Gravação obtida pelo Joio mostra militar em promessa de derrubar autuações por desmatamento ilegal para destravar lavoura de fazendeiros em terra indígena
“Nós viemos para cá porque quando eu recebi a autuação do Ibama e vi o embargo, eu fiquei extremamente preocupado. Por quê? Porque nós acreditamos no trabalho da cooperativa. Nós acreditamos no trabalho dos parceiros e viemos aqui de perto saber o que está acontecendo. E, no final das contas, estou vendo que houve um mal entendido por parte do Ibama”.
Quem fala é o Coronel Fernando Fantazzini Moreira, nomeado em outubro do ano passado para a chefia da Direção de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, um dos principais cargos do órgão. O currículo dele, registrado na rede social Linkedin, não indica qualquer experiência com a questão indígena.
Fantazzini foi gravado em uma reunião com indígenas ligados à Cooperativa Indígena Sangradouro e Volta Grande (Cooigrandesan), que desde 2020 desenvolve, junto a fazendeiros de Primavera do Leste (MT), o projeto “Independência Indígena”, de plantio de soja, milho e arroz dentro da Terra Indígena Sangradouro (MT). As gravações da reunião foram obtidas com exclusividade pelo Joio.
Realizado no dia 23 de agosto, o encontro tinha o objetivo de discutir como se livrar de sanções impostas ao projeto pelo Ibama, em julho, quando quatro fazendeiros “parceiros” foram multados por desmatamento ilegal em terra indígena, e a lavoura, embargada.
Os contratos entre fazendeiros e indígenas foram assinados em março de 2020, mas o projeto, idealizado por Bolsonaro, já era uma promessa aos produtores rurais desde 2017, quando o então deputado federal esteve em Primavera do Leste.
A iniciativa, também conhecida como “Agro Xavante”, é uma das prioridades da presidência da Funai no mandato de Bolsonaro, mas tem acumulado problemas e críticas desde que começaram as negociações com a cúpula do órgão indigenista, no ano de 2019.
Além dos Xavante e do próprio Fantazzini, estavam presentes à reunião o chefe da Coordenação Regional Xavante da Funai, capitão da reserva Álvaro Peres, o tenente-coronel Jorge Cláudio Gomes, coordenador-geral de promoção à cidadania da Funai, Agnaldo Santos, superintentendente de Assuntos Indígenas de Mato Grosso, e um dos produtores parceiros do projeto, o fazendeiro Ary Ferrari.
Nas gravações, Fantazzini e Jorge Claudio Gomes, seu subordinado, prometem derrubar o embargo do Ibama, órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e sobre o qual a fundação ligada ao Ministério da Justiça não tem poder de ingerência. Eles também fazem críticas a servidores de carreira da Funai, apontados como responsáveis pelos revezes sofridos pelo projeto.
A Funai e o Ibama foram procurados pelo Joio, mas não responderam até a publicação da reportagem.
“Isso aí cai em dois tempos”
“Eu vou pegar lá, que tem uma coordenação [da Funai] que cuida justamente dessa parte de licenciamento ambiental, pegar os dados que provam que [a área] já foi antropizada, e isso aí cai em dois tempos”, afirma Gomes em um dos momentos da gravação, antes da chegada de Fantazzini à reunião. “Aí esse embargo termina na hora, entenderam?”
A ideia de Gomes e Fantazzini era levar ao Ibama a versão dos indígenas ligados ao projeto, isto é, de que a área utilizada para a lavoura já havia sofrido ação humana – havia sido “antropizada”, no jargão técnico – por projetos de lavoura mecanizada desenvolvidos durante a ditadura (1964-1985) e no fim da década de 1990. Com isso, convenceriam o Ibama a cancelar as sanções.
Durante a conversa, o presidente da Cooigrandesan, Gerson Wa Raiwe, relata que o superintendente do Ibama no Mato Grosso, Coronel Gibson Almeida, teria prometido apoio à empreitada.
“Nós fomos lá em Cuiabá, conversamos com o Coronel Gibson. Conversamos com ele a respeito. E ele falou o que podíamos fazer”, explica Wa Raiwe. “Ele até falou está à disposição para quando nós agendarmos uma audiência junto à Funai, ao Ibama de Brasília, ele estará disponível para falar sobre essa questão.”
Procuramos Wa Raiwe por telefone e aplicativo de mensagens, mas ele não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem.
Como já mostramos aqui no Joio, mapas elaborados pela área técnica local da Funai de Barra do Garças (MT) mostram que apenas 300 dos 1.500 hectares utilizados pelo projeto Independência Indígena haviam sido antropizados antes da instalação da lavoura.
Ainda assim, Fantazzini e Gomes falam em produzir um relatório que corrobore a tese de que a área já havia sido antropizada.
“Esse relatório da área antropizada vai resolver uma situação que está na Instrução Normativa Nº1 [Conjunta Funai/Ibama, de 2021] que diz que, abaixo de mil hectares, nós temos o licenciamento [ambiental] simplificado”, afirma Fantazzini em certo momento da reunião.
“As medidas que eu vou tomar quando chegar lá em Brasília na quinta-feira […] já é pegar essa situação do embargo, pedir pra ele me trazer a situação de que a área já foi antropizada, para que chegue lá na quinta-feira na nossa Coordenação Geral de Meio Ambiente, que trabalha direto com o Ibama, e já trabalhar para que esses fatos sejam retirados na quinta ou na sexta-feira para que possa voltar a produção”, promete Gomes, por sua vez.
A versão é semelhante à que ouvimos do presidente da Cooigrandesan. Em conversa por telefone no dia anterior, 22 de agosto, Gerson Wa Raiwe disse que dentro de alguns dias o Ibama retiraria o embargo de uso da área. “O Xavante é diferente. Quando fica bravo, esquece tudo. Não pensa em outra coisa a não ser partir pra cima. Pra quem não conhece, é arriscado”, ameaçou.
Durante a reunião em Sangradouro, Fantazzini ainda comemora o fato de que os indígenas haviam protocolado, antes da multa, um pedido de licenciamento para expandir a lavoura para 6 mil hectares: “Excelente. É mais um motivo para colocar num documento que vamos mandar. E aí é uma questão administrativa lá do Ibama”.
Averiguação
Gomes e Fantazzini explicam, durante o encontro, que viajaram de Brasília ao Mato Grosso para averiguar se “o que chegava para eles” na sede da Funai era verdadeiro, e dizem ter se convencido, depois de conversas com indígenas, que na realidade a área já estava antropizada.
“A fala do Gerson não é de uma pessoa que foi instruída por alguém para falar exatamente aquilo que eu precisava ouvir”, afirma Gomes. “Ele entende o que está falando. As colocações dele são muito pertinentes. Me convenceram de que as ideias que estavam passando para a gente lá em Brasília não tem sustentabilidade.”
Fato é que, mesmo que a área já estivesse antropizada – o que foi desmentido pela área técnica local da Funai – a cooperativa precisaria ter protocolado, antes do início do projeto, um pedido de dispensa de licenciamento junto ao Ibama, conforme determina a Instrução Normativa nº1 Funai/Ibama, criada justamente para facilitar esse tipo de empreendimento. Mas os documentos só foram protocolados onze meses depois da abertura da lavoura.
Outra fala de Gomes, também registrada nas gravações, resume a política de fato consumado imprimida pela direção da Funai e aplicada no caso de Sangradouro. “Eu não posso me sentar em cima de papel, [porque] a legislação ou o regimento interno da Funai não me permitem fazer tal coisa. Amigo, eu não quero saber o que ele vai me permitir, o que ele não vai me permitir. Eu sei que existe a necessidade, a gente tem recurso para atender essa necessidade e essa necessidade não é feita. Então, vou pegar, olhar essa necessidade, resolver ela e buscar o papel bonitinho para poder deixar em condições”.
Em outra frente, as afirmações de Gomes sobre o presidente da Cooperativa contrastam com as do sojicultor José Nardes, um dos parceiros do projeto. Em entrevista ao Joio em junho deste ano, o fazendeiro afirmou, sobre Gerson: “Foi uma pessoa que pegamos na aldeia e nesse período de um ano e quatro meses ele se transformou no que é hoje”.
“Inclusive eu falei para o Gerson: ‘Não me dê mais entrevista”’, disse também na ocasião.
“95% da Funai quer que os indígenas fiquem parados no tempo”, diz diretor
A gravação obtida pelo Joio também registra uma série de ataques a servidores de carreira da Funai, apontados como responsáveis pelos revezes sofridos pelo Independência Indígena.
Em um momento do áudio, Fantazzini afirma: “O governo entende que a comunidade indígena é a dona da trilha que vai abrir. Há alguns anos havia embate dentro da Funai, porque a maioria não pensava dessa maneira, era coisa de 5%”, diz. “Só que hoje continua 5% que pensa dessa maneira, e os outros 95% querem que os indígenas continuem parados no tempo.”
“Vocês são cidadãos brasileiros e, como tal, têm que ter os mesmos direitos”, disse ainda o diretor. “Só que 95% da Funai, por ser concursado, não entende.”
Para Fernando Vianna, presidente da organização não governamental Indigenistas Associados (INA), que reúne funcionários da Funai, a fala de Fantazzini é “absolutamente fantasiosa”. “Não existe nenhuma estatística que permita afirmar que 95% dos servidores da Funai tenham essa ou aquela posição”, diz.
“Eles [direção da Funai] esticaram a corda até o limite e quando a corda arrebentou colocaram a culpa nas pessoas que estão fazendo a coisa da maneira correta”, diz ainda o indigenista, em referência aos servidores da Funai que apontaram irregularidades no projeto antes do embargo.
O secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo de Oliveira, lembrou que a Funai vem retomando a proposta integracionista, de exclusão da diferença, que marcou a política indigenista até a Constituição Federal de 1988, e para tanto precisa remover funcionários com outra concepção do indigenismo.
“Eles querem retirar os funcionários de carreira mais compromissados com os direitos indígenas e colocar pessoas comprometidas com esse assédio aos povos originários”, diz o missionário. “Então têm feito uma pressão sobre muitos funcionários da Funai. Muitos tiveram que se aposentar, outros estão fazendo tratamento de saúde. É um clima de pressão e violência.”
“Aquele cara é um baita parasita”
Além de Fantazzini, indígenas presentes na reunião também fizeram duras críticas aos servidores de carreira da Funai que atuam na Coordenação Regional Xavante.
“Funai velha, manda para São Paulo, interior, tem que ficar lá, para quê ficar aqui fazendo confusão? Manda lá [Nome de servidor 1], aqueles outros, [Nome de servidora], anti-indígena. Manda lá no Roraima, São Paulo, para trabalhar, fazer projetinho de roça de toco [roça tradicional]”, afirmou Graciano Pronhopa, cacique em Sangradouro e um dos cooperados presentes no encontro.
Em outro momento, o presidente da Cooperativa, Gerson Wa Raiwe, afirmou: “Quem nos procurou uma vez foi o [Nome de servidor 2, ex-coordenador local da Funai]. Aquele cara é um baita parasita.”
Wa Raiwe ainda culpou funcionários “esquerdistas” pela fiscalização da CR Xavante que constatou que a lavoura tinha se iniciado sem conhecimento prévio da área técnica local, em dezembro de 2021, e afirmou que um quarto servidor, único funcionário de carreira presente na reunião, estava mentindo ao dizer que a Cooperativa não respondeu aos pedidos de informações emitidos pela CR Xavante.
“Os termos da cooperativa estão todos lá. A Funai de Brasília sabe disso, todo mundo sabe disso. Se você quiser ver lá os termos, é tudo transparente. Eu não vejo nesses 12 anos que você está na Funai, nunca vi transparência. Agora você vem me dizer que está faltando transparência. Isso é mentira, é mentira sua”, afirmou o presidente da Cooperativa.
Também já mostramos no Joio que sucessivos pedidos de fornecimento de informações foram emitidos pelo Serviço de Gestão Ambiental da Funai de Barra do Garças e ignorados pela Cooperativa, com a conivência do coordenador regional, capitão da reserva Álvaro Peres, aliás muito elogiado durante a reunião.
Ao longo do encontro, Peres enalteceu o projeto e instou urgência na suspensão do embargo: “A chuva vem aí”, disse, referindo-se ao período de chuvas no Cerrado e ao plantio de soja a partir dos meses de setembro e outubro. O coordenador da CR Xavante afirmou ainda que o presidente da Funai, Marcelo Xavier, está trabalhando em duas instruções normativas para liberação do garimpo e da extração de madeira em terras indígenas, como contamos em reportagem do Joio.
Defesa do governo e crime eleitoral
Durante o encontro, que durou cerca de três horas, o coronel Fernando Fantazzini ainda encontrou tempo para defender o governo Bolsonaro, fazendo publicidade institucional às vésperas da eleição.
“A política indigenista dos governos anteriores era uma política que incentivava os indígenas tão somente a cuidar de plantinha, de tartaruga e deixar eles numa situação que há 522 anos estava sendo colocada”, disse. “Nós sabemos que a política indigenista hoje ela tem a assinatura de 58 milhões de brasileiros”.
“Hoje está no poder um governo que entende e tenta executar o que vocês querem. Mas temos gente que atrapalha”, falou também.
O Artigo 73 da Lei 9504/97 proíbe ao agente público realizar “publicidade institucional dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos”, no período de três meses que antecede as eleições, sob pena de multa de até R$ 100 mil.
Perseguição dos “capas pretas”
Fantazzini afirmou, ainda, que os projetos de lavoura em terra indígena estariam sofrendo perseguição do Poder Judiciário.
“Eu peço que não gravem agora. Eu peço que não gravem agora, por favor, só agora, depois pode gravar o que quiser”, diz ele no áudio obtido pela reportagem. “Existe um trabalho para tentar engessar, para tentar parar toda e qualquer iniciativa dos parentes [povos indígenas] na produção agrícola.”
“Nós estamos sofrendo uma dura resistência de uma parte da Justiça, que não quer ver os projetos indígenas crescer”, argumentou, antes de pedir que os cooperados busquem ajuda jurídica. “A Funai pode fazer muita coisa. A gente pode ajudar, a gente pode articular, nós podemos fazer várias coisas para ajudar a virar o jogo, porém ela [Funai] sozinha, com a quantidade de pessoas no Judiciário que querem que dê errado, não vai conseguir.”
“A cooperativa precisa estar com o pé no chão, porque senão vai vir o pessoal da capa preta e lascar em cima.”