Em documento de 2020, Álvaro Simeão emitiu parecer favorável a projeto de agronegócio na Terra Indígena Sangradouro, em Mato Grosso
O procurador-chefe da Funai, Álvaro Simeão, sugeriu em um despacho emitido em setembro de 2020 que terras indígenas deveriam ter o mesmo percentual de preservação de mata nativa que o exigido de propriedades rurais comuns.
No mesmo documento, Simeão deu parecer favorável ao projeto “Independência Indígena”, de plantio de soja na Terra Indígena (TI) Sangradouro, em Mato Grosso, e tachou de “aparentemente inconstitucional” a vedação de utilização de sementes transgênicas em terras indígenas.
“Na terra indígena em produção devem ser aplicados todos os normativos ambientais que se aplicam aos não índios, sendo aparentemente inconstitucional a proibição categórica de uso de transgênicos por indígenas”, diz o parecer. “O percentual de mata nativa preservada deve ser o mesmo estabelecido para não índios.”
De acordo com o Código Florestal, o percentual de mata nativa a ser preservada em propriedades rurais privadas varia conforme o bioma. No Cerrado, onde se localiza a TI Sangradouro, essa cota é de 35%.
Além disso, existe uma lei específica, de 2007, que veda o cultivo de organismos geneticamente modificados (transgênicos) dentro de terras indígenas. Foi com base nessa legislação que, em 2018, o Ibama aplicou 36 multas contra os responsáveis pelo cultivo de soja e milho em terras Pareci, Manoki e Nambikwara, no oeste de Mato Grosso.
O despacho do procurador Álvaro Simeão foi emitido após pedido da Coordenação-Geral de Promoção ao Etnodesenvolvimento, a Cgetno, da Funai de Brasília, que solicitou uma análise jurídica de contratos de “parceria agrícola” firmados entre fazendeiros e lideranças indígenas pró-Agro na Terra Indígena Sangradouro, que fica nos município de Poxoréu, Primavera do Leste e General Carneiro (MT).
Os contratos entre fazendeiros e indígenas foram assinados em março de 2020, mas o projeto, idealizado por Jair Bolsonaro, já era uma promessa aos produtores rurais desde 2017, quando o então deputado federal esteve em Primavera do Leste.
Os documentos previam a abertura de 11 mil hectares de lavoura no centro de Sangradouro, numa parceria entre a recém-criada cooperativa indígena Cooigrandesan e fazendeiros locais – entre eles o sojicultor José Nardes, liderança ruralista da região e irmão do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Augusto Nardes.
A iniciativa, também conhecida como “Agro Xavante”, é uma das prioridades da presidência da Funai no mandato de Jair Bolsonaro, mas tem acumulado problemas e críticas desde que começaram as negociações com a cúpula do órgão indigenista, no ano de 2019.
Simeão, o procurador da Funai, deu parecer favorável aos contratos e argumentou que a própria constituição da cooperativa indígena dispensaria a consulta prévia, livre e informada prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a OIT, da qual o Brasíl é signatário: “Como o contrato de cooperação já é manifestação válida de vontade da comunidade indígena, mostra-se dispensável uma etapa prévia de consulta comunitária, como fixado no artigo 6º da Convenção 169 da OIT”.
Ele sugeriu, no entanto, que os contratos estipulassem uma divisão igual de lucros entre indígenas e não indígenas – para o procurador, a divisão por sacas de soja, prevista inicialmente nos contratos, poderia caracterizar arrendamento em terra indígena, o que é vedado pelo artigo 18 do Estatuto do Índio e pelo artigo 94 do Estatuto da Terra.
Um novo clima
Para a indigenista e ex-presidente da Funai, Maria Augusta Assirati, o parecer do procurador Álvaro Simeão vai de encontro aos artigos 231 e 232 da Constituição Federal e à Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (Pngati), implementada em 2012.
“Embora essas políticas não estipulem um percentual de mata nativa a ser preservada dentro das terras indígenas, elas são claramente orientadas à conservação dos recursos naturais nessas áreas”, argumenta ela. “As terras indígenas são as que mais protegem. Elas apresentam as taxas mais reduzidas de desmatamento e de depreciação ambiental”.
Segundo um levantamento do MapBiomas, apenas 1,6% da perda de vegetação nativa ocorrida no Brasil entre 1990 e 2020 foi registrada dentro de Terras Indígenas.
Assirati também discorda da avaliação de que o contrato de parceria firmado entre indígenas pró-agro e fazendeiros representaria manifestação da vontade de toda a comunidade indígena de Sangradouro.
“Cada povo indígena tem as suas formas de consensuar e deliberar a respeito das questões, e muitas vezes são formas bastante complexas”, diz ela. “Implementar um mecanismo [a lavoura] tão estrangeiro para dentro de um povo indígena exigiria a realização de uma consulta. Ter um contrato assinado não significa que a comunidade deliberou sobre isso.”
Para Assirati, o despacho do procurador é sintomático do novo “clima” que se instalou na Funai após a posse do presidente Jair Bolsonaro. “Essa forma como a Funai vem atuando de 2019 pra cá é fruto de uma estratégia que foi deliberadamente expressa pelo atual presidente antes mesmo dele se eleger”, argumenta ela. “Ele sempre se manifestou contrário à defesa dos direitos indígenas, à demarcação de territórios indígenas e à garantia de direitos específicos para populações indígenas.”
Após revisão e parecer favorável da Funai, os contratos foram alterados e passaram a prever a abertura de uma área menor, de mil hectares, entre outras mudanças. Como já mostramos no Joio, a área atualmente desmatada pelo projeto é de 1.475 hectares.
Em julho, os fazendeiros envolvidos – José Nardes, Marciane Ferrari, Vitélio Furlan e Igor de Alcantara – foram multados pelo Ibama por desmatamento ilegal em terra indígena e a lavoura, embargada.
Em agosto, como já mostramos no Joio, chefes da Funai viajaram de Brasília à Sangradouro para se articular com os indígenas e fazendeiros na tentativa de derrubar a multa e o embargo. Na ocasião, também foi prometida a liberação do garimpo e da extração de madeira em terras indígenas.