo Basso começou a mergulhar em arquivos públicos atrás de pistas. Conversou com agrônomos, veterinários, agricultores, engenheiros de alimentos, formuladores de políticas públicas no governo federal, nos estados e nos municípios. A premissa já sabíamos: as regras atuais são claramente excludentes dos produtores artesanais de alimentos.
Escolhemos, então, olhar para o caso clássico dos queijos. Faltava firmar uma linha do tempo que permitisse entender como e com quais critérios foram formuladas as normas nacionais, estaduais e municipais. Os produtores de pequeno porte são excluídos com base em uma legislação razoável, sensata, ou com base em critérios obscuros e incompreensíveis? As respostas, você pode imaginar, são mais complexas do que um mero Sim ou Não. São tão complexas que merecem uma série de quatro reportagens que serão publicadas ao longo de agosto.
Vamos desfiando a maneira como as leis foram estruturadas e que impacto isso tem na nossa vida cotidiana. Porque, se compramos dentro de um supermercado um queijo produzido em larguíssima escala, isso é fruto de normas sanitárias invisíveis e difíceis de compreender. A configuração das leis foi fundamental para concentrar mercado nas mãos de poucos e fazer desaparecer alimentos produzidos localmente.
Em março, quando a série de reportagens estava praticamente pronta, decidimos segurar a mão: as atenções de todas e todos estavam claramente voltadas às consequências imediatas da pandemia de Covid-19. Com o passar das semanas, foi ficando evidente, porém, que nossa apuração tem tudo a ver com a pandemia.
A maneira como as leis foram estruturadas é claramente um dos motivos de estarmos aqui. O epidemiologista evolutivo Rob Wallace avisa desde a metade da década passada que viveremos uma pandemia. Sim ou sim. Como prêmio, foi relegado ao ostracismo e perdeu funções de consultor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos.
No livro Pandemia e agronegócio (Editora Elefante, 2020), ele analisa que ainda que o Sars-Cov-2 possa ter se originado em uma população de morcegos, o agronegócio não tem o direito de lavar as mãos.
Alegar que a agricultura não teve nenhum impacto — como a China tem esboçado em sua posição oficial, ou, ainda mais absurdo, que o vírus nem mesmo se originou na China — pode colocar aqueles que preferem negar o papel do agronegócio nisso tudo em uma posição bastante frágil. Como explicar a mudança de morcegos para pangolins e, talvez, para outras espécies intermediárias, como do porco para o homem, sem fazer menção à agropecuária (ou à extração de madeira ou à mineração)? A assinatura genética do vírus não aponta para um acidente de laboratório.
Spoiler e vacina para tempos de linchamento açodado: nossa série de reportagens não diz que os padrões microbiológicos definidos pela legislação brasileira estão errados. Esse é um trabalho para uma década de estudos. E já há quem o faça.
Mas, diante da pandemia, claramente precisamos olhar com muita atenção para essa questão. Parlamentares, ministros e secretários podem proceder a uma análise daquilo que foi fixado pelas leis passadas. A população pode buscar entender melhor sobre esses padrões e sobre o que poderia ser diferente. Enquanto isso, o agronegócio cozinha a próxima pandemia.
E nós, sem muita saída a não ser esperar e discutir como evitar, convidamos a refletir com a nossa série. A partir de segunda (10) em nossa página.