O Joio e O Trigo

O agro é responsável por 30% do PIB?

Percentual é obtido pela soma de diferentes setores e serve para alimentar a voracidade do setor por benefícios fiscais, renegociações de dívidas, facilitação da grilagem e tomada de terras de indígenas e quilombolas

O X-Tudo é um sanduíche sem receita. Seus ingredientes podem variar conforme a região ou até mesmo entre lanchonetes na mesma rua. Depende da disponibilidade de seus produtos e na disposição de incluí-los entre as duas partes do pão. Mais do que o sabor e o equilíbrio calórico e alimentar, a prioridade é satisfazer a fome e/ou a gula do consumidor, preocupado acima de tudo com o tamanho da refeição.

Assim como o lanche, conhecido em algumas regiões do Brasil como podrão, o chamado Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio é mais importante pelo volume obtido e pela capacidade de atender a fome de seus clientes. A fome, no caso, é dos ruralistas por benefícios dos governos do momento e a permissão para que cometam diversos crimes. Como se o fato de representarem algo próximo de 30% do PIB se sobrepusesse aos impactos sociais e ambientais das suas práticas. Assim, desenvolveram um método pouco usual no meio acadêmico e na comparação com outros países de olho em um resultado vistoso. 

Critério político

Quem explica o método e seu impacto é o doutor em economia e professor Sergio Pereira Leite, titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. “O critério adotado para a criação desse PIB do agronegócio é político e atende aos interesses dos ruralistas de mostrar a força do setor e a suposta dependência do país em relação a ele”, afirma. Leite leciona na Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, do qual foi coordenador e onde atualmente dirige o Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (Oppa) e o Grupo de Estudos em Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap). Também é diretor do Centro de Estudos Avançados (CEA) da UFRRJ.

Ele explica que o conceito de agronegócio é recente no Brasil, chegou a partir dos anos 1980, e começou a ganhar força na década seguinte, graças a Ney Bittencourt de Araújo, da Agroceres. O termo tem origem nos Estados Unidos e se consolidou definitivamente quando Roberto Rodrigues, acadêmico e ruralista, chegou ao Ministério da Agricultura do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2003. Rodrigues foi um dos defensores da aplicação da expressão aqui no Brasil, primeiro como agribusiness e depois em seu formato atual.

Curiosamente, Rodrigues estava no mesmo ministério de José Graziano, então ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome. Graziano depois foi diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) entre 2012 e 2019. Pesquisador de linha marxista, Graziano era um dos expoentes da linha de pesquisa que defendia a análise a partir de cadeias de produção, o que incluiria setores produtivos do mesmo produto. Ou seja, o setor primário e os processos de industrialização. “Esse grupo tinha uma visão ampliada da agricultura e chegou a listar 22 ramos de agroindústria”, explica. Segundo ele, o objetivo desses grupos era fomentar a exportação de produtos beneficiados, com maior valor agregado, sentido inverso ao que está acontecendo hoje.

A metodologia usada pelo chamado agronegócio, explica Leite, é diferente. “Eles incluem também a fabricação e comércio de insumos anteriores à produção, além de atividades de comércio e serviços”, explica. 

Cálculo inflado

A junção com comércio e serviços, dois setores hoje mais importantes na economia brasileira, ajuda no aumento do resultado do cálculo. “Não é uma maneira usual de fazer o cálculo do PIB tanto que não é usado pelos centros de pesquisa do governo federal, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) ”, diz. Os órgãos públicos seguem os padrões internacionais, usados por organismos internacionais e outros países, com a separação em agropecuária, indústria, comércio e serviços.

O PIB da Agropecuária é feito pela Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), ligada à Universidade de São Paulo (USP). Sua parceira no levantamento é a Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária (CNA). Os técnicos do centro de pesquisas e da confederação assinam conjuntamente pelos resultados obtidos. Em 2020, por exemplo, o Cepea apontava um crescimento do PIB agropecuário acima de 24%, enquanto o aumento para o IBGE era de apenas 2%.

No ano passado, o Cepea apontou uma participação do agronegócio de 27,4% do PIB. É o maior percentual desde 2004, quando foi de 27,5%. De lá para cá, a percentual andou em baixa, com o piso de 18,6% em 2014. A participação se manteve próxima ou acima dos 30% no período entre 1996 e 2003. O recorde foi 34,8%, justamente em 1996, primeiro ano da série histórica do dado. No ano passado, segundo tabela do próprio Cepea, o mercado de insumos para a produção agropecuária foi responsável por 1,6% do PIB, a agropecuária por 7,9%, a indústria ligada ao setor de 6,2% e o comércio e serviços ligado ao agronegócio por 11,7%. Pelo cálculo tradicional, com os mesmos dados, o PIB da agropecuária seria esses 7,9%.

Quando se trata de insumos, os pesquisadores levam em conta a produção e comercialização e serviços relacionados a fertilizantes, corretores de solo, agrotóxicos, máquinas agrícolas, rações e medicamentos de uso veterinário. Em agroindústria, eles incluem móveis e madeira, papel e celulose, biocombustíveis, têxteis e vestuário (naturais), café, amiláceos (produtos ricos em carboidratos), conservas, fumo, açúcar, óleos vegetais, bebidas e outros alimentícios.

Coautora dos levantamentos do PIB do agronegócio, a CNA é a confederação que reúne federações estaduais e sindicatos patronais ligados aos produtores rurais. A entidade tem representantes em conselhos de diversos ministérios – como Agricultura, Meio Ambiente, Trabalho, Fazenda, Transportes – em órgãos diretamente ligados à Presidência da República. Também faz parte do Instituto Pensar Agro (IPA), organização que é a face empresarial da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a maior e uma das mais poderosas do Congresso Nacional. “Existe um esforço para cooptar inclusive a agricultura familiar para um discurso de unidade das forças para uma atuação conjunta em defesa de interesses dos grandes grupos, principalmente ligados ao comércio exterior”, analisa.

Instrumento de pressão

Para o pesquisador, a própria construção da ideia do pioneiro, alguém que saiu do Sul do país e se fez sozinho, com as próprias pernas, cultivando em novas fronteiras agrícolas, é um dos pilares do discurso do agronegócio. “Eles querem vender a ideia de que venceram apesar do estado, quando na verdade conseguiram acumular bens e riquezas com um apoio essencial do estado, para a obtenção de terras, financiamentos e tecnologia”, diz. Esses produtores, diz, estão cada vez mais inseridos em cadeias globais, nas quais obtém os insumos e para as quais vendem seus produtos. O mesmo método do Cepea é usado para cálculos de PIBs estaduais e empregos, o que se torna um instrumento de pressão regional.

Leite afirma, que, além de tudo, é preciso cuidado para a avaliação do que esse produto interno bruto significa para a produção de riquezas que serão revertidas para a população brasileira. “A Lei Kandir, isentou as exportações de produtos primários e semielaborados da cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de grande importância para a arrecadação dos estados. Além disso, os setores produtivos são cada vez mais dominados por empresas com acionistas estrangeiros, que são remunerados pelos lucros desse PIB”, explica.

A contestação ao agronegócio como “a indústria riqueza do Brasil”, termo da propaganda “O Agro é pop” tem vários aspectos. Os geógrafos Marco Antonio Mitidiero Junior e Yamila Goldfarb escreveram o artigo “O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo”, para a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) com apoio da fundação Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil, para derrubar essa falácia. “A análise da balança de pagamentos e dos créditos recebidos pelo setor somados aos incentivos fiscais, como é o caso da Lei Kandir, à baixa arrecadação, como no caso do ITR, e à constante renegociação e perdão das dívidas do setor mostra um país atado a uma economia reprimarizada, de uso intensivo de recursos naturais e profundamente dependente”, afirmam. O levantamento mostra, com base nos dados e na classificação do IBGE, que a participação da agropecuária no PIB foi em média de 5,4% entre os anos de 2002 e 2018.

Ainda assim, a magia dos quase 30% do PIB é usada para alavancar a defesa dos interesses dos grandes grupos econômicos que comandam o agronegócio. Com o argumento de fortalecer a economia, como já mostrou o Joio e O Trigo em uma série publicada em setembro do ano passado, os ruralistas atuam no Legislativo, Executivo e Judiciário com pautas para facilitar a grilagem de terras, dificultar as punições ao trabalho escravo e à destruição do meio ambiente, não reconhecer os direitos de indígenas e quilombolas, para evitar a demarcação de novos territórios e conseguir a redução dos já existentes ou a exploração deles.

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