Colegiado nacional manifesta “repúdio” à indicação de representantes da indústria de ultraprocessados e de ruralistas para comando do órgão no estado
O colegiado nacional de presidentes dos 27 conselhos estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável fará, nos próximos dias, uma nota pública de repúdio à possibilidade de o governador João Doria escolher representantes da indústria de ultraprocessados e do agronegócio para dirigir o Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de São Paulo (Consea-SP). “Trata-se de um notório conflito de interesses”, afirma Renata Machado, presidente do Consea-RJ, a O Joio e O Trigo. “É muito grave que, neste momento em que a fome cresce no país, um conselho de controle social e de garantia do direito humano à alimentação adequada seja dirigido por representantes de interesses privados.”
No dia 22 de abril, O Joio publicou que o Consea-SP retomou suas atividades, depois de mais um ano sem funcionar, com a indicação de João Dornellas, da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) e Amanda Araujo, diretora da Sociedade Rural Brasileira (SRB) na cabeça da lista tríplice para sua direção. Desde então, a Frente Parlamentar pela Reforma Agrária, Agricultura Familiar, Segurança Alimentar e Regularização Fundiária Rural, coordenada pela deputada estadual Márcia Lia (PT/SP), solicitou formalmente ao governador João Doria esclarecimentos sobre o processo de escolha da lista. Também solicitou que o Ministério Público de São Paulo anexe o ofício à representação feita pelo Fórum Paulista de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional sobre a vacância do Consea-SP, em 2019.
Aos poucos, a questão se torna nacional. Em 27 de abril, os Conseas da região Sudeste (ES/MG e RJ) divulgaram uma nota pública sobre o “tamanho desrespeito” ao Consea-SP. Em 30 de abril, a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, da qual fazem parte membros de Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional e Conselhos de Alimentação Escolar Brasil afora, enviou uma carta de repúdio ao governador de São Paulo. Em 5 de maio, movimentos, coletivos e entidades realizaram um tuitaço com a hashtag #AbiaNoConseaNão. Agora, o colegiado dos presidentes dos Conseas — do qual o presidente do Consea-SP fará parte — decidiu se manifestar.
“Captura corporativa”
Em comum, essas manifestações pontuam que o setor privado representa interesses financeiros e comerciais, e não o interesse público. Elisabetta Recine, do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição, da Universidade de Brasília, afirma que o diálogo é necessário e sempre foi feito, mas que as responsabilidades, papéis, interesses e poder decisório são distintos. “O Consea deve ter a questão do direito humano à alimentação no centro dos processos e decisões. Entregar sua direção àqueles que têm interesses privados fere mortalmente seu objetivo.”
O Consea nacional – extinto em 2019 — sempre prezou que a representação da sociedade civil fosse a dos titulares de direito, com prioridade aos que mais sofrem violações ao direito à alimentação, conta Recine. “É um princípio dos direitos humanos priorizar aqueles que estão em situação de maior vulnerabilidade, transposto para a própria representação”, afirma ela. A indicação de setores privados, além de violar esse princípio, significa a captura da agenda da segurança alimentar e adequada por interesses em conflito com povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultura familiar, observa ela.
A preocupação das entidades, movimentos, coletivos e conselheiros é que essa entrega da agenda da segurança alimentar e nutricional a representantes do mercado se reproduza em outros conselhos e espaços de participação e controle social. “Isso vai privilegiar setores oligopolizados, concentradores de riqueza e responsáveis por parte dos problemas de acesso à comida de verdade pela maioria da população”, analisa Recine. “Essa captura corporativa se dá para reagir a questões inegáveis que a sociedade coloca para esses setores: a relação da comida ultraprocessada e o aumento de doenças, a evidência do papel do sistema alimentar na crise climática, o esgotamento de recursos naturais, a contribuição de sistemas concentrados e oligopolizados para a desigualdade”, enumera.
Mesmo o secretário de Agricultura e Abastecimento de São Paulo, Gustavo Junqueira, faz a distinção entre “agentes de mercado” e “sociedade civil”. Em vídeo publicado na página do Consea-SP, ele menciona o mercado e a sociedade civil como agentes distintos.
O mesmo vídeo, no entanto, explicita o perigo da captura dos conselhos por visões que não levam em conta o direito humano à alimentação. Junqueira, secretário responsável pelo Consea-SP, usa um conceito antigo de segurança alimentar, baseado em uma abordagem do pós-Segunda Guerra Mundial: produzir e garantir segurança sanitária. Também fala do acesso a alimentos saudáveis como um direito “dos consumidores”. Isto é, um “direito de comprar”. Ele não menciona o direito humano à alimentação de quem passa fome porque não tem dinheiro.