Quilombolas seguem sob constante vigilância dos seguranças da empresa Agropalma. Foto: Elielson Silva

Fornecedora da Nestlé segue aterrorizando quilombolas no nordeste do Pará

Após audiência de conciliação, Agropalma segue vigiando quilombolas. Empresa tem histórico de desrespeito aos direitos humanos, fraudes cartoriais, grilagem de terras, contaminações por efluentes agrícolas e condenações judiciais

A situação das comunidades quilombolas do município de Acará (PA) permanece crítica. Mesmo após a realização de uma audiência de conciliação entre os quilombolas e a Agropalma S.A, em 17 de fevereiro, convocada pela Justiça estadual paraense, quilombolas relatam que seguranças armados contratados pela empresa continuam vigiando-os, em vias públicas como estradas e nas comunidades onde vivem.

“Mesmo que a gente esteja fora da área da Agropalma, eles continuam vigiando a comunidade 24 horas por dia. Eles colocam os seguranças pra ficar na estrada observando quem passa pela estrada ou não”, afirma Joaquim Pimenta, liderança quilombola. 

Após a audiência de conciliação, os quilombolas saíram das terras sob posse da Agropalma e foram para a comunidade da Balsa, onde reclamam da constante vigilância dos seguranças da empresa. Na audiência, a Agropalma se comprometeu a tapar as valas que impediam o acesso ao antigo cemitério de Nossa Senhora da Batalha, e também a fechar, em até 60 dias, as valas construídas ao redor da Vila Palmares, que haviam sitiado os quilombolas.

Joaquim afirma que os quilombolas “continuam temendo por um conflito. Eles [seguranças] estão armados com armas de grosso calibre. Eles estão configurando um conflito contra a comunidade, que não pode andar armada, mas eles podem andar com cada monstro de espingarda. E a gente continua vivendo o mesmo terror que estava lá dentro. Só que agora com essa vigilância ao acesso à comunidade pela estrada, que é de livre acesso”.

“Nós fizemos um acordo judicial, onde a Agropalma tinha que tirar todos os obstáculos, sem exceção, e deixasse o caminho livre para Nossa Senhora da Batalha, e não criar nenhum tipo de constrangimento para os quilombolas acessarem o rio, o cemitério”, relata a liderança quilombola, referindo-se à audiência de conciliação. Entretanto, “esse obstáculo não saiu. Os seguranças continuam no mesmo lugar de anteriormente”, afirma.

Joaquim reclama também da manutenção de um container, instalado pela Agropalma para impedir o acesso dos quilombolas ao território da antiga comunidade da qual foram retirados desde os anos 1980: “Por onde era a estrada que a gente acessava, eles não tiraram a caixa (container). Está lá. Eu fiz questão de mostrar para a Polícia Civil que a caixa está lá. Eles (Agropalma) liberaram outra via, que não tem nada a ver com a nossa ida e vinda para beira do rio”, relata a liderança.

Retomada de terras

No dia 6 de fevereiro, os quilombolas cruzaram da margem esquerda do rio Acará para a margem direita, para retomada das terras de onde clamam terem sido expulsos, em um processo de pistolagem e coação de venda de seus territórios por preços irrisórios, ao longo dos anos 1980. 

Cerca de 60 pessoas acamparam no território que identificam como a antiga comunidade de Nossa Senhora da Batalha. Ao lado da antiga comunidade Santo Antônio, totaliza os 19 mil hectares reivindicados pelos quilombolas e hoje pertencentes à Agropalma. Os quilombolas afirmam que antigos cemitérios comunitários são indícios inequívocos da presença de seus ancestrais na região hoje sob posse da Agropalma, onde a empresa mantém plantio de dendezais e uma área de floresta com propósitos de conservação ambiental. 

Poucos dias após darem início à reivindicação territorial, os quilombolas foram sitiados por enormes valas e containers que impediam a sua circulação para entrada e saída do território reivindicado. O Joio e O Trigo divulgou em primeira mão o cercamento dos quilombolas por parte da Agropalma, e desvendou elos da cadeia de produção da empresa, que fornece óleo de palma para a Nestlé, conforme indicam documentos tornados públicos pela própria multinacional suíça

Poucos dias após darem início à reivindicação territorial, os quilombolas foram sitiados por enormes valas e containers.


A situação ficou ainda mais tensa na semana do dia 13 de fevereiro. Joaquim Pimenta relatou que os seguranças contratados pela Agropalma estavam tentando barrar o rio Acará, para impedir a circulação por água. “O rio é o único acesso que estamos tendo agora, fazendo de rabeta [tipo de barco amazônico], levando medicamento e comida para o pessoal. O único acesso que temos é o da rabeta”, afirmou o líder quilombola, ao ver que estavam sendo paulatinamente sitiados.

Após a audiência de conciliação, tanto os quilombolas quanto a Agropalma reconheceram a necessidade de uma solução definitiva, que depende da decisão administrativa do Instituto de Terras do Pará, ITERPA.  

O instituto fez uma visita entre os dias 18 e 25 de fevereiro, para realização de estudo que identifique a existência do território pleiteado pelos quilombolas. Cabe ao ITERPA os estudos para eventual reconhecimento e delimitação do território reivindicado pelos quilombolas.

Entretanto, Joaquim questiona o modo como a própria Agropalma, parte interessada no território, escalou funcionários da empresa para acompanharem de perto o trabalho de reconhecimento realizado pelo ITERPA. “Foi acertado com a associação que tirassem os quilombolas de dentro da antiga comunidade, e fossem para um outro lugar, na comunidade da Balsa, para que o ITERPA possa fazer o trabalho dele”, explica a liderança. 

“Mas detalhe: o ITERPA está sendo monitorado pela Agropalma. A empresa designou uma equipe de pessoas para ir acompanhar um trabalho que não tem nada a ver com a Agropalma, que é um trabalho do ITERPA com a comunidade”, questiona a liderança.

Joaquim  afirma que a influência da agropalma no ITERPA é muito grande. “E isso tem influenciado nossa vida de forma geral. Todo o inferno que nós estamos vivendo hoje, é culpa do ITERPA e da Agropalma.”

Apesar das insistentes perguntas enviadas pelo Joio, o ITERPA não respondeu aos questionamentos.

Áreas sobrepostas

As áreas reivindicadas pelos quilombolas estão sobrepostas às fazendas Roda de Fogo e Castanheira da empresa Agropalma. Para os quilombolas, essas fazendas da Agropalma estariam sobre o antigo território quilombola existente na margem direita do rio Acará. 

Apesar de condenada em segunda instância no TJ-PA, em setembro de 2021 e de ter sido determinado judicialmente o bloqueio das matrículas das fazendas Roda de Fogo e Castanheira, a Agropalma vem empreendendo um estrita vigilância aos quilombolas.

As ações da empresa cerceando a circulação dos quilombolas violam recomendações do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA). Antes mesmo do processo de retomada colocado em prática pelos quilombolas, o MPPA  já havia se pronunciado, no início de 2022, para que a empresa respeite a liberdade de circulação dos quilombolas.

Após visitas do ITERPA, realizadas em 2016 a partir de demandas das comunidades quilombolas, Joaquim Pimenta relata que a documentação desapareceu “tanto do ITERPA quanto do próprio site”. O processo de demanda da titulação do território quilombola junto ao ITERPA, ao qual a reportagem do Joio teve acesso, foi apenas obtido pelos quilombolas e pela Defensoria Pública Agrária de Castanhal em dezembro de 2021, após a Defensoria notificar o ITERPA.

“Estamos lutando pelo que é nosso de direito, não estamos roubando nada de ninguém, invadindo nada de ninguém. Nós somos os primeiros habitantes dessa terra. A empresa que invadiu a nossa área e hoje está colocando banca”, afirma Joaquim Pimenta.

Vaivém de decisões

Desde o início do processo de retomada de seus territórios, no início de fevereiro, os quilombolas de Acará viveram momentos de euforia e apreensão.

O Ministério Público do Estado do Pará ingressou na Justiça no dia 10 de fevereiro, com uma Ação Civil Pública contra a empresa Agropalma. A ação “objetiva a proteção dos direitos humanos fundamentais (Art. 5º, 6º da CF/1988) das Comunidades Quilombolas de Balsa, Turiaçu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Alto Rio Acará, E OUTRAS QUE ESTÃO TENDO SEUS DIREITOS DE LOCOMOÇÃO, VIDA, MORADIA, ALIMENTAÇÃO, ACESSO A SERVIÇOS PÚBLICOS VIOLADOS PELA EMPRESA AGROPALMA SISTEMATICAMENTE”.

No dia 10 do mesmo mês, a  Defensoria Pública do Estado do Pará também ingressou com ação em defesa dos quilombolas, de seus direitos de locomoção e pelo reconhecimento da titulação do território aos quilombolas, na região hoje controlada pela Agropalma. Ao que a justiça paraense determinou uma audiência de conciliação a ser realizada no dia 17 de fevereiro, entre os quilombolas e representantes da Agropalma.

No mesmo dia, entretanto, a Agropalma ingressou com um pedido cautelar, alegando que os quilombolas haviam cometido “crimes ambientais”. O pedido da Agropalma foi acatado pela justiça paraense, designando a PM para apurar. Os quilombolas alegaram apenas terem removido a vegetação local para estabelecer o acampamento.

Em sua decisão, o juiz Arielson Ribeiro Lima determina “fazer proceder a investigação criminal, bem como fazer cessar a ocorrência de crimes ambientais, que seja oficiado ao Comando da Polícia Militar de Tailândia, com o escopo de que seja atendido o pleito do peticionante, no sentido de fazer cessar a atividade criminosa narrada contra o meio ambiente, assim como para identificar os autores, e, se houver, armas no local, proceder à prisão em flagrante e apreensão dos objetos”.

Após habeas corpus coletivo impetrado pela Defensora Pública do Estado do Pará, o TJ-PA, decidiu pela suspensão da decisão em primeira instância, e reconheceu que “plausível, portanto, é a ilegalidade na ameaça à coação à liberdade de locomoção dos pacientes”.

Para Andreia Macedo Barreto,  Defensora Pública do Estado do Pará, da Defensoria Agrária de Castanhal que acompanha a demanda de titulação dos territórios quilombolas e as violações cometidas pela empresa Agropalma “os processos administrativos da empresa devem ser indeferidos, seja em razão da prática da grilagem seja porque tramita processo da associação quilombola, que tem prioridade no processo de regularização fundiária. As terras deveriam ser retomadas pelo Estado do Pará para destinação de povos e comunidades tradicionais que foram desterritorializados”, pontua a defensora pública. 

Por nota, a Agropalma afirma que a empresa “não impede a circulação de comunidades locais pelas áreas de servidão que estão insertas em suas posses e propriedades”. A Agropalma informa também que “em cumprimento ao acordo firmado em audiência de conciliação no último dia 17/2, já fechou a vala ao lado do cemitério às margens do Rio Acará”.

Por Redação

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