Numa das reportagens mais importantes já publicadas pelo Joio, a atuação do secretário do Ministério da Saúde em favor da indústria de ultraprocessados fornece o retrato perfeito de um Estado capturado por interesses privados
A revelação de que Arnaldo Medeiros, chefe da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde, intercedeu para “esperar” o setor empresarial de alimentos é um escândalo com tantos significados que se torna difícil escolher o que é mais relevante. É como uma caixa de Nestlé Especialidades, em que é impossível saber qual o pior bombom. De toda maneira, seria um erro acreditar que se trata de um ato isolado cometido por um servidor suspeito: é um retrato perfeito de um Estado capturado por interesses privados.
Reportagem de Guilherme Zocchio publicada esta semana pelo Joio mostra que Medeiros atrasou a divulgação do plano de combate a doenças crônicas a pedido da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia). O documento foi elaborado sob uma consulta pública que durou 62 dias, e a Abia não participou, alegando que o prazo era curto. Ainda assim, o chefe da SVS determinou que só publicaria o documento depois que a entidade — que representa empresas como BRF, Bunge, Danone, McDonald’s e Nestlé — enviasse sugestões de alteração.
Não é exagero afirmar que se trata de uma das maiores revelações trazidas à tona por nós em quatro anos de existência. Documentamos de maneira irrefutável o momento no qual um secretário é flagrado intercedendo em favor de um interesse privado.
Para piorar, no dia seguinte, a repórter Luísa Souza trouxe a informação exclusiva de que o Ministério da Saúde não foi capaz de contratar uma empresa para realizar o principal inquérito do país sobre doenças crônicas, e ainda por cima empurra com a barriga a divulgação dos dados de 2020.
Imaginar que tudo se trate de incompetência seria abrir mão de responsabilizar os atores políticos que estão levando o país a um apagão completo de dados e de ações. Trata-se de um projeto de país regido pela ignorância – e negligência – absoluta.
A facilidade com que a Abia se adaptou ao bolsonarismo, e o otimismo que ela deposita na onda obscurantista que se apossou do Palácio do Planalto, só reforçam o que se sabia há muito: para proteger os lucros, corporações como Nestlé, Danone, Pepsico e companhia não têm problemas com o negacionismo científico. Muito pelo contrário.
Quando os crimes voltarão a ser crime?
Já havíamos apontado, no ano passado, que o bolsonarismo não foi capaz de renovar o plano nacional responsável por prevenir e combater as doenças que mais matam brasileiros. Pudera: uma iniciativa desse tamanho demanda uma enorme articulação e um esforço de inteligência, dois itens que faltam na Esplanada dos Ministérios, muito mais que vacinas.
O fato de o secretário atentar contra o principal plano relativo à maior causa de mortes do país torna a situação muito mais grave. Em tempos normais, Medeiros perderia o cargo e responderia pelo crime que cometeu.
Não há corrupto sem corruptor
É muito importante recordar que o secretário não agiu sozinho. As mesmas corporações que desejam rasgar o Guia Alimentar para a População Brasileira novamente atuam abertamente contra o interesse público. Graças à construção ideológica realizada nas últimas décadas, as pessoas suspeitam de políticas públicas e depositam boa-fé nas grandes empresas, inclusive para resolver problemas como fome, falta de oxigênio e escassez de vacinas. O caso de Medeiros mostra que é como culpar a marionete pelas palavras que saíram da boca do ventríloquo.
Reconhecer as coisas pelo nome
No Joio, nunca chamamos as fabricantes de ultraprocessados de criminosas. É uma palavra, de fato, pesada. Mas entendemos que é hora de explicitar esse aspecto. O passado as condena. Entre tantas outras, foram essas empresas que manipularam evidências científicas e retardaram a ação dos Estados nacionais no banimento das gorduras trans, que causaram dezenas de milhares de mortes ao ano durante décadas.
Também foram essas empresas que promoveram o uso de fórmulas infantis em locais sem saneamento básico. Nunca saberemos quantos milhares de vidas de bebês se perderam nessa antiga pandemia que vitima muito mais os pobres. Nunca saberemos quantas vidas foram prejudicadas pela ausência de aleitamento materno.
O caso do secretário Medeiros fornece uma evidência atualíssima de como as corporações representadas pela Abia atuam de maneira frontal contra o interesse da população.
Organizar a fila do pão
Se a indústria do cigarro foi proibida de se sentar à mesa de negociações quando se trata da formulação de políticas públicas sobre o tabagismo, por que a indústria de ultraprocessados segue a contar com nossa boa vontade? É hora de demarcar claramente a contribuição que essas corporações podem dar aos processos políticos.
Recentemente, a Anvisa decidiu equiparar interesses públicos e privados na discussão sobre um novo modelo de rotulagem de alimentos processados e ultraprocessados. A decisão levou ao atropelo das evidências científicas e a um resultado que está longe de ser o melhor para a sociedade.
Se queremos recuperar o horizonte de que as políticas públicas sejam, de fato, públicas, é preciso estabelecer uma hierarquia clara sobre o lugar que cada um ocupará à mesa de discussão. Evidências científicas independentes devem ter preferência às evidências encomendadas por empresas. Os resultados para a sociedade devem vir à frente das análises sobre os impactos para os lucros privados.
A agronegociação da Saúde
Se antes o Ministério da Saúde era uma esperança de contraposição à captura corporativa do Ministério da Agricultura, o escândalo envolvendo Medeiros parece indicar que a pasta também está sendo tomada por agronegociatas. Os quadros técnicos da Saúde sentem-se cada vez mais isolados e atropelados na defesa de que as políticas públicas se guiem pelo óbvio: as evidências científicas. Diariamente, as pesquisas cooptadas por interesses corporativos, quando não o achismo, ganham terreno e passam a ser a baliza de um Estado fundamentalista na defesa de interesses privados.
É preciso sair do estado de choque para recuperar a capacidade de se chocar, verdadeiramente, com esses crimes. Estamos mergulhados num ciclo vicioso no qual a enxurrada de desmontes, retrocessos e infrações confunde nossa ação, leva à prostração e faz perder de vista a possibilidade de um futuro melhor.
Sem ilusões
Nesse sentido, o impeachment de Jair Bolsonaro deve ser entendido como um primeiro e pequeno passo. Acreditar que esse Estado será resgatado das garras de interesses privados tampouco nos parece suficiente. A apropriação que se construiu ao longo das últimas décadas só pode ser revertida com uma refundação das bases da nossa sociedade, substituindo a competitividade extrema por um horizonte no qual a solidariedade e o bem comum voltem a ser os princípios que regem nossas ações.
Não devemos ter a ilusão de que isso possa se dar de cima para baixo, como aconteceu em outros períodos históricos. Assim como não é papel das empresas produzir bem comum, tampouco se pode esperar que um Estado a serviço delas tenha essa capacidade. A sociedade brasileira tem uma bela trajetória de formulação de ideias que resultaram em realizações na promoção da alimentação adequada e saudável. O desafio, agora, é gigantesco: fazer com que este país possa estar à altura de nós mesmos.