Com a ideia de criar um espaço de troca de impressões, aflições, confortos, o Joio convidou seus leitores a escrever sobre alimentação durante esse tempo de pandemia. Confira
É com colher de comida na boca que a gente aprende sobre o passado e futuro.
É da cultura alimentar que a gente enche o bucho e protege o espírito
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distanciamento social. pandemia
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alimento nasce com gente perto. falo daquilo que não vem da geladeira: o peixe pra chegar na mesa tem seu ciclo, tem pesca.
cheiro verde, tomate, pepino. feijão.
macaxeira.
tudo tem seu ciclo. tudo é gente.
cozinha tempera defuma assa frita transforma.
comida afeto.
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risco: liberação de agrotóxicos. na pátria em genocídio, 493 venenos liberados pra uso.
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fome.
falta trabalho, falta comida.
en-ve-ne-na: água terra semente bucho do peixe mercúrio garimpo.
fome.
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cesta básica: direito de encher o bucho e não ter dor de cabeça de barriga vazia. mas e o peixe, e a farinha? macaxeira, cheiro verde pra pôr em toda mistura?
não tem.
não tem.
quem tem fome tem que comer o que tem na cesta básica: não reclama, não questiona o óleo de soja com sangue e expropriação de território.
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quem passa necessidade de fome tem cultura alimentar? pega tua cesta e cala!
chora.
não é bom chorar comendo.
mas chora.
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respira.
chega farinha do interior, “é peixe de gelo, mas já saceia”.
macaxeira café almoço janta
pote de feijão no congelador.
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nessa mesa não faltou comida território espírito.
mas sabemos onde falta.
onde falta é gente nossa. sabemos o nome: tem endereço.
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como aprender sobre o passado e sobre o futuro se a colher tá vazia?
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come a cabeça do peixe e pega a sanha de, com bucho cheio, gritar pelo direito de quem passa fome.
fome não é nossa.
fome não é pra gente.
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grita, porque teu bucho tá cheio.
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microcrônicas sobre alimentação e quarentena, um ano de pandemia.
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Inara do Nascimento Tavares
Indígena mulher, Professora do curso de Gestão em Saúde Coletiva Indígena no Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena/ Universidade Federal de Roraima (UFRR), doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e membro do Grupo Temático Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e da pesquisadora Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.