O Joio e O Trigo

Na nova fronteira do desmatamento, programa Titula Brasil desperta interesse de ruralistas e aumenta temor de novos conflitos

No sul do Amazonas, há receio com dificuldades para o reconhecimento de territórios de povos originários e prefeito tem ligação com a atividade madeireira

No sul do Amazonas, próximo à divisa com Rondônia e Mato Grosso, Manicoré está no epicentro da mais nova fronteira do desmatamento no Brasil. Junto a ele, Humaitá, Lábrea, Boca do Acre, Apuí, Novo Aripuanã e Canutama concentraram 80% de toda a supressão vegetal no estado entre 2020 e 2021, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), levando o Amazonas ao segundo lugar entre os líderes de desmatamento na Amazônia.

Áreas desmatadas da fronteira agrícola de Santo Antonio do Matupi e Manicoré (AM). Foto: OBT/INPE

Sob a gestão de Lúcio Flávio (PSD), Manicoré assinou o convênio do Titula Brasil em junho de 2021 para fazer a regularização fundiária em áreas públicas federais, assim como a vizinha Lábrea, administrada por Gean Barros (MDB). 

O programa permite que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) repasse aos municípios signatários a obrigação de coletar documentos, realizar vistorias e o georreferenciamento de lotes em assentamentos de reforma agrária ou em terras sob domínio da União. Todo o processo ocorre dentro de um aplicativo, que transmite os dados ao Incra para a análise documental e decisão final sobre a titulação. 

Uma das principais ameaças dentro do município é o avanço de Santo Antônio do Matupi, um povoado nas margens da Transamazônica, no KM 180 da rodovia. O pequeno centro urbano é ligado à extração de madeira e outras atividades irregulares na floresta e, desde 2004, viu crescer a pecuária bovina, com um salto de 800% no número de animais. 

O distrito foi um dos primeiros a receber ações do Titula Brasil, com o cadastramento de assentados e a entrega de títulos provisórios para regularização fundiária. 

A série de reportagens feita pela equipe de O Joio e O Trigo e do observatório De Olho nos Ruralistas está mostrando como sob o discurso da “modernização”, o programa Titula Brasil esconde conflitos de interesse, grilagem e violência contra povos do campo: “Titula Brasil promove conflitos de interesse, grilagem e violência contra povos do campo”.

Entre as histórias de violência, grilagem de terras e conflitos de interesses, selecionamos 12 casos que exemplificam os problemas do modelo de regularização fundiária às pressas adotado pelo governo no Titula Brasil e seu impacto sobre os povos do campo. Na segunda matéria da série, contamos como no Pará, grileiros e desmatadores disputam influência sobre programa Titula Brasil.

Madeireiros no poder

O Titula Brasil permite que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) repasse aos municípios signatários a obrigação de coletar documentos, realizar vistorias e o georreferenciamento de lotes em assentamentos de reforma agrária ou em terras sob domínio da União. Todo o processo ocorre dentro de um aplicativo, que transmite os dados ao Incra para a análise documental e decisão final sobre a titulação.

Com a possibilidade de cadastros individuais de propriedade em terras públicas cresce o temor de problemas para o reconhecimento de territórios de povos tradicionais e originários. É o que explica o representante do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) na região, Pedro da Silva Souza, ele próprio morador de uma comunidade ribeirinha. Ele conta que Manicoré tem quase uma dezena de terras reivindicadas por povos indígenas. O temor é que o Titula Brasil atropele esses processos e depois torne o reconhecimento dos territórios ainda mais difícil. “Mesmo os territórios já demarcados estão sofrendo com invasões e retirada ilegal de madeira”, afirma.

Além de novas demarcações, a região tem pedidos de revisão para ampliação de áreas já reconhecidas. Ou seja, nos dois casos, há reivindicações coletivas de terras públicas da União e a preocupação de evitar que essas terras sejam regularizadas no nome de outras pessoas. “Os ataques dos madeireiros também afetam a própria sobrevivência desses povos, muitos deles dependentes da coleta de castanhas”, explica.

No caso de Lábrea, o próprio prefeito tem ligação com a atividade madeireira. Gean Barros (MDB) é genro de Oscar Gadelha, dono de uma micro empresa destinada à “extração de madeira em florestas plantadas”. Em 2016, quando retornou à prefeitura, De Olho nos Ruralistas mostrou que os dois foram flagrados utilizando trabalho escravo em propriedade reivindicada pelo prefeito, em plena Reserva Extrativista do Médio Purus, na beira do Rio Umari.

Reeleito em 2020, o prefeito também já participou de ações para impedir a fiscalização de crimes ambientais em reservas extrativistas do sul do Amazonas. Junto com o deputado estadual Adjuto Afonso (PDT) e do ex-diretor-presidente do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas, Graco Fregapani, ele mobilizou a população, em 2010, para expulsar fiscais do Instituto Chico Mendes (ICMBio) do município. Os servidores públicos tinham ido checar a denúncia de que a unidade de conservação estava sendo utilizada para a extração de madeira. O nome de Gadelha aparece desde os anos 90 em denúncias de venda ilegal de toras.

Não é a única ameaça ambiental na região. Os municípios também são cortados pela rodovia BR-319, a Porto Velho-Manaus, construída nos anos 1970, assim como a Transamazônica. A rodovia chegou a ser desativada e tem um plano de reasfaltamento. Com o acesso facilitado e mais veloz, existe um temor de aumento ainda maior do desmatamento.

O convênio com o Titula Brasil foi assinado durante uma comitiva que contou com a presença do aliado Adjuto Afonso e de representantes da associação de pecuaristas do município. O deputado estadual é um dos principais porta-vozes do projeto da Zona de Desenvolvimento Sustentável dos Estados do Amazonas, Acre e Rondônia (Amacro), um pólo agropecuário defendido por ruralistas da região e que, desde 2019, vem concentrando recordes de focos de calor na Amazônia.

Operação de fiscalização em área desmatada em Lábrea e Boca do Acre (AM). Foto: Ditec Ibama/AM 

Projeto de colonização

Em Theobroma (RO), a preocupação com o Titula Brasil está relacionada aos Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATPs), uma espécie de título provisório que o governo militar dava aos fazendeiros para incentivar a colonização da Amazônia. O projeto repassava áreas de terra pública para domínio particular após a aprovação de um projeto de colonização. O Incra tinha obrigação de revisar após 5 anos o cumprimento das cláusulas dos contratos. Caso não fosse cumprido, o título tinha que voltar para domínio da União. Com o cumprimento do acordo, o “colono” receberia um título definitivo.

Pelo projeto, esses lotes não poderiam ser vendidos, repassados para terceiros, nem registrados em cartório. Sem a vistoria do Incra, não foram emitidos títulos definitivos e muitas terras ficaram abandonadas ou foram registradas ou vendidas irregularmente. Quando algumas dessas áreas passaram a ser ocupadas por sem terra, houve pressão para que os CATPs fossem cancelados e as terras devolvidas para a União para serem destinadas à reforma agrária. A partir de 2009, a atividade ficou sob a responsabilidade do programa Terra Legal. 

Em muitos casos, o cancelamento não foi concluído devido à judicialização. Um relatório da regional de Rondônia do Incra colocava cinco Projetos de Assentamento (PAs) em Theobroma como áreas a terem seus CATPs cancelados para a regularização da posse pelos assentados: Lamarca, Raio de Sol, Comunidade dos Baianos, São Francisco e São João. Em 2016, foi mencionada também uma situação semelhante com o acampamento Estrela. Destas, apenas o PA Lamarca está listado pelo Incra como apto a integrar o Titula Brasil.

A área também é palco de interesses políticos. O senador Marcos Rogério (DEM) e o deputado federal Lúcio Mosquini (MDB) chegaram a participar de uma reunião com a Associação Rondoniense de Municípios (Arom) para orientar prefeitos sobre o Titula Brasil. Os dois são integrantes da bancada ruralista. Mosquini é coordenador da Comissão de Direito de Propriedade da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), além de coordenar uma outra frente parlamentar dedicada exclusivamente ao tema. Em 2020, Mosquini destinou R$ 936 mil em emendas parlamentares ao Incra para contratar uma consultoria de georreferenciamento em vários municípios de Rondônia em 2020. No ano seguinte, ele teve o nome listado entre os parlamentares que se beneficiaram do escândalo do Orçamento Secreto, que ficou conhecido como “tratoraço”. No lote de benefícios de Mosquini esteve o pagamento de R$ 359 mil num trator que valeria R$ 100 mil. No total, segundo o Estadão, o parlamentar manejou R$ 8 milhões em emendas.  

Mosquini no lançamento da Frente Parlamentar em Defesa da Regularização Fundiária Rural. Foto: Divulgação

O deputado tem interesses específicos em Theobroma, onde declarou propriedades rurais dedicadas à pecuária, sendo a principal a Fazenda Majaru, com 255 hectares e adquirida em 2013, no valor de R$ 1,2 milhão. Outro lote registrado em nome do político no Incra não foi declarado à Justiça Eleitoral

O prefeito do município, Gilliard Gomes (PSD) também é proprietário rural. Mas suas terras ficam em Itapuã do Oeste, onde está localizada a Floresta Nacional do Jamari. Os dois estão a uma distância superior a 200 quilômetros.

Por Redação

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