O Joio e O Trigo

Os impostos que definem o nosso cardápio

Com alíquotas instáveis e pouco transparentes, tributação pode privilegiar o consumo de ultraprocessados e colocar orgânicos e agroecológicos cada vez mais distantes da mesa dos brasileiros

Basta uma rápida visita às gôndolas dos supermercados brasileiros para constatar uma diferença considerável entre o preço dos ultraprocessados e dos produtos in natura. Enquanto um pacote de molho de tomate de 320 gramas custa R$ 1,99, o quilo da mesma fruta passa a faixa dos R$ 6,00. 

Fatores como sazonalidade, demanda, inflação, poder de compra e desvalorização do real devem ser levados em conta quando o assunto é a alta no valor dos alimentos, mas o peso de tributos federais e estaduais também merece atenção. Ao taxar de forma diferenciada certos produtos, o governo pode induzir – ou limitar – políticas públicas que incentivam a saúde e a soberania alimentar. 

O preço dos alimentos é calculado a partir de uma série de condições. Aos custos de matérias-primas, equipamentos, mão de obra e outros serviços são acrescidos valores de impostos, taxas, comissões e contribuições que incidem sobre a venda.

O nutricionista Alexander Marcellus realiza uma pesquisa independente sobre a tributação de alimentos em supermercados do estado de São Paulo. Desde 2018, ele registra o valor dos impostos de diferentes produtos – e os resultados são inquietantes. Frutas como maçã, uva, goiaba, kiwi e tomate pagam uma carga tributária total de 22,29%. Hambúrgueres e nuggets congelados, por sua vez, pagam 8,7%. A casquinha de sorvete, utilizada em redes de fast-food, apenas 3%. A tributação inclui os valores de impostos como o  ICMS e o IPI.

A comparação demonstrativa entre a tributação de frutas e de ultraprocessados deixa claro que a política de tributação brasileira não incentiva a alimentação saudável, uma vez que os valores para os alimentos in natura são mais altos. As taxas não diferenciam tipos de processamento, nem levam em conta a saudabilidade: carnes são uma categoria genérica, por exemplo, na qual cabem tanto cortes bovinos vendidos no açougue como embutidos. 

A mesma inclinação acontece de formas mais sutis. Um exemplo é o açúcar. Apesar de o imposto ser o mesmo de alimentos como o arroz e o feijão, cerca de 11%, o açúcar é um alimento associado ao desenvolvimento de doenças, como o diabetes. “Indiretamente, a gente vê uma cobrança alta sobre o arroz e o feijão e uma proteção excessiva ao açúcar. Lembrando que a principal causa de mortes no mundo são doenças cardiovasculares, associadas ao excesso de peso”, afirma Alexander. 

Além das consequências para a saúde da população, o incentivo ao consumo de alimentos com excesso de açúcares e gorduras também traz efeitos prejudiciais para o Estado a médio e longo prazo: segundo estudo publicado na Revista Panamericana de Saúde Pública, em 2020 o Serviço Único de Saúde (SUS) gastou R$ 3,45 bilhões para tratar pacientes com hipertensão, diabetes e obesidade.

Grande parte desses tributos são recolhidos pelo governo federal, mas um deles cabe diretamente aos governos estaduais: o ICMS, Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços. O imposto é aplicado sobre a circulação de produtos como alimentos, eletrodomésticos e serviços de comunicação e transporte.

O nutricionista Alexander entrou em contato com as secretarias de fazenda dos 27 estados brasileiros, mas não obteve retorno sobre os valores do imposto de ICMS praticados em cada território. “Nenhum governo estadual publica os valores de ICMS no site de transparência”, denuncia. De fato, checar as alíquotas de ICMS não é tarefa fácil. Em São Paulo, por exemplo, a página da Secretaria da Fazenda remete a uma imensa lista de leis e decretos, sem colocar à disposição uma tabela com todas as alíquotas. A disposição dessas informações é fundamental, uma vez que os tributos de cada produto passam por várias mudanças ao longo do ano, criando dificuldades para o seu acompanhamento. 

Ainda assim, Alexander afirma que as mudanças constantes nas alíquotas de ICMS observadas no estado de São Paulo são similares às de todos os estados brasileiros. A prática é uma estratégia acordada entre os governos estaduais para evitar uma guerra fiscal, ou seja, impedir que certos estados ou municípios recebam mais investimentos por oferecerem condições tributárias mais atrativas, diminuindo a capacidade de arrecadação fiscal de outras regiões. 

“Quando a gente fala em direito humano à alimentação adequada, a gente está falando em alimentos, e não em produtos industrializados. Infelizmente quando a gente olha os dados existe uma preferência de tributação”, pontua Alexander.

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

A tributação como ferramenta política 

A tributação de produtos e serviços é fundamental para que os estados possam reinvestir os recursos em direitos fundamentais como assistência social, saúde e educação. Por isso, a questão não é acabar com os impostos ou diminuir a tributação de todos os produtos para encolher os custos que chegam ao consumidor – a lógica não é tão simplista quanto aparenta –, mas compreender como a escolha dos valores influencia os hábitos alimentares.

Essa forma de pensar a tributação tem um nome: extrafiscalidade. “O tributo pode ter uma finalidade arrecadatória, nos termos tradicionais, e uma finalidade regulatória de alguma conduta. A esse segundo objetivo a gente chama tecnicamente de extrafiscalidade. Ou seja, como utilizar esse instrumento para fazer com que as pessoas se estimulem ou se afastem do consumo de alguma coisa”, explica o doutor em direito tributário e professor da Universidade Federal da Bahia, André Portella.

Para o economista Arnoldo Campos, diretor executivo da AGMAAC Soluções, empresa que apoia organizações na área de produção e consumo sustentável, a política fiscal e tributária tem uma função importante para o desenvolvimento nacional. “Os países, os estados e os municípios usam muito a política fiscal para implementar a sua estratégia de desenvolvimento. Se você quer estimular algum segmento, algum setor, evidentemente você vai tentar reduzir essa carga tributária”, afirma.

Arnoldo, que atuou como secretário Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do antigo Ministério do Desenvolvimento Social (atual Ministério da Cidadania) entre os anos de 2003 e 2016, observa que a política tributária brasileira se sustenta em conceitos desenvolvimentistas. 

A política de isenção de impostos em detrimento a investimentos em produção sustentável e recursos da biodiversidade mostra que os objetivos qualitativos são muito pouco trabalhados. A própria política de exoneração aos produtos da cesta básica não foi pensada a serviço de uma política nacional de segurança alimentar. A pressão das grandes indústrias para garantir uma tributação favorável na produção de bebidas adoçadas, alimentos ultraprocessados e agrotóxicos é enorme. “A gente pode e deve direcionar uma alimentação mais saudável e sustentável com as medidas fiscais. O que a gente tem hoje é um cenário que atrapalha isto e privilegia os alimentos não saudáveis”, afirma Rafael Arantes, analista em regulação e especialista em alimentação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Desde 1997, um convênio entre o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e os governos estaduais permite uma redução de até 60% na cobrança de ICMS sobre a produção e comercialização de pesticidas, dado revelado por um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação em 2016. Em 2020, a resolução foi renovada. “Como é que a indústria do agronegócio consegue renovar dezenas de vezes um acordo em unanimidade com os 27 estados? A força da estrutura presente, seja ela privada, seja das corporações de serviço público que acabam tendo vantagens por estar dentro desse sistema, impede mudanças. Elas têm muito poder”, ressalta Arnoldo da AGMAAC.

De acordo com um estudo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), as empresas produtoras de agrotóxicos deixaram de pagar cerca de R$ 10 bilhões por ano aos cofres públicos – recursos que poderiam, por exemplo, ter apoiado as políticas de combate à pandemia. Segundo Lays Barbara Morais, integrante do Grupo de Estudos de Sociologia Fiscal da Universidade Federal de Goiás (UFG), as atitudes tomadas pelos governos estaduais contradizem o discurso.

“Se você pegar tudo que o Estado deixa de arrecadar com esse tipo de indústria daria para custear diversos tipos de serviço. É uma lógica que não faz muito sentido”, afirma. “Existe um discurso de cortar gastos porque o governo está endividado, mas esse mesmo governo segue dando isenção de tributos para grandes empresas, deixa de arrecadar trilhões por ano e faz com que produtos prejudiciais à saúde sejam mais baratos em um contexto em que as pessoas estão passando dificuldade.” 

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Desafios da produção sustentável e da alimentação saudável 

“A fome é um problema mais político e econômico do que a falta de alimentos”, enfatiza Alexander Marcellus. A discussão levantada pelo nutricionista destaca que o atual sistema alimentar brasileiro não consegue entregar comida de qualidade para todas as pessoas, mesmo com uma produção de alimentos extremamente desenvolvida do ponto de vista industrial e tecnológico. Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), 116,8 milhões de pessoas no país se encontram em situação de insegurança alimentar – o número representa mais da metade da população.

Entre os produtos que chegam à mesa dos brasileiros, 70% são produzidos pela agricultura familiar. Apesar disso, os benefícios fiscais são direcionados às grandes propriedades produtoras de carne e commodities para exportação. “Se você oferece benefícios para uma multinacional, ela se instala no seu município e aquilo vai gerar emprego, renda e tudo mais. A lógica é essa, só que as pessoas não pensam nos pormenores”, observa Lays. “Dando isenção para uma grande empresa você vai perder arrecadação e para custear a máquina do Estado você vai ter que tirar de outro lugar. No Brasil, por exemplo, os tributos vão sobre o consumo, o que acaba prejudicando muito as pessoas de baixa renda.”

Para a promoção de ambientes alimentares saudáveis é preciso ter uma política de atração de investimentos coerente com os desafios atuais. “Trazer uma fábrica de refrigerante não gera benefício. O que ela vai gerar são mais custos para manter o sistema de saúde, mais poluição, mais plástico, mais coisa negativa. Temos que buscar indústrias ligadas à produção orgânica ou agroecológica. E existe um grande potencial para municípios, estados e governo federal desenvolverem isso”, afirma Arnoldo, que também atua como consultor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). 

A tendência já é visível: segundo o relatório Produção e Consumo de Produtos Orgânicos no Mundo e no Brasil, publicado em 2018 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), houve um crescimento médio anual de 19% no número de unidades de produção orgânica no Brasil desde 2010.

O pesquisador Rafael Arantes, do Idec, destaca a importância de olhar para a questão dos alimentos agroecológicos e orgânicos de forma não generalizada ou romantizada. Por estarem disponíveis nas prateleiras dos supermercados a preços mais elevados, grande parte da população considera esse tipo de alimentação inviável. “É importante observar que essa forma de produção é o caminho dificultado, justamente pelos incentivos irem para os ultraprocessados e os agrotóxicos”, afirma.

O analista do Idec considera que as empresas cujas práticas são causadoras de danos de saúde, ambientais ou sociais deveriam ser desestimuladas fiscalmente. “O dinheiro [da tributação] deveria ser investido em saúde e na transição para uma produção orgânica e agroecológica, incentivando os alimentos in natura. Dessa forma, estaríamos beneficiando a agricultura familiar e aqueles que privilegiam a sociobiodiversidade de quem está na terra adotando outro estilo de vida”, aponta. “Os produtores de orgânicos e agroecológicos estão arcando com o custo, protegendo um conjunto de saúde e sustentabilidade, e não estão sendo incentivados. No nosso entendimento, eles deveriam ser os destinatários dos incentivos.”

Outro problema é a falta de expertise – ou interesse – dos bancos em assessorar produtores que trabalham com alimentos menos convencionais ou com sistemas livres de agrotóxicos. “Se você vai lá no banco e diz ‘eu sou produtor de leite da agricultura familiar’, o banco conhece, entende do negócio, da rentabilidade, da liquidez, do risco, e realiza o empréstimo. Agora, se você está operando uma cadeia de açaí, ele não sabe fazer as contas e analisar os riscos”, salienta Arnoldo.

O melhor exemplo de política pública de incentivo à alimentação saudável por meio da tributação vem do estado da Bahia, onde os produtos registrados com o selo da Agricultura Familiar são isentos de ICMS. “É a única política fiscal que eu conheço que estimula a agricultura familiar. E ela ainda dá um crédito tributário para quem compra. Ou seja, a cooperativa da agricultura familiar paga zero de ICMS e passa para frente como se a alíquota tivesse sido paga cheia”, explica Arnoldo. A proposta, aprovada pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), foi firmada por meio de um convênio e está em vigor desde 2007. A política proporciona uma diminuição no preço dos produtos dos agricultores familiares, gerando maior competitividade no mercado. 

Além dos benefícios para a saúde da população, o estímulo à produção orgânica e agroecológica também traz vantagens para o meio ambiente. Isso porque todos os efeitos nocivos causados pelas grandes produções de alimentos em monoculturas, como desmatamento, perda de biodiversidade e comprometimento da água e do solo, são revertidos em produções agroecológicas. “O sistema alimentar está no centro da crise climática. Não tem como discutir esse tema sem discutir agricultura e como ela é produzida, os insumos, a energia, os resíduos, a utilização da água”, destaca o economista. 

Ao facilitar a circulação dos alimentos e viabilizar o escoamento da produção de pequenos agricultores, a tributação consegue contribuir com a formação de um segmento de mercado com enorme potencial econômico e sustentável, que tem se expandido mesmo sem incentivos fiscais. “Hoje existe um grande mercado de pequenas empresas, micro e pequenas empresas, empreendedores, mulheres, jovens, rurais, urbanos que estão vendo essas oportunidades e desenvolvendo seus negócios sozinhos. O mercado está dizendo ‘eu quero alimento saudável’ e o estado não está respondendo”, finaliza Arnoldo.

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