O Joio e O Trigo

Como os ruralistas fazem para adaptar projetos em tramitação no Congresso aos seus interesses

Documentos revelados por O Joio e O Trigo mostram a atuação da Frente Parlamentar da Agropecuária e do Instituto Pensar Agro para escolher relatores e até autores de propostas

A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), em conjunto com o Instituto Pensar Agro (IPA), decidiu suas prioridades para 2021 no Congresso Nacional: o PL-2633/2020, conhecido como PL da Grilagem, já aprovado pela Câmara na primeira semana de agosto e já enviado ao Senado; o PL-3729/2004, usado para flexibilizar o licenciamento ambiental, aprovado na Câmara em maio e agora em tramitação no Senado, e o PL-490/2007, que institui a aprovação do Congresso Nacional para a demarcação de terras indígenas. Caso seja aprovado, a decisão ganha mais um componente político, em detrimento das decisões técnicas: a aprovação em casas legislativas controladas por uma maioria ruralista.

A FPA conta com quase metade dos deputados federais e com a maioria dos senadores. O Congresso conta com apenas uma representante indígena, a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR).

Conjunto de ataques aos indígenas

Ligado à bancada ruralista, o deputado Homero Pereira (PR-MT) morreu em 2013. E seu projeto, que já tinha uma tramitação lenta, passou a ter sucessivos arquivamentos e desarquivamentos (os projetos de lei são arquivados ao fim de cada legislatura e dependem de pedidos de desarquivamento para voltar a tramitar) e foi ganhando novos elementos, também prejudiciais aos povos originários e, por consequência, aos tradicionais, como os quilombolas. O próprio Homero era dono de 7 mil hectares de terras em Nossa Senhora do Livramento, um município onde 418 famílias da comunidade do quilombo Mata Cavalo lutam desde 2004 pela demarcação de um território de mais de 14 mil hectares.

Como uma bomba de fragmentação, a proposta se tornou um conjunto de ataques aos indígenas, os atingindo em diversos direitos. Com Jair Bolsonaro na Presidência da República e Arthur Lira (PP-AL) à frente da Câmara, os ruralistas estão vendo a chance de aprovar o projeto, que enfrenta grandes resistências de ativistas de direitos humanos e ambientalistas. A forma atual da proposta é um exemplo de uma das formas como o IPA e a FPA utilizam os projetos para aprovar o maior número possível de medidas que os favorecem.

No especial Agro é lobby  temos mostrado como o IPA e a FPA operam em Brasília, com parlamentares ligados a suas causas, técnicos a serviço do instituto e presidentes de associações a ele filiadas. A reportagem teve acesso a um documento que mostra quais são as prioridades por temas no Congresso, Executivo e Judiciário, com os coordenadores da FPA e do IPA para cada um deles e um técnico responsável. 

Mostra, também, como eles buscam manipular o processo legislativo. As manobras não são ilegais, mas mostram como a tramitação e a aprovação dos projetos vai muito além de apresentar as propostas e conseguir maioria para aprová-las.

Escolha de relatores favoráveis

No caso do PL-490, a estratégia começou com os apensamentos de diversas propostas, as últimas delas de 2020. Assim, as novas propostas conseguiram pegar carona em um projeto com a tramitação já em andamento. Outro ponto importante é conseguir a escolha de relatores favoráveis, para que a proposta mantenha os objetivos. 

Com a ascensão de Lira, a situação ficou ainda mais fácil. Um acordo garantiu o comando de três comissões mais importantes para a FPA para deputadas bolsonaristas: Carla Zambelli (PSL-SP) ficou com a presidência da Comissão de Meio Ambiente, Aline Sleutjes (PSL-PR) com a da Agricultura e Bia Kiscis (PSL-DF) com a de Constituição e Justiça (CCJ). Cabe aos presidentes das comissões designar os relatores. A CCJ é particularmente estratégica, pois é a única comissão com poder para parar a tramitação de um projeto, sob a alegação de inconstitucionalidade.

Turbinado, o PL-490 passou a incluir o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Ou seja, estabelece uma data para fazer valer o direito dos indígenas a seus territórios tradicionalmente ocupados. A Constituição de 1988, no entendimento dos ativistas de direitos humanos, trata o direito do indígena aos seus territórios tradicionais como originário, algo que antecede a própria criação do estado brasileiro. 

A imposição de um marco temporal, defendida pelos ruralistas, impõe que os indígenas só têm direito à demarcação de terras em que estavam quando a Carta Magna foi promulgada. Líderes indígenas argumentam que a decisão pode favorecer criminosos, porque premia fazendeiros que os expulsaram de suas terras com violência nos anos anteriores.

O tema também está em análise no Supremo Tribunal Federal (STF), que deve decidir se o entendimento que limita o direito indígena é possível na interpretação do texto constitucional.

O relator do caso que tem repercussão geral no assunto (ou seja, serve de parâmetro para casos semelhantes), o ministro Edson Fachin, já havia apresentado na semana passada seu voto contrário à possibilidade de marco temporal. Nesta semana, o ministro Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, votou favorável aos interesses dos ruralistas e contra os direitos indígenas. Com um voto para cada lado, a votação foi mais uma vez suspensa, desta vez por um pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes. Nestes casos, não há previsão de quando a votação será retomada.

Se o STF decidir que esta definição de uma data é inconstitucional, mesmo que o projeto seja aprovado por deputados e senadores e sancionado pelo presidente, o trecho do marco temporal vai perder o efeito por ser inconstitucional. O assunto é controverso entre os ministros e muitos ativistas de direitos indígenas temem que a Corte deixe a decisão para o Congresso, com a regulamentação na forma da lei.

Exploração comercial em terras indígenas

Outro ponto incluído no projeto foi a possibilidade de exploração comercial das terras indígenas. Apesar de não haver uma previsão legal, alguns ruralistas já têm feito parcerias com alguns grupos indígenas para a produção de grãos dentro de seus territórios. A integração – que enfraquece a cultura indígena e prejudica a preservação ambiental, segundo seus críticos – tem o presidente Jair Bolsonaro como um grande entusiasta. Existe ainda uma preocupação que o projeto facilite a mineração dentro dos territórios, que já são alvos de mineração ilegal. Bolsonaro também já defendeu a possibilidade diversas vezes.

No exemplo acima, o projeto já era favorável aos interesses dos ruralistas e só recebeu outras propostas favoráveis a eles. Mas existem aqueles que passaram por uma série de transformações até serem aprovados. Propostas que entraram na lista de interesses da frente contra a vontade de seus autores. Foi o caso do PL-3729/2004, apresentado pelo então deputado Luciano Zica (PT-SP).  O objetivo original era regularizar e garantir segurança jurídica aos atos de licenciamento ambiental, estabelecendo regras e multas de acordo com o perfil do empreendimento. Em alguns casos, as punições seriam ainda maiores do que as atuais.

Nos mais de 15 anos de tramitação, o projeto passou por uma reforma feita pela bancada ruralista a passou a reunir diversas propostas que tinham o objetivo de flexibilizar o licenciamento ambiental. Em 2013, o então deputado Valdir Colatto (MDB-SC) requereu a inclusão da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural na análise do mérito. Foi o ponto inicial da mudança, feita com a aprovação de relatórios que interessavam aos ruralistas e a derrubada de relatórios contrários ou a decisão de não os votar e a busca de brechas para a troca de relatores. 

As mudanças fizeram com que nove ex-ministros do Meio Ambiente assinassem um manifesto contra a aprovação do substitutivo. A pressão não surtiu resultado. A proposta, apontada como uma das prioridades da Comissão de Meio Ambiente da FPA/IPA,  acabou aprovada na Câmara em maio deste ano e seguiu para apreciação do Senado. Outra prioridade da frente neste tema é obstruir a tramitação da PEC-504/2010, que torna os biomas Caatinga e Cerrado patrimônio nacional, aumentando a sua proteção.

Estratégia quer enfraquecer plano de redução de agrotóxicos

Algumas prioridades da Comissão de Infraestrutura e Logística também explicam um pouco do método. Fala em “definir o (a) parlamentar que irá apresentar” um novo projeto para tornar “o tabelamento do frete como referencial”, articular a aprovação de um pedido de urgência do projeto sobre praticagem e “articular para pegar a relatoria” na Comissão de Transportes do projeto de “debêntures de infraestrutura”. A Comissão de Assunto Trabalhista também coloca a necessidade de “definir o (a) parlamentar” para apresentar um novo texto sobre trabalho rural. A comissão também pretende fazer apensamentos a um projeto e desarquivar outro relacionado ao tema no Senado.

A equipe de Defesa Agropecuária pretende apensar um projeto do ex-senador Blairo Maggi (PP-MT) ao projeto que institui o Plano Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara). O objetivo é “trabalhar (uma) emenda global em plenário”, o que teria como objetivo enfraquecer o plano. A rejeição na Comissão de Meio Ambiente do Senado do projeto que proíbe a exportação de animais vivos para o abate e, na Comissão de Agricultura da mesma Casa, do projeto que restringe o registro e uso de agrotóxicos são outras prioridades. Nos dois casos, os ruralistas já contam com relatores ligados à frente.

Os integrantes da Comissão de Alimentos e Saúde têm entre suas prioridades a rejeição ao PL-6168/2016, que estabelece a fixação de folhetos e cartazes explicativos em estabelecimentos que comercializam produtos com gordura trans sobre os riscos desses produtos. A ideia é conseguir o apensamento na CCJ ao PL-7681/2017, que proíbe a gordura vegetal hidrogenada na fabricação de alimentos. Argumentam que o segundo tem o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) como relator, com parecer “favorável ao setor”. 

Outra ação apontada como importante será conseguir a relatoria na CCJ do PL 8248/2017, que prevê a rotulagem de alimentos com risco de asfixia, para votar pela rejeição da proposta.

Adaptação de projetos

Os conselhos temáticos parecem ter uma atuação mais operacional. Por isso, os nomes que aparecem como coordenadores não são dos expoentes da FPA ou da CNA. Esses parlamentares mais conhecidos e com mais influência entre os pares geralmente trabalham em situações mais críticas, principalmente nos projetos que precisam ser virados, adaptados aos interesses da frente. São momentos em que mais aparecem as relatorias dos deputados Alceu Moreira (MDB-RS) e Neri Geller (PP-MT) e dos senadores Luís Carlos Heinze (PP-RS), Irajá Abreu (PSD-TO) e Carlos Fávaro (PSD-MT), por exemplo.

Para defender seus interesses no Judiciário, a FPA/IPA conta com um Conselho Jurídico do qual fazem parte o senador Marcos Rogério (DEM-RO) e o advogado Rudy Ferraz, técnico do IPA, que também aparece como coordenador institucional do conselho. O grupo tem pelo menos dez ações consideradas prioritárias no STF e conta com o apoio do Observatório Jurídico do IPA.

Os conselhos também atuam junto ao Executivo, principalmente em demandas relacionadas aos ministérios da Agricultura, Meio Ambiente e Fazenda. Nos dois primeiros, a facilidade de acesso é evidente. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, deputada pelo DEM-MS, foi presidente da FPA antes de entrar no governo. No Meio Ambiente, Joaquim Álvaro Pereira Leite foi conselheiro por mais de 20 anos da Sociedade Rural Brasileira, entidade que faz parte do IPA.

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