Sem políticas públicas para garantir consumo interno, gestão Bolsonaro faz parceria com agronegócio em busca da China. Campanha publicitária molda um Brasil “tipo exportação” com gente saudável, “como surfistas”
Cada vez mais caras e menos presentes na mesa, as frutas se tornaram um setor estratégico para o agronegócio brasileiro, acumulando recordes de exportação durante os últimos dois anos.
Alheio à fome que assola ao menos 19 milhões de pessoas e à insegurança alimentar que atinge mais da metade da população, o setor conta com o apoio do governo para fazer das frutas a nova frente de exportações.
Os picos de vendas ao exterior coincidem também com a disparada recorde da inflação, muito acima do índice geral, já em um patamar elevado. Em dois anos, as frutas ficaram 30% mais caras no Brasil, segundo o IPCA.
Em 2020, ano em que o Brasil e o mundo pararam por conta da pandemia, as remessas de frutas brasileiras para o exterior já haviam ultrapassado um milhão de toneladas, um resultado até então inédito para o setor.
No ano passado, em meio ao agravamento da crise econômica, sanitária e social no Brasil, o setor comemorou US$ 1,21 bilhão de faturamento, cerca de 20% a mais em relação ao ano anterior. O volume exportado também bateu novo recorde: 1,24 milhão de toneladas, uma alta de 18%.
Além da consolidação do Brasil como um importante fornecedor de frutas, esses resultados refletem a abertura de novos mercados, com a assinatura de acordos bilaterais de comércio específicos, uma agenda política, econômica e diplomática que vem sendo implementada com relativo sucesso pelo governo de Jair Bolsonaro.
A presença da entidade que representa os grandes exportadores de frutas – a Abrafrutas – na recente viagem oficial do governo brasileiro à Rússia é um indicador do peso que o setor vem ganhando na agenda do agro.
Ofuscada pela falta de timing e pelo desempenho diplomático sofrível de Bolsonaro, a visita da comitiva brasileira também incluiu representantes das duas principais entidades de produtores de carne e de uma indústria química.
As trocas comerciais entre o Brasil e a Rússia se baseiam na cadeia do agronegócio. Dependemos da importação de fertilizantes russos, enquanto exportamos grãos, carnes, açúcar e, mais recentemente e em menor escala, frutas. Em 2021, foram enviadas 33,3 mil toneladas para o mercado russo – maçãs principalmente, mas também manga, melancia, melão e limão.
Isso dá uma ideia do tamanho da encruzilhada diplomática em que o governo brasileiro se meteu, além de indicar um horizonte de pressão inflacionária ainda maior sobre os alimentos nos próximos meses.
Embora seja o terceiro maior produtor de frutas do mundo, atrás apenas da China e da Índia, o Brasil não é considerado um grande exportador: ocupamos a 23ª posição no ranking mundial. Comparada a outros alimentos e commodities, a fruticultura representou 2% das exportações brasileiras no agronegócio em 2021.
“Existe essa ideia de que o Brasil não é um grande exportador. Mas o Brasil é um fornecedor estratégico de frutas em mercados importantes como Europa e América do Norte, pois ocupa a entressafra de outras regiões produtoras que não conseguem atender a demanda ao longo de todo o ano”, explica Gustavo Ferroni, coordenador da área de Justiça Rural e Desenvolvimento da Oxfam Brasil, organização que tem como foco o combate a desigualdades sociais.
Próximos destinos: China, Rússia e mercado asiático
Assim como vem acontecendo com outros alimentos, a desvalorização do real torna os produtos mais competitivos no exterior, além de compensar produtores pela perda de poder de compra e um mercado interno em crise.
Se hoje o Brasil fornece frutas principalmente para Europa e Estados Unidos, esse quadro pode mudar nos próximos anos. Seguindo os passos da soja e do milho, o governo quer abrir novos mercados, em especial China, Rússia e outros países asiáticos.
O melão foi a primeira fruta brasileira autorizada a entrar na China, em setembro de 2020. “A China, só pra consumo próprio, planta mais de 400 mil hectares. É 40 vezes nossa produção de exportação e no inverno não conseguem produzir por causa das temperaturas muito baixas. Então, é bem possível que a gente consiga explorar esse mercado, não só da China, mas de outros países da Ásia, como as Filipinas e o Vietnã”, avaliou Luiz Roberto Barcelos, sócio da Agrícola Famosa, em entrevista ao Canal Rural.
A Agrícola Famosa é a líder na produção de melões no Brasil e uma das produtoras habilitadas a exportar para a China, assim como a gigante espanhola Bollo Fruits, que produz melões em Mossoró (RN) e foi responsável pelo primeiro envio da fruta ao país, em 2020.
Segundo projeta o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), se o Brasil conquistar 1% do mercado chinês, o volume da produção deverá dobrar, já que a safra brasileira coincide com a entressafra do país asiático, maior consumidor de melões do mundo.
Diferentemente de outras commodities, a logística e a estrutura portuária ainda são entraves importantes para ganhar novos mercados para as frutas. Houve dificuldades em abrir novas linhas marítimas com destino à China em meio à pandemia, o que atrapalhou os planos dos exportadores de melão no ano passado. A uva vitória deve ser a próxima a entrar no mercado chinês.
“O que mais me preocupa pensando num quadro futuro é que a China tem importado muitas frutas nos últimos anos. O crescimento da importação de frutas é superior ao de carnes e isso mostra um grande potencial de crescimento nos próximos anos. O setor fica alvoroçado para entrar neste mercado”, alerta o economista Valter Palmieri Jr, professor da Strong Business School. “O governo tem conseguido criar parcerias. Com as frutas não é tão fácil de entrar, comparado a outras commodities que o Brasil exporta. Não é só uma questão econômica, mas diplomática também”, acrescenta.
Produção concentrada em grandes nomes do agro
Os estados do Nordeste são os principais produtores de melão, com mais de 90% da produção nacional. Nesse cenário, destacam-se grandes pólos exportadores de frutas, como as cidades de Petrolina (PE) e Mossoró (RN), que tiveram aumento expressivo de produção e exportação de frutas ao longo dos últimos cinco anos.
A produção de manga, fruta mais exportada em 2021, também se concentra nesses dois estados e na Bahia, graças à atuação de grandes grupos voltados para a exportação, muitos dos quais sob domínio de empresas internacionais ou com participação de capital estrangeiro. Esses produtores se beneficiaram com a implementação de sistemas irrigados no vale do Rio São Francisco, e nos estados da Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará.
“Houve um estímulo para a ida de produtores para essa região. O discurso era de que o mercado ficaria para produtores locais, mas isso não ocorreu. Hoje temos a produção concentrada em multinacionais e grandes nomes do agronegócio”, pontua Gustavo Ferroni, da Oxfam Brasil, que coordenou o estudo Frutas Doces, Vidas Amargas, lançado pela organização em 2019.
A modernização da fruticultura em sistemas intensificados e avançados em termos de tecnologia coloca o Brasil em uma posição de destaque em termos de produção.
“Mas nem por isso deixamos de ter problemas, como as violações trabalhistas”, alerta Ferroni.
Embora reconheça avanços como o alto índice de formalização dos trabalhadores rurais e a geração de emprego, o estudo também aponta para a superexploração da jornada de trabalho com o pagamento de bônus por produtividade, a precariedade do trabalho por safra, desigualdades entre trabalhadoras e trabalhadores, exposição altíssima a agrotóxicos e salários baixos – especialmente considerando a riqueza gerada pelo setor.
Preço dobrou em relação à inflação geral, consumo despencou
As frutas seguem um caminho semelhante ao que vem acontecendo com outros alimentos no Brasil: os picos de exportação coincidem com aumento da inflação e o desmonte de políticas públicas que poderiam amortecer os efeitos da crise sobre a população mais vulnerável.
É o caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), esvaziado no primeiro ano do governo Bolsonaro, como já mostramos no Joio. O PAA atuava na compra de alimentos produzidos por agricultores familiares e na distribuição para a população mais ameaçada pela fome.
Entre 2020 e 2021, o preço das frutas no Brasil acumulou alta de 29,3%, muito acima da inflação geral do período, que foi de 15%. A disparada nos preços incluiu até mesmo as frutas que faziam parte do dia a dia do brasileiro, como mamão (+80,7%), banana prata (+42%) e laranja pera (+30,2%).
Apenas um a cada três brasileiros come frutas regularmente e 23% consomem a quantidade recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os dados são da última pesquisa Vigitel, de 2019, e não refletem, portanto, a piora dos indicadores de segurança alimentar durante a pandemia.
Esses dados coincidem com o resultado da última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, que também indicam uma inversão para baixo nos indicadores: o consumo anual per capita de frutas era de 24,4 kg em 2002/03, aumentou para 28,8 kg em 2008/2009 e caiu para 26,4 kg em 2017/18, na última divulgação da POF.
Famílias ricas consomem quatro vezes mais frutas do que as mais pobres, segundo os dados da última POF, além de terem acesso a uma diversidade maior de frutas. Essa disparidade se repete inclusive nas frutas que o Brasil produz em larga escala e que, em tese, deveriam ser mais acessíveis, como é o caso do mamão, melão, manga e abacate.
Estima-se que houve uma redução de 40% na frequência de consumo de frutas em 2020, segundo os autores do estudo “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, da Freie Universität Berlin (Alemanha), em parceria com pesquisadores e pesquisadoras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade de Brasília (UnB).
Brasil tipo exportação
Instrumento de venda das frutas brasileiras no exterior em feiras internacionais e missões comerciais, a campanha Frutas do Brasil, criada pela Abrafrutas em parceria com a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), apresenta um Brasil “tipo exportação” e bem distante da realidade.
Descrito ao mesmo tempo como pomar do mundo e gigante do agronegócio, o Brasil é vendido aos possíveis compradores de nossas frutas como um país habitado por “gente saudável, ativa e bonita, como os surfistas brasileiros”.
“Brasil, sustentável, diverso, inovador, produtivo e inclusivo”, descreve o locutor, em inglês, na mais recente peça de campanha da Apex-Brasil. Para promover o açaí, as frutas, a tapioca, o café e o chocolate no exterior, o agro aparece como um setor que promove a sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento social, em um contorcionismo narrativo que conflita com a realidade da porteira pra dentro.
Não raro essa desconexão aparece no discurso dos exportadores. “Vimos que o mundo começa a se alimentar com alimentos saudáveis. E não tem nada melhor que uma fruta. E foi assim que começamos esse ano de 2021: as pessoas do mundo inteiro comendo mais frutas e o Brasil exportando mais”, comemorou Guilherme Coelho, presidente da Abrafrutas, ao fazer um balanço dos resultados do setor no ano passado.
Procuramos a entidade, mas não houve interesse em responder às perguntas.
O mundo inteiro não parece incluir o Brasil.