Articulador de “parceria agrícola” entre fazendeiros e lideranças de várias etnias afirma que se trata de “arrendamento”, uma prática vedada pela Constituição e pelo Estatuto do Índio
“Os parceiros deles foram os próprios fazendeiros vizinhos do lado. É uma parceria. Na verdade, é tipo um arrendamento, mas eles estão dentro trabalhando, os indígenas”, disse a O Joio e O Trigo o Superintendente de Assuntos Indígenas do Mato Grosso, Agnaldo Santos. Durante quase uma hora, ele teceu comentários sobre o projeto de lavoura mecanizada em terra indígena Xavante, intitulado Independência Indígena, e sobre as relações que busca estabelecer entre fazendeiros e lideranças de várias etnias (ao menos seis, segundo ele).
No caso do chamado Agro Xavante, um termo de cooperação foi firmado entre produtores rurais de Primavera do Leste, uma cidade importante na produção de soja e milho, e lideranças Xavante da Terra Indígena Sangradouro, com apoio do governo do Mato Grosso e da Funai.
O responsável por assuntos indígenas do Mato Grosso foi vereador por Poxoréu, vizinha a Primavera do Leste e um dos municípios onde fica Sangradouro, e desde 2020 está à frente da superintendência do governo de Mauro Mendes (União Brasil). Segundo ele, a primeira-dama do estado, Virginia Mendes, o conheceu pelas redes sociais e, então, decidiu convidá-lo para assumir o cargo de superintendente.
O governador Mauro Mendes, se reeleito, pretende transformar a superintendência em secretaria, garante Agnaldo Santos. Mesmo sem dotação orçamentária, eles buscam meios de financiar os indígenas. “Eu faço parceria com os deputados, com senadores, pego emendas. Agora mesmo o governador vai entregar 12 tratores para a comunidade indígena no estado.”
Santos recebeu a equipe do Joio em uma sala no Palácio Paiaguás, na sede do governo do Mato Grosso, em Cuiabá. “Eu que comecei esse projeto de independência indígena Xavante”, afirma. “A gente começou em 2017 indo pra Brasília no meu carro. Tem um fazendeiro lá, o Ari Ferrari. Ele dava apoio, dava dinheiro pra gente, juntamente com o Sérgio Manique, que é outro produtor rural”, relata.
Manique é arrendatário de uma área de 70 hectares plantada com soja na região norte da Terra Indígena Sangradouro, em um território conhecido como Volta Grande. “E quando foi em 2019 eles passaram esse projeto pro Sindicato Rural. Começamos a dar o curso pros indígenas, de operador de trator, colheitadeira, plantadeira. E começamos a ver uma área que eles tinham, que já era antropizada.” Hoje, há quatro “termos de cooperação técnico agrícola” aos quais a reportagem teve acesso, um para cada fazendeiro – entre outras coisas, os termos preveem que os fazendeiros fiquem com 80% das receitas líquidas, ao passo que os Xavante ficam com 20%.
Na visão dele, esses projetos se tornaram viáveis com a chegada de Bolsonaro ao Planalto. “O povo de esquerda, esquece. É isso que esse povo quer, dinheiro para montar ONG. Logo que o Bolsonaro entrou, ele autorizou mesmo”, conta.
‘A lavoura é cara’
O superintendente relata que a parceria dos ruralistas com os indígenas ocorre graças à generosidade dos produtores. “Lá do Sindicato Rural os parceiros são o José Nardes, o Ari Ferrari e os Furlan, que são dois irmãos. A lavoura é cara. Para preparar um hectare de lavoura, custa R$ 10 mil. Então, para um indígena, coitado, que está faltando a cesta básica nas aldeias, é complicado”, relata.
Santos afirma que o governo do estado doou 30 mil litros de óleo “para levantar a estrada, porque tem que estar preparado para passar as carretas”. A estrada à qual ele se refere foi aberta dentro da Terra Indígena, com 50 metros de largura, grande o bastante para a passagem de tratores e caminhões dos produtores. Ela termina em uma cancela e logo após começa a lavoura.
“E demos uma estrutura, por exemplo, a cesta básica. Vamos manter até eles começarem a trabalhar. Mas os parceiros mesmo são os próprios fazendeiros vizinhos que ajudaram eles. Na verdade, é tipo um arrendamento, mas eles estão dentro trabalhando, os indígenas. É igual os Parecis [povo indígena que produz soja em lavoura mecanizada no Mato Grosso], que toca hoje sozinho a lavoura deles, mas eles ficaram dez anos tocando a parceria. É a mesma coisa que um arrendamento, mas não pode falar que é arrendamento que o povo não aceita, entendeu? É uma parceria”, resume.
Na realidade, é o Artigo 231 da Constituição que explicita que as terras indígenas são de “usufruto exclusivo” dos povos indígenas, enquanto os Estatutos do Índio e da Terra proíbem, respectivamente, a prática de arrendamento em terras indígenas e terras públicas
Sobre a parceria, ele argumenta que não é possível que a mão de obra da lavoura seja toda indígena. “Você tem que colocar 40% de indígena e vai aumentando. Ele estava do zero, só costumava ficar deitado na rede e pescando”, diz.
Na visão dele, o projeto se justifica porque em Sangradouro “acabou tudo. Acabou a caça. Você pode voar de avião por cima e vai ver que está rodeado de lavoura todinha. Só ficaram eles no meio, então a caça acabou. Os peixes no rio são bem pouco. Como é que a pessoa vai sobreviver?”
Ruralistas querem ajudar
O produtor Ari Ferrari, por exemplo, “já tentou ajudar os índios umas três vezes. Os cara não precisa daquele pedaço em que estão plantando lá, mas querem que eles [os indígenas] aprendam para eles mesmo e que um dia tocar a área deles pra parar de ir nas fazendas, pedir porco, pedir comida”, diz.
Segundo Agnaldo Santos, quem também apoia o projeto é o representante do agronegócio e deputado federal Neri Geller (PP). “Ele é bem, bem parceiro. Quem deu apoio para nós lá em Brasília, foi ele, conversando com a Funai. Aí, quando mudou para o presidente Marcelo [Xavier, presidente da Funai] e ele deu apoio, porque os outros, na verdade proibia, mas também não trazia o benefício”, diz, referindo-se às gestões anteriores da Funai. Geller, que foi ministro da Agricultura no governo Dilma, selou aliança com a campanha do ex-presidente Lula.
Em Sangradouro, diz, “se eles produzirem 10% da área que eles têm hoje, ainda sobra 122.000 hectares para eles preservar. Se eles usarem 10.000 hectares, resolvem o problema de toda comunidade. Porque o pessoal fala bonito. Os ambientalistas, indigenistas, usam cabelão lá atrás, fumando um cigarrinho com a mais bonita, ganhando salarião de dez, vinte mil, enquanto o pessoal está na aldeia, passando fome”.
Arrendamento, parceria ou cooperação?
A reportagem enviou a última versão do termo de cooperação, de 2021, firmado entre a Cooperativa Indígena de Sangradouro e os produtores – e elaborada com ajuda da Funai – para o advogado Rafael Modesto dos Santos, ligado ao Conselho Indigenista Missionário, analisar.
“A gente sabe que o discurso dos ruralistas com a parceria mista é para camuflar, disfarçar, porque a prática é de arrendamento. Só usam para mudar, porque o nome do arrendamento está muito desgastado. E mesmo que fosse parceria, da mesma forma não é permitido. Não é preciso ir muito longe. A Constituição Federal diz que as terras indígenas são de propriedade da União e que o usufruto é exclusivo das populações indígenas”, explica o advogado.
Portanto, explica, seja parceria ou arrendamento, “o contrato é nulo. De acordo com a Constituição, esse tipo de acordo é proibido”, diz. “E quando se fala em parceria de 80%- 20%, é para camuflar, é claro que os fazendeiros vão colocar mais dinheiro, maquinário, investimento”. Os contratos preveem que a divisão seja feita depois de descontados os custos apresentados pelos produtores com mão de obra, maquinário, fertilizantes e agrotóxicos.
Inconstitucional
“A percepção imediata é que é uma relação contratual absolutamente nula. Como o usufruto das terras indígenas é exclusivo, está impedido qualquer ato de exploração das riquezas naturais, dos solos, dos rios e lagos. Então esse contrato é nulo. Nem seria passível de discutir”, explica o advogado.
Modesto dos Santos explica que, de acordo com a Constituição, as terras indígenas são inalienáveis, indisponíveis, e portanto não podem ser colocadas no mercado. “Tampouco podem ser exploradas por terceiros, por pessoas não indígenas além de que o direito sobre elas são imprescritíveis”, afirma.
“Nulo é uma figura inexistente e portanto deve ser declarado nesse sentido se for levado à Justiça e deve ser combatido pelo MPF, pela Funai, pela PF, pois toda exploração de Terra Indígena é um ato inaceitável do ponto de vista constitucional. Ela só pode ser operada pelos próprios indígenas”, conclui.