Em pouco mais de 40 anos, a maior rede de fast-food do mundo abriu mais de mil lojas no país; periferias e cidades do interior lideram nova frente de expansão
Os irmãos Dick e Mac McDonald abriram sua primeira lanchonete no começo da década de 1940, no estado da Califórnia, oeste dos EUA. Em 1948, instituíram um sistema básico de franquias, nas quais vendiam hambúrgueres a 15 centavos de dólar. Tinham uma dezena de lojas.
O negócio mudou de patamar em 1954, quando os McDonald contrataram um agente chamado Ray Kroc para encontrar novos franqueados. Sorrateiramente, Kroc assumiu o controle da empresa e, em 1961, comprou os direitos de operação dos irmãos McDonald por 2,7 milhões de dólares. O McDonald’s que conhecemos hoje, faminto por novos mercados, nasceu ali.
Hoje, são mais de 14.000 unidades nos Estados Unidos e outras 24.000 espalhadas por 120 países. No Brasil, oitavo maior mercado da corporação, existem cerca de 1.000 lanchonetes e 2.000 quiosques de sobremesas. Mas eles não brotaram do chão ao acaso. O avanço pelo país foi cauteloso, cheio de testes, como se a empresa buscasse sentir a temperatura das águas brasileiras com as pontas dos pés antes de mergulhar de cabeça no negócio.
Os executivos do McDonald’s falam com orgulho da estratégia de expansão da empresa, desenvolvida sempre no ano anterior à execução e analisada trimestralmente. É o Departamento de Expansão que analisa as regiões que têm maior potencial para receber uma loja, observa os concorrentes, escolhe o terreno ideal e tira o projeto do papel. Também é o responsável pelo acompanhamento das novas unidades por pelo menos 18 meses. Com os dados em mãos — de vendas, principalmente —, decide se a loja fecha ou continua aberta.
O primeiro McDonald’s do Brasil foi inaugurado em 1979, em Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Era o primeiro teste. Foram dois anos de observação antes da abertura da segunda unidade, na Avenida Paulista, coração da cidade de São Paulo. A gigante dos hambúrgueres chegou ao Brasil assim: apostando nas regiões centrais, de baixo risco, para seduzir aos poucos as altas classes do país. Em 1989, quando a operação brasileira completou 10 anos, existiam 50 lanchonetes em funcionamento. E a marcha bandeirante sobre o interior e as periferias brasileiras ainda levaria alguns anos.
No estado de São Paulo, a primeira unidade fora da capital foi instalada em Campinas, em 1986. A experiência pelo interior continuou com Jundiaí em 1989, Santos em 1990 e Sorocaba em 1991. Nada muito arriscado. Eram cidades relativamente grandes e com poder de compra elevado.
O mergulho
Enquanto se consolidava como objeto de desejo no Brasil, o McDonald’s testava sua capacidade de infiltração em territórios mais difíceis. Em janeiro de 1990, a corporação abriu sua primeira unidade do lado de lá da Cortina de Ferro, em Moscou, na União Soviética. Em 1992, inaugurou a primeira loja em Pequim, na China. Era um restaurante especialmente grande até para os padrões atuais, com capacidade para 700 clientes.
Em terras brasileiras, a empresa preparava um movimento ousado em busca de novos públicos. Em 1994, alguns executivos fizeram uma visita à favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro. Cinco anos mais tarde, surgiu um quiosque de sorvetes do McDonald’s no Largo do Boiadeiro, que dava acesso à favela.
Era mais um tubo de ensaio que deveria reunir informações sobre o potencial de consumo das periferias brasileiras. Mas era mais do que isso. Pouco antes da inauguração, o diretor de Expansão da empresa, Filipe Vasconcelos, disse que aquela era “uma iniciativa simbólica que prova que nossos produtos estão ao alcance de todos”. Uma demonstração do caminho que o McDonald’s seguiria no futuro.
Na mesma época, diversas cidades relativamente pequenas do interior paulista registravam a abertura dos primeiros CNPJs associados às lanchonetes da empresa. Guaratinguetá, Rio Claro, Águas de São Pedro, Caraguatatuba, Marília, Araçatuba, Jaú. Em 2000, o McDonald’s tinha 130 CNPJs registrados no estado e anunciava que 15% dos investimentos futuros seriam destinados às periferias.
Mas essa interiorização, vale ressaltar, é praticamente uma exclusividade do Sudeste. Nas outras regiões, é raro encontrar lojas do McDonald’s fora das capitais. É o caso de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Amazonas, Pará e grande parte dos estados do Nordeste. Até a Bahia, estado brasileiro mais populoso fora do Sudeste, só tem quatro lojas longe da capital — e foi Salvador que inaugurou a presença da empresa no Nordeste, em 1989. Belém, por exemplo, só recebeu sua primeira unidade em 1998 e Manaus, em 2000.
A operação brasileira do McDonald’s é claramente concentrada no Centro-Sul do país. Mas, mais do que isso, é concentrada em São Paulo. Um levantamento feito pelo Joio encontrou 633 CNPJs ligados à empresa ativos no estado — 273 deles, ou 43%, na capital.
A abertura de novas lojas em cidades do interior paulista se intensificou na última década, quando os executivos da empresa perceberam o aumento da demanda fora da capital. Em 2010, a matriz norte-americana da corporação enviou ao Brasil um software pra auxiliar o Departamento de Expansão a identificar novos mercados.
Além de dados demográficos, o programa computava informações sobre o número de escolas, bancos e postos de gasolina, por exemplo. A circulação de pessoas pelo território é uma métrica importante para a implantação de uma unidade. As cidades mais bem cotadas recebiam uma visita da Expansão para determinar o melhor local para construir a loja. Mais do que qualquer outra coisa, ela precisa ser vista.
Mas essa interiorização, vale ressaltar, é praticamente uma exclusividade do Sudeste. Nas outras regiões, é raro encontrar lojas do McDonald’s fora das capitais.
Foi nessa época que Taubaté, cidade a 150 quilômetros de São Paulo, presenciou a chegada da segunda unidade do McDonald’s — a primeira fora de um shopping center. O terreno escolhido ficava em uma avenida movimentada, colada em uma das praças centrais da cidade e perto de diversos outros comércios.
A Praça Santa Terezinha era famosa pelos carrinhos de lanche que funcionavam até altas horas da madrugada. Era o lugar ideal para um taubateano em busca de um podrão. A chegada da maior grife mundial de hambúrgueres à vizinhança assustou quem trabalhava por ali.“A gente ficou bem apreensivo. Imaginando ‘poxa, agora vai afetar bem o movimento da gente, né?”, lembra Wagner Ribeiro da Silva, de 43 anos. Ele é um dos sócios da lanchonete Toninho Lanches, que funciona desde 1999 na praça — hoje a menos de 100 metros do McDonald’s.
A empresa criada pelos pais de Wagner, Antônio e Maria das Dores, contudo, não observou a esperada queda nas vendas. “Pelo contrário, na época nosso movimento até aumentou”, explica o empresário. Segundo ele, a chegada do McDonald’s fez aumentar o fluxo de pessoas na praça, o que beneficiou a maior parte dos comerciantes.
Ele acredita que os públicos do McDonald’s e da sua lanchonete são diferentes. “O taubateano até tem o costume de comer lanche, mas aquele podrão. Um lanche maior, mais recheado”, comenta. “Eu acho que se a gente trabalhasse com o mesmo tipo de produto seria diferente, talvez a gente tivesse que mudar nossa estratégia.”
Observador atento da lanchonete vizinha há mais de uma década, Wagner sabe que os principais frequentadores do McDonald’s são os jovens e as famílias com filhos. “É comum os pais virem aqui, pedirem lanches pra eles e depois irem lá buscar um McLanche Feliz pros filhos”, conta com uma risada. “E a gente percebe que a intenção deles é ir tirando o lanche do McDonald’s conforme eles vão crescendo.”
A quase 600 quilômetros de distância, em Lins, no oeste de São Paulo, outra empresária conta uma história semelhante. “Pra mim não mudou nada”, lembra Irene Silva sobre a chegada da gigante. Ela comanda há 30 anos a Mamute Lanches, que fica próxima ao primeiro e único McDonald’s da cidade, inaugurado há cerca de quatro anos.
Ela garante que a clientela não mudou e que é o público mais jovem que garante a sobrevivência do concorrente estrangeiro: “Aquilo lá é só criança. Adulto não come aquela porcaria”. E o McDonald’s sabe disso. Num relatório de 2020 direcionado a investidores, a Arcos Dourados, empresa que controla as operações da rede de fast-food na América Latina e Caribe, se diz “focada em jovens adultos na faixa de 14 a 35 anos e famílias com crianças”.
A bolha do Méqui
Tatuí, cidade com 120 mil habitantes localizada a cerca de 140 quilômetros da capital paulista, recebeu seu primeiro McDonald’s em setembro de 2017. A inauguração da loja, cercada de pompa e restrita a “autoridades e convidados”, está registrada em um vídeo publicado no YouTube.
Dentro da lanchonete, a prefeita da cidade à época, Maria José Gonzaga (PSDB), leu um discurso de agradecimento ao McDonald’s e assegurou: “Tatuí hoje está caminhando para o desenvolvimento”. O então vice-prefeito, Luiz Paulo Ribeiro, reforçou os agradecimentos e disse a um jornalista que a chegada da empresa era “um sinal de que eles acreditam no potencial de Tatuí”.
O dono da franquia, Claudio Alves Costa, também discursou aos convidados e agradeceu o grande apoio que recebeu da prefeitura da cidade. Além da unidade de Tatuí, Costa é sócio de outras 5 franquias: três em Sorocaba, uma em Itapetininga e uma em Boituva — todas cidades da mesma região.
O empresário é um símbolo da lógica de franqueamento do McDonald’s. Apesar de receber diariamente entre 10 e 15 consultas de interessados, a empresa privilegia quem já administra uma franquia na hora de abrir novas unidades. Até o começo de 2019, por exemplo, apenas 76 franqueados cuidavam das cerca de 400 franquias espalhadas pelo país (o restante das lojas é administrado pelo próprio McDonald’s). Isso faz com que alguns empresários, como Costa, concentrem lojas e poder em algumas regiões. Poder, por exemplo, para negociar com os voluntariosos governos municipais em busca de “desenvolvimento”.
No fim da solenidade de inauguração, uma bandeira do Brasil foi hasteada ao lado de uma do McDonald’s. Os políticos e empresários saíram da loja e abriram espaço para uma multidão de crianças e jovens. Ao jornalista que acompanhava a abertura da loja, um deles disse reconhecer a importância do empreendimento para a comunidade, principalmente para eles, jovens, “que agora têm mais um espaço para se divertir, ficar, comer, conversar e dar risada”.
A reportagem do Joio não encontrou pesquisas ou inquéritos nacionais que quantifiquem o consumo de fast-foods no Brasil. A Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, principal fonte de dados sobre os hábitos alimentares dos brasileiros, não apresenta um recorte sobre esse tipo de alimento. A pesquisa indica, contudo, uma piora na qualidade da dieta dos mais jovens.
Soma-se a isso o evidente avanço das redes de fast-food no Brasil. De acordo com a Associação Brasileira de Franchising, 16 das 50 maiores redes de franquias do país são do setor de alimentação. Juntos, McDonald’s, Burguer King, Subway e Bob’s têm quase 7.000 lojas espalhadas pelo Brasil.
Inexistem também estudos abrangentes sobre o impacto econômico da chegada de marcas como o McDonald’s em cidades pequenas e áreas periféricas. Ao que tudo indica, a instalação das lojas nessas regiões cria “bolhas geográficas” de consumo.
“Eu vejo a chegada do McDonald’s mais como uma oportunidade de pegar uma fatia do mercado que eles não abrangem”, explica Wagner Ribeiro da Silva, de Taubaté. Segundo ele, o movimento geral da região aumentou com a chegada da franquia, mas agora todos disputam entre si o que a gigante não consegue abocanhar. Quem sofre, mesmo, é quem teve o azar de ficar fora da bolha.
Num relatório de 2020 direcionado a investidores, a Arcos Dourados, empresa que controla as operações da rede de fast-food na América Latina e Caribe, se diz “focada em jovens adultos na faixa de 14 a 35 anos e famílias com crianças”.
Ver e ser visto
Há um outro caso, mais recente, que explica ainda melhor a formação dessa bolha. Ele também ajuda a entender os resultados daquele movimento de avanço sobre as periferias que começou em 1999, na Rocinha.
Em novembro de 2018, o McDonald’s abriu um quiosque de sobremesas em Cidade Tiradentes, um bairro do extremo leste da capital paulista. Apesar de existirem centenas de lojas na cidade, poucas ficam na zona leste.
De acordo com uma pesquisa desenvolvida no Brasil pela GS&NPD, as classes A e B são responsáveis por 61% dos gastos com fast-foods no Brasil. Com o quiosque em Cidade Tiradentes — e as outras lojas abertas na periferia — o McDonald’s buscava aumentar a participação das classes C, D e E nas suas vendas.
Cinco dias antes da inauguração, uma página do Facebook que divulga notícias do bairro publicou uma foto do futuro quiosque. Nos comentários da postagem, o tom era de comemoração, de euforia pela chegada da marca ao bairro.
Mas foi uma outra publicação que viralizou e chamou atenção para a inauguração.
Na época, a autora do texto, Mariana Pimentel, era professora de inglês em uma escola de Cidade Tiradentes. Durante alguns dias, tudo que ela ouvia dos alunos era sobre a chegada do quiosque. Em entrevista ao Joio, ela explicou por que o episódio a marcou tanto. “Às vezes é tão banal pra gente ir ao McDonald’s, tem gente que vai toda semana, mais de uma vez por semana até. Mas para eles simboliza finalmente serem colocados no mapa.”
Ver um McDonald’s no próprio bairro significava também ser visto pelo McDonald’s. Antes, pra ver o “M” amarelo na fachada de uma loja, era preciso tomar pelo menos 50 minutos de ônibus até o Shopping Metrô Itaquera, onde há uma unidade.
Para Mariana, que também é da zona leste da capital, a euforia dos seus alunos diz muito sobre o contexto de Cidade Tiradentes. Ela explica que muitos moradores começam a trabalhar cedo para ajudar com as despesas da casa. “Então eles tentam guardar um dinheiro pra fazer o rolê deles, sair com os amigos. Eu acho que faz diferença na autoestima deles quando eles podem ir lá, nem que seja pra comprar um sorvete, sabe?”
Depois da inauguração, o estacionamento em que o quiosque foi instalado se transformou em um dos principais ambientes de sociabilidade da região. As famílias faziam compras no supermercado e depois aproveitavam para circular por ali e, claro, tomar um sorvete.
A gigante dos hambúrgueres reagiu rápido ao sucesso. Em 2019, inaugurou também uma lanchonete no interior do supermercado. “O movimento aumentou pra todo mundo”, lembra Viviane Santos, de 24 anos, que trabalha em um dos quiosques que funcionam no estacionamento — e vendem lanches, pastéis, churros e espetinhos. “Muitas vezes o McDonald’s não suportava o volume de clientes, aí o pessoal vinha aqui pra fora procurar outros lanches.”
Se não há cultura e lazer
Mariana, que hoje tem 30 anos e faz mestrado em linguística cognitiva, considera que a chegada do McDonald’s ao bairro também é positiva porque gera empregos locais. Ela lembra que muitos moradores gastam horas e horas no deslocamento entre Cidade Tiradentes e o centro de São Paulo, onde a maioria trabalha.
O tempo economizado no translado poderia ser dedicado, por exemplo, aos filhos e à comunidade. “Por mais que existam algumas atividades culturais e esportivas, a gente sabe que a Cidade Tiradentes é muito marcada pelo tráfico de drogas”, explica. “Ter os pais mais presentes influencia muito nisso. É bom também pros jovens, que podem estudar e trabalhar perto de casa.”
Assim como aconteceu em Tatuí, o McDonald’s de Cidade Tiradentes se transformou em um ambiente de convivência, um substituto aos escassos equipamentos de lazer e cultura disponíveis para os mais jovens. Isso cria uma associação entre a comida servida ali e o prazer oriundo da convivência com os amigos e a comunidade. Cria também um ambiente perfeito para a construção de memórias afetivas positivas, um dos principais fundamentos da estratégia de marketing da corporação.
Mas esse e outros temas relacionados à operação da gigante dos hambúrgueres no Brasil serão tratados em outros textos. Esta é a primeira de uma série de reportagens que busca compreender melhor o caminho trilhado pelo McDonald’s para se tornar a principal rede de fast-food do país — e os impactos que isso gerou.