A “responsabilidade compartilhada” – estabelecida em 2010 pela Política Nacional de Resíduos Sólidos e que caberia a todos os atores da cadeia – só existe no papel
O ano é 1989 e muitas famílias vivem precariamente em Porto Alegre. O lugar, Ilha das Flores, nada tem a ver com um paraíso, como o nome sugere – muito pelo contrário, quem já viu o icônico documentário homônimo de Jorge Furtado sabe que de flores a ilha não tem nada. O cenário sujo, triste e desumano é a casa e o sustento de mulheres e crianças que vivem das sobras que outros seres humanos descartaram e que os porcos rejeitaram.
Há uma década o Brasil tenta pôr em prática a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), criada para dar conta do lixo que nós, mamíferos, bípedes, com telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, produzimos diariamente nos vários âmbitos da vida. São resíduos domiciliares, industriais, da construção civil e hospitalares, para citar alguns. O governo federal, que deveria puxar a fila para fazer valer o compromisso, até hoje não publicou um plano nacional de gestão dos resíduos, o Planares.
São muitas ações, metas e definições previstas na Lei 12.305, que institui a PNRS. A normativa delega responsabilidades a todo mundo: indústria, poder público, comércio e consumidores, mas, onze anos depois, é sobre as costas dos catadores de materiais recicláveis que recai toda essa montanha de lixo.
Na cerimônia de sanção da PNRS, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que a lei seria “uma revolução em termos ambientais”: “Ela organiza uma série de instrumentos que estavam dispersos sem, no entanto, perder de foco a principal questão, que é a questão social.”
Mas na prática veremos que “revolução” foi uma palavra pretensiosa demais. Tanto em termos ambientais quanto de reconhecimento dos catadores, principal grupo de trabalhadores envolvido nesse sistema. Prova disso é que o cenário mudou pouquíssimo de lá para cá, e os objetivos principais da PNRS ainda não foram cumpridos.
Para o ambientalista e ex-deputado Fábio Feldmann (à época, no PV/SP), “dez anos já teriam sido suficientes para nós estarmos em um estágio muito mais avançado do que estamos”.
“Se for apontar algum avanço, talvez seja o marco legal em si, e o fato de esse marco legal retratar uma decisão política do Estado brasileiro de resgate de uma dívida histórica com uma categoria, a dos catadores e catadoras”, avalia Cláudio Luiz dos Santos, coordenador nacional do grupo de trabalho Catadoras e Catadores da Defensoria Pública da União (DPU). “Historicamente eles executam uma atividade de natureza pública, a coleta seletiva, e sem nenhuma contrapartida, seja do poder público, seja do setor empresarial.”
— “Se for apontar algum avanço, talvez seja o marco legal em si"
“Não quero que meus filhos repliquem o que eu tive”
“A gente veio de Goiás, aqui no entorno do Distrito Federal. Lá a família era muito grande e meu pai tinha umas coisas velhas que trocou por uma caminhonete”. Foi assim que Aline Sousa da Silva teve o primeiro contato com o dia a dia dos catadores, aos 14 anos, quando mudou-se para uma ocupação irregular em Taguatinga, cidade satélite de Brasília.
“Com isso, ele falou que ia puxar material, catar material na rua para sustentar a gente”, lembra. “Foi a partir disso que eu comecei a ver o que era material reciclável. Na ocupação, tinham famílias morando há muito tempo que já mexiam com isso”.
Ela conta que o pai não abriu mão de matricular todos os filhos na escola. No contraturno, ela ia trabalhar com a avó, também catadora, na rua.
“Eu achava muito perigoso, porque na época os cavalos disparavam, e o trânsito também. Tinha gente que xingava quando a carroça passava, mandava sair do meio. Eu ficava com medo de acontecer alguma coisa com ela”, conta. Aline é a terceira geração de catadores na família, ela estudou até o 1º ano do ensino médio e fez o Encceja para concluir os estudos em 2019.
Foi vendo a avó recolher material na lixeira e separar tudo antes de pôr no carrinho que Aline entendeu como o pão chegava em casa.
Atualmente ela é coordenadora do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) e também presidente da Central de Cooperativas de Materiais Recicláveis do Distrito Federal (Centcoop), um complexo de reciclagem localizado na Cidade Estrutural, a 15 quilômetros de Brasília, onde se realiza a triagem e a comercialização dos materiais oriundos de 11 cooperativas. O maior lixão da América Latina também se encontrava ali, exatamente na Estrutural, e foi desativado em 2018. A criação do complexo foi fundamental para acolher e dar meios de trabalho mais decentes aos que dependiam do lixão.
Apesar da estruturação, os trabalhadores organizados estão longe de ter sua dignidade assegurada. Aline conta que o fato de as pessoas não separarem o lixo doméstico faz com que “o catador se sinta pior do que aquele lixo que ele está separando”. Ela conta o porquê: “A gente acha de tudo: bicho morto, fezes e tanta coisa que não deveria passar por aqui”.
Ela não quer o mesmo futuro para os seus sete filhos: a mais nova tem um ano, o mais velho, 14. E nem que outras crianças tenham infâncias marcadas por essa experiência: segundo contou ao Joio, menores de 18 anos são proibidos de entrar nas cooperativas associadas à Centcoop.
“Meus filhos não ficam aqui no complexo. Tento privar o máximo possível. Eles são crianças, não quero que repliquem no futuro o que eu tive”. O marido de Aline também é catador, e ela deseja que termine com eles o exercício dessa atividade. “Meus filhos vêm no máximo com meu marido quando ele vem me deixar, no carro, só pra ver onde a mamãe trabalha, e vão para casa.”
Afinal, de quem é a responsabilidade?
A PNRS estabelece diretrizes e responsáveis para a gestão do lixo. Alguns dos seus princípios são o “poluidor pagador”, o reconhecimento do resíduo reutilizável e reciclável como bem econômico e de valor social, e a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos – ou seja, todos devem atuar em cooperação, tanto as empresas fabricantes e distribuidoras quanto consumidores e poder público.
O gerenciamento de resíduos deve observar a seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.
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Antes de ter de lidar com zilhões de embalagens, no mundo ideal da PNRS elas nem deveriam existir.
A reciclagem, apresentada pelo setor empresarial como a solução de todos os problemas, está só no final da lista de prioridades. Antes de ter de lidar com zilhões de embalagens, no mundo ideal da PNRS elas nem deveriam existir.
Mas esses resíduos, principalmente os descartáveis, da indústria de alimentos e bebidas, não desaparecerão da noite para o dia. Principalmente porque o modus operandi da produção dos ultraprocessados depende dessas embalagens para ser viável. Já imaginou um biscoito sendo vendido potinhos de vidro retornáveis?
Enquanto não se consegue alcançar o ideal (isto é, a não geração desses bens), cada setor, de acordo com a PNRS, possui as seguintes responsabilidades, para mitigação do crescimento acelerado dos resíduos sólidos urbanos:
Alguns setores estão, no papel, obrigados a estruturar e implementar sistemas de logística reversa, independentemente do serviço público de limpeza urbana. É o caso dos fabricantes e distribuidores de agrotóxicos; de pilhas e baterias; de pneus; de lâmpadas; de eletroeletrônicos, entre outros. A empresa tem que disponibilizar pontos de entrega dos resíduos no comércio e depois recolher, para dar a destinação ambientalmente adequada. O que a PNRS determina, então, que para descartar qualquer um desses itens, o consumidor deve procurar o estabelecimento no qual fez a compra, para entregar o resíduo, ou entrar em contato com o fabricante, para saber onde é o ponto de coleta mais próximo.
Em outra frente, o texto da lei não detalha regras para o sistema de logística reversa de embalagens plásticas, metálicas, de vidro, aço etc – ou seja, as mais comuns do nosso dia a dia. A PNRS deixa para um regulamento futuro – decretos, acordos, termos de compromisso ou planos de gestão – a missão de estender e detalhar esse processo.
A lei ainda mantém uma brecha aberta: diz que a definição dos produtos e embalagens deve considerar a viabilidade técnica e econômica da logística reversa, assim como o grau de extensão do impacto à saúde pública e ao meio ambiente. Mas quem atesta a viabilidade técnica e econômica? A normativa não estabelece.
Data de validade para os lixões nas capitais: agosto
Em 2010, quando a Política Nacional de Resíduos Sólidos foi aprovada, os objetivos que ganharam mais destaque foram a erradicação dos lixões e o reconhecimento da atividade dos catadores de materiais recicláveis como um elo importante da cadeia.
A meta de fechar todos os lixões até 2014 não foi cumprida e passou por uma atualização, com o novo marco legal do saneamento básico, publicado no ano passado. Agora as capitais e regiões metropolitanas têm até agosto deste ano para acabar com os lixões, enquanto que para cidades menores o prazo vai até 2024.
O coordenador do grupo Catadoras e Catadores da DPU, Cláudio Luiz dos Santos, chama a atenção para algo que deve vir antes do encerramento dos lixões e que até o momento não parece ser prioridade do governo: a situação social dos catadores que vivem do lixão – e que muitas vezes estabelecem moradia no local.
Lembra de Ilha das Flores? Em 2019 – 30 anos após as gravações do documentário – o G1 mostrou que o lixo ainda é a principal fonte de renda para os moradores, que não mais convivem com os lixões, mas sobrevivem a partir da reciclagem nos centros de triagem, que, durante a apuração da reportagem, estavam desativados – o material era despejado na frente das casas. A região é a mais pobre e vulnerável de Porto Alegre. Quando um local assim é fechado, recorda Santos, esses trabalhadores perdem não só o ganha-pão, mas também o teto: “É penoso e insalubre, sempre repito isso. É até perigoso. Mas é um processo de subsistência que não pode ser desconsiderado. São seres humanos que precisam se alimentar. Precisam do pão de cada dia.”
— “É um processo de subsistência que não pode ser desconsiderado. São seres humanos que precisam se alimentar.”
O coordenador também aponta a falta de planejamento na busca de um objetivo que é complexo: “É uma equação que não se resolve se você não antecipar um cronograma, um processo de transição gradual.”
Para isso, pondera o ex-deputado Fábio Feldmann, seria preciso fortalecer as cooperativas de catadores. Não só levar o catador autônomo para a cooperativa, mas também facilitar ou fornecer a estrutura necessária para que elas funcionem e deem segurança e cidadania ao trabalhador. O problema é que “esse governo [Bolsonaro] associa o apoio a cooperativas e catadores ao PT, então ele tem uma política ostensivamente contrária”, diz Feldmann.
Em 2019 o governo federal lançou o Programa Nacional Lixão Zero, que foi construído sem participação do movimento de catadores. A DPU chegou a publicar uma nota técnica sobre a iniciativa, na qual aponta a fragilidade da proposta quando o assunto é a inserção produtiva do catador que, hoje, ainda vive do lixão. O documento também afirma que, quando não há essa preocupação, o encerramento dos lixões é ilegal.
Mesmo para os catadores que já estão organizados em cooperativas ou associações, a situação atual não reflete “a revolução” que a PNRS projetou.
“Para a gente conseguir fazer com que [a sociedade] enxergue primeiro o ser humano, o catador enquanto pessoa, é difícil”, comenta Aline, que apareceu no começo da reportagem.
Para ela, o reconhecimento do valor econômico do trabalho feito por esses grupos é igualmente difícil e que o primeiro passo precisa ser dado pelo poder público. Essa valorização, diz, deve ser feita por meio da contratação das cooperativas e do financiamento de infraestrutura para que elas funcionem – por exemplo, cedendo galpões, comprando caminhões, prensas e equipamentos de segurança.
Isso é o que determina a lei, mas raramente se verifica na prática, aponta Cláudio dos Santos. Quase sempre as prefeituras tratam as cooperativas como empresas, sem reconhecer efetivamente a obrigação do poder público de inclusão e manutenção da categoria no sistema: “Quando se trata da política pública de resíduos sólidos, do sistema de coleta seletiva, com a participação dos catadores, nós estamos falando de profissionais. Pessoas, acima de tudo. Mas profissionais, que não estão ali pedindo favores”.
Ao longo desta primeira década da PNRS, o coordenador analisa que também surgiu uma maior conscientização entre os catadores sobre o valor do trabalho que realizam, algo que os coloca como protagonistas desse sistema. Aline da Silva destaca que “o que a gente vê, depois desse tempo todo, é que a gente sempre fez um serviço de graça tanto para o poder público quanto para as empresas fabricantes. Agora é que a gente veio reconhecer o nosso papel dentro dessa cadeia”.
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“A gente sempre fez um serviço de graça tanto para o poder público quanto para as empresas fabricantes.”
O que fazer e como fazer
A PNRS tem ainda objetivos mais gerais, como a proteção da saúde pública e da qualidade ambiental, o estímulo a padrões sustentáveis de consumo e produção, o incentivo à indústria da reciclagem, a universalização da prestação dos serviços públicos de limpeza urbana e do manejo de resíduos.
Para que não fique só no papel, a lei elenca ferramentas como acordos setoriais, termos de compromisso, fundos de financiamento, a própria coleta seletiva, os órgãos colegiados e, principalmente, os planos de gestão dos resíduos. Esse planejamento deve apresentar diagnósticos da situação do manejo de resíduos no local, metas de redução, reutilização e reciclagem de resíduos, normas para o acesso a recursos financeiros, além de meios de controle e fiscalização.
Só que, apesar de serem a base para que a PNRS seja implementada de fato, esses planos são um ponto esquecido da lei, analisa Luis Fernando Cabral, promotor de Justiça e diretor de relações institucionais da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa).
Os planos de gestão devem ser feitos em âmbito municipal, estadual e nacional. De acordo com levantamento do Ministério do Meio Ambiente (MMA), até 2019, 18 estados haviam entregado esse planejamento. Na esfera dos municípios, o levantamento do IBGE referente a 2017 aponta que apenas 55% deles apresentaram o documento.
O governo federal, que deveria puxar a fila, até hoje não publicou seu plano nacional de gestão dos resíduos. No início da gestão de Dilma Rousseff, em 2011, chegaram a ser realizadas audiências públicas e uma proposta preliminar, mas o texto final não foi publicado e sumiu do mapa – foi retirado do site oficial do MMA.
A administração Jair Bolsonaro retomou a discussão no ano passado. Abriu consulta pública na página do Ministério do Meio Ambiente e, depois de pressão da sociedade civil, organizou audiências públicas virtuais para discutir o tema regionalmente. O prazo para discussões foi encerrado, e até o fechamento desta reportagem não havia cronograma de publicação do texto.
Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o ministério disse à reportagem que “realiza, neste momento, a compilação das contribuições da consulta pública e das audiências”.
Vale destacar que o texto recebeu críticas por conflitos de interesses, já que a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), um ente privado, construiu o plano com o ministério. Também porque o foco das soluções está em taxar e responsabilizar o consumidor, e não os grandes geradores de resíduos.
“O que acontece na prática? O município não tem plano, então ninguém tem diagnóstico. Como ninguém tem diagnóstico, na hora em que você faz o acordo setorial ou o termo de compromisso [com as empresas], como é que vai quantificar? É uma coisa amarrada à outra. E o que menos existe no Brasil são os planos”, afirma o diretor da Abrampa. “O Ministério Público tem entrado o tempo todo com ações para obrigar os prefeitos a fazer o plano.” E por que os planos não saem do papel? “Talvez seja má vontade política”, diz Cabral.
— E por que os planos não saem do papel? “Talvez seja má vontade política”
Feldmann também critica a inércia do poder público. “Numa campanha política esse tema deveria estar presente, porque faz parte do cotidiano do cidadão, mas normalmente está ausente da agenda política”, descreve. “À medida que ele fica ausente da agenda política, os agentes políticos tendem, na minha opinião, a tratar como assunto de menor relevância.”
A falta de diagnósticos e planos também é um entrave para fazer valer uma importante responsabilidade do setor corporativo: a de remunerar o titular de serviço público de limpeza urbana e de manejo de resíduos que assume a responsabilidade das empresas no sistema de logística reversa.
No frigir dos ovos, quem paga essa conta é o cidadão. Muitas vezes, sem nem saber, já que a cobrança da taxa de limpeza urbana não é individualizada, vem embutida no IPTU. Pode até pagar um valor injusto. “As classes A e B geram mais resíduo que as classes C e D, e ambas vão pagar a mesma coisa”, Cabral explica. “Porque o pagamento da fatura mensal da companhia de limpeza pública é feito com dinheiro do erário, vem dos impostos, do orçamento geral do município.”
Veremos, na próxima reportagem desta série, que a implementação capenga da PNRS era uma tragédia anunciada: durante a tramitação da lei, o setor empresarial já avisava que não assumiria sua responsabilidade. Ou que demoraria a assumir.