Foto: Fellipe Abreu

No Mato Grosso, grilagem e desmatamento avançam sobre assentamento da reforma agrária

Reportagem do Joio flagra loteamento ilegal em região-chave para o agronegócio. Casas de lazer são anunciadas publicamente no Facebook, com piscina e churrasqueira. Assentados acusam órgãos públicos de abandono no governo Bolsonaro

Cai uma chuva fina enquanto nosso carro avança por entre as ruas de terra do Assentamento 12 De Outubro, no município de Cláudia (MT). A lama e as poças de água são parte do desafio de entrar e percorrer a área de reserva, depois de passarmos uma porteira e avistarmos uma placa que indica “Área de preservação permanente”. Logo em seguida, há uma faixa com os dizeres “Máquina trabalhando na estrada” e “O meio ambiente agradece”. 

Parece ironia, mas não é: logo em seguida, o cenário encontrado é de grilagem e desmatamento. Foi o que testemunhamos. Estamos na Amazônia Legal e isso fica visível pela opulenta vegetação. Há árvores altas, partes de mata fechada e o som de pássaros e insetos. Mas logo encontramos troncos queimados, árvores de itaúba, peroba e jatobá derrubadas, e vemos restos recentes de fogo. 

Também estamos numa das regiões-chave do agronegócio brasileiro. Sinop, a capital informal do Norte de Mato Grosso, e Sorriso, a capital oficial do agronegócio, estão a poucos quilômetros de distância. De dentro do assentamento é possível avistar a BR 363, que escoa soja e milho durante todo o ano em direção ao Pará e aos portos do Sul-Sudeste.

O 12 De Outubro é um Projeto de Desenvolvimento Sustentável, ou PDS, que, por definição do Incra, é destinado ao desenvolvimento de atividades ambientalmente diferenciadas, dirigido para populações tradicionais e que prevê que 80% da área seja de reserva legal. 

E é nessa área de reserva que entramos e presenciamos um processo intenso de grilagem. A chuva se torna temporal, o que interrompe o trabalho dos grileiros, ao mesmo tempo em que dificulta atravessar as estradas alagadas. Entre poças e buracos, percorremos doze quilômetros por dentro do grilo. Há áreas loteadas, numeradas e nomeadas e com placas, como o Sítio Três Irmãos, no lote 23; Sítio Araras, com uma placa do pássaro; Chácara 28, lote 26, onde em um poste está escrito Sítio do Nego, Sítio Cantinho Feliz, Sítio Recanto dos Pássaros – lote 27. Há também áreas abertas, picadas, e alguns barracões. 

Motosserra e desmatamento

Quando a chuva para, descemos do carro e começamos a andar pelas trilhas. Encontramos um barracão de madeira, com sinais de uso recente, possivelmente como abrigo para os homens que desmatam a área. Avançamos mais um pouco, e escutamos alguns barulhos no meio da mata. Não demora para que as motosserras sejam ligadas novamente. 

Também conseguimos entrar em um dos lotes e encontramos uma casa em fase de construção, quase pronta, à beira da represa. A casa já tem piscina e churrasqueira às margens da represa formada pelas hidrelétricas do rio Teles Pires. Por toda a região, a especulação avançou junto com as usinas, construídas em especial durante o governo Dilma Rousseff (2011-16). 

A situação é tensa, porque a área que deveria estar sendo preservada e fiscalizada pelos órgãos de proteção do Estado, como Incra e Ibama, está em processo de invasão, dividida, loteada, sendo desmatada à luz do dia.

Os assentados do 12 De Outubro com quem conversamos contaram que não entram nesta área de grilagem por receio de serem recebidos a tiros. Os relatos também são de que a grilagem aumentou nos últimos anos, desde o início do governo de Jair Bolsonaro e o processo de desmonte dos órgãos de proteção. 

“No começo, a gente enfrentava os grileiros. A gente optava por fazer esse enfrentamento, mas a gente começou a correr risco de vida. E a gente recuou porque quem deveria cuidar das nossas reservas, as autoridades que têm papel e dever legal de acompanhar isso, eles não faziam. Transferem essa responsabilidade para a gente”, afirma um assentado do 12 de Outubro.

Marcada pelos latifúndios divididos durante a ditadura, essa região do Mato Grosso só foi receber ocupações de sem-terra no começo do século. Em 2003, no início do governo Lula, o MST mobilizou famílias na periferia das cidades do entorno. Mas a criação oficial do assentamento só veio em 2009, quando as 140 famílias assentadas decidiram criar uma reserva de uso coletivo para os 6.300 hectares, em vez de reservas individuais. 

“É importante frisar que nós, as lideranças do movimento, propusemos, e foi muito difícil convencer a comunidade de deixar a reserva para uso coletivo”, afirma outro assentado. “A gente reduziu o tamanho das nossas propriedades para deixar a reserva legal. E hoje, por exemplo, ela não existe, ela foi grilada. E isso é uma coisa que angustia muito a gente. E também que as autoridades responsáveis não ajudam a gente a cuidar da nossa reserva.” 

Algumas semanas depois, enquanto olhamos as imagens aéreas feitas para o Joio pelo fotógrafo Fellipe Abreu, o contraste entre grilagem e mata fica ainda mais evidente. A área grilada parece uma parte de couro cabeludo prestes a ficar calva: as árvores vão se tornando ralas, fracas, solitárias. Abaixo, as trilhas abertas na mata emulam uma teia de aranha que avança em direção ao rio. Não é difícil ver onde estão as clareiras. 

Área de reserva do assentamento está em processo de invasão, dividida, loteada, sendo desmatada. Foto: Fellipe Abreu


Vende-se terra grilada pelo Facebook

A área de preservação permanente que está sendo dividida em chácaras não é o único espaço do assentamento em processo de grilagem. Mas é o que mais chama a atenção pela destinação: enquanto algumas famílias pobres ocuparam algumas áreas para a produção de alimentos, outras, ilegalmente, decidiram criar chácaras para lazer. Por isso, resolvemos ir até lá, mesmo após o alerta de que poderia ser perigoso. No caminho, meio perdidos, paramos em um pequeno sítio onde um senhor, depois de uma conversa muito breve, nos ofereceu um lote de 1.500 metros por R$ 60 mil. Um lote, isso mesmo, dentro do assentamento da reforma agrária. 

A oferta de terras dentro do assentamento também ocorre no mundo virtual. Em grupos de compra do Facebook, encontramos vários anúncios de venda de chácaras em pleno assentamento. “Sítio na região do alagado do PDS 12 de Outubro, já tem um pequeno clarão aberto, com nascente de água, projeto de energia para ser ligado em 2022, já tem internet na região. Tamanho da área: 20.48 ha. A 65 Km de Sinop sendo 15 Km de estrada não asfaltada”, diz um dos anúncios

O anunciante é Cristiano Grela Massarolo, que trabalha na imobiliária Keller Imóveis, localizada em Sinop (MT).

Entramos em contato com o vendedor mostrando interesse em comprar o sítio. Ele informa que a área segue disponível, e que “a pedida do proprietário é R$ 400 mil”. Questionado se o sítio está situado em um assentamento, ele responde que sim. “Mas que já é um lugar bem consolidado há mais de dez anos.” Também perguntamos a ele se, por ser uma área de reforma agrária, não há risco de tensão com os assentados. “Não. Todos já estão com suas áreas demarcadas”, responde.

Ainda foi questionado sobre como ficaria a documentação (já que essa é uma área de reserva de propriedade da União). “Conseguimos fazer a transferência. Então você terá o documento de posse”, disse o vendedor. “Eu tenho um rancho nessa mesma região, na beira do alagado, lá é muito lindo.”  “Posso levantar mais algumas áreas nessa região”, disse. “Temos um condomínio lá nessa região que vai ficar muito legal.”

Também conversamos com Leonardo Lopes, mais um que anunciou uma venda de sítio via Facebok. “Vende-se chácara de 2 mil metros quadrados no 12 de Outubro.  Fica no terceiro alagado da usina. Chácara quitada. Aceito proposta, pego carro no negócio e moto”. Ele informou que o sítio segue à venda, pelo valor de R$ 45 mil. Questionado se o sítio não está em uma área de reforma agrária, ele disse: “Todas as chácaras têm contrato de compra e venda com o dono da área.”


Além de nós, quem vai cuidar da reserva?

Antes de serem assentados, os moradores ficaram acampados debaixo de lona e organizaram e participaram de muitas ocupações de terra. Eles contam que partiu do Incra o pedido de que a área de reserva fosse demarcada de forma coletiva, e não por lote.

“E nós questionamos várias vezes o Incra sobre como seria essa área de reserva coletiva de 80%. ‘Quem vai cuidar dessa reserva além de nós?’”, recorda o morador do assentamento. Em outras vezes, os assentados conseguiram expulsar os grileiros. “Nós, do movimento, tentamos resistir. Fizemos desocupações de grileiros de dentro da reserva várias vezes.” Mas a mudança de conjuntura política deixou os assentados sem ter a quem recorrer. 

“A forma como Bolsonaro fala fortaleceu as pessoas que queriam passar a boiada, que sentiram que estavam liberadas para fazer essa destruição. E nós sentimos que perdemos força”, afirma um dos assentados. Ele conta que todas as reservas do assentamento estão sendo invadidas e há também gente plantando soja dentro do território.

Consultamos a plataforma MapBiomas, que utiliza dados de satélites para monitorar focos de desmatamento. As informações dão razão aos assentados. Em 2003, havia 3.700 hectares de florestas no 12 de Outubro, número que ficou praticamente igual durante os quinze anos seguintes. Em 2018, tem início uma forte derrubada, com a supressão de quase mil hectares. Em 2019, a área já havia sido reduzida à metade, e continuou caindo em 2020, quando atingiu apenas 1.600 hectares. Nesse exato momento, a área de pastagens avança quase mil hectares.  


Área de preservação permanente do assentamento está sendo grilada e desmatada
Assentamento de reforma agrária sofre com desmatamento e grilagem. Foto: Fellipe Abreu


Desmonte do Incra

Conversamos com um ex-funcionário do Incra sob sigilo de fonte. Ele atuou no órgão até 2014 e acompanhou, em anos anteriores, ações conjuntas do Incra com o Ibama e a Polícia Federal para a retirada de invasores da área de reserva do 12 de Outubro. “Naquela época, os invasores retiravam madeira ilegalmente, mas não tinha esse tipo de loteamento que tem hoje. Isso é completamente ilegal”, afirma.

Para ele, o aumento do desmatamento e a grilagem do assentamento têm relação com o “desmonte do Incra e do Ibama.”. Ele afirma que o instituto voltado à reforma agrária perdeu a capacidade de atuar. “Antes, conseguia-se expulsar os invasores, hoje já não se consegue. O Incra é um órgão que já não tem mais servidores, a maioria se aposentou. Mas os assentados precisam levar às autoridades essa agressividade que a reserva do assentamento está sofrendo. A responsabilidade de fiscalização da reserva é de um conjunto de órgãos, como Ibama, Incra, Sema [Secretaria Estadual de Meio Ambiente].”

O ex-funcionário do Incra reforça que em área de assentamento os lotes são intransferíveis, já que é firmado com os moradores um Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU).

Por meio de sua assessoria, o Incra informou que o projeto de assentamento 12 de Outubro já foi objeto de prévia vistoria ocupacional. E que “no relatório produzido, sugeriu-se a desocupação da área de reserva e retomada dos lotes ocupados irregularmente. Será feita uma outra vistoria, desta vez com a presença da Conciliação Agrária, para identificação dos ocupantes irregulares. Após isso, a Procuradoria Regional Especializada tomará as providências jurídicas cabíveis para reintegração de posse da área. Quaisquer outras denúncias de irregularidade em áreas de reforma agrária, tais como as mencionadas (grilagem, desmatamento, compra e venda de lotes pela internet etc.) podem ser formalizadas pelo canal https://falabr.cgu.gov.br/, que dará os encaminhamentos seguintes”.

Já a assessoria do Ibama disse que assuntos relacionados à reforma agrária devem ser tratados com o Incra.

*Após a publicação da reportagem, os nomes dos assentados foram suprimidos a pedido dos próprios entrevistados, que temem pela segurança.

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