Imagem de drone mostra lavoura de fazendeiros multados por desmatamento ilegal na Terra Indígena Sangradouro. Foto: Marcos Hermanson Pomar

Ibama multa por desmatamento fazendeiros que plantam dentro de terra indígena no Mato Grosso

Projeto conhecido como Agro Xavante ocupa 1.500 hectares para plantio de soja e milho no coração da Terra Indígena Sangradouro. Área técnica da Funai tem se queixado de atropelo e falta de informações

O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) autuou quatro fazendeiros por desmatamento ilegal na terra indígena Sangradouro, no leste de Mato Grosso. 

José Otaviano Ribeiro Nardes, Vitélio Furlan, Marciane Ferrari Donin e Igor Fontenele de Alcântara, os produtores multados, promovem plantio de arroz, soja e milho no território da etnia Xavante desde dezembro de 2020

As sanções variam de R$ 600 mil a R$ 1 milhão por produtor rural, por desmatamento ilegal e construção de empreendimentos potencialmente poluidores em área protegida, sem licença ambiental. Desde o último dia 27, as áreas estão embargadas – ou seja, a terra não deve ser utilizada. 

Os fazendeiros multados atuam em parceria com a Cooperativa Indígena Grande Sangradouro e Volta Grande (Cooigrandesan), que reúne indígenas pró-agro e foi criada com o objetivo de viabilizar a lavoura.  

Segundo contratos firmados entre a Cooperativa e fazendeiros, cabe aos indígenas “responder aos processos ambientais e políticos para garantir o uso agrícola da área”. Procurado pela reportagem, o Xavante Gerson Wã raiwe, presidente da Cooigrandesan, afirmou: “Não é o Ibama que vai fechar um projeto que é vontade dos caciques”.

A operação de fiscalização do Ibama foi realizada na segunda quinzena de julho. Os autos de fiscalização a que o Joio teve acesso não informam o tamanho das áreas objeto das multas. Ainda cabe defesa dos autuados.

O presidente da Cooperativa Indígena Grande Sangradouro e Volta Grande, Gerson Wã raiwe, posa para foto em frente à lavoura do projeto Agro Xavante. Foto: Marcos Hermanson

Apoio do alto

Também conhecido como Independência Indígena, o projeto é uma das prioridades da presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai) no mandato de Jair Bolsonaro. 

No discurso do governo, o Agro Xavante é apresentado como uma solução para as questões de pobreza, insegurança alimentar e desnutrição infantil dentro de terras indígenas. A versão oficial é de que o plantio de grãos, em especial soja e milho, propiciará renda para os povos indígenas, tornando-os independentes do Estado. 

“O projeto fortalece o etnodesenvolvimento e conta com o apoio da Funai”, afirmou o presidente do órgão indigenista, Marcelo Xavier, em evento que marcou a primeira colheita de arroz empreendida pelo Independência Indígena, em maio de 2021. Na ocasião, ele também disse que esperava ver iniciativas do tipo se espalhando pelo país.

A partir de hoje, e nas próximas semanas, O Joio e O Trigo publica a série de reportagens “Os Parceiros do Rio das Mortes”, que conta quem são as pessoas que participam do Agro Xavante, quais os argumentos em favor do plantio em larga escala dentro dessas terras indígenas, e quais são as críticas de parte dos próprios Xavante. 

Entraves

O projeto tem acumulado problemas e contestações desde que começaram as articulações com a Funai, em 2019. O primeiro plantio, com arroz, em 2021, teve um rendimento pequeno, de 120 toneladas, e a safra de milho de 2022 foi castigada por uma seca mais longa que o normal, o que ocasionou baixa produtividade novamente. 

Além disso, a fiscalização do Ibama se dá num contexto de queixas de órgãos públicos, como a coordenação local da Funai, em Barra do Garças, sobre a falta de informações e de prestação de contas pelos fazendeiros e pela Cooigrandesan. 

Em 08 de abril deste ano, o Serviço de Gestão Ambiental e Territorial da Coordenadoria Regional de Barra do Garças alertou sobre “fortes indícios” de discrepância entre a área autorizada para desmatamento – que constava nos termos de cooperação firmados entre a cooperativa e fazendeiros – e a área de fato desmatada.

Em sucessivos ofícios, o então chefe da seção cobra tanto a cooperativa como a Coordenação-Geral de Etnodesenvolvimento, em Brasília. “Este Segat não recebeu informações a respeito da prestação de contas, protocolos de consulta, partilha de benefícios ou execução técnica do projeto, mesmo após reiteradas solicitações”, registra, em um dos documentos.  

Imagens de satélite levantadas pelo grupo de pesquisa Ambiente, Território e Ações Coletivas, coordenado pelo professor Magno Silvestri, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), demonstram que a área de lavoura tem 1.475 hectares. As imagens também mostram picadas na mata em áreas contíguas à plantação, o que indica a intenção de expandir a lavoura.

Legenda: Imagens de satélite mostram que a área de lavoura tem 1.475 hectares (Fonte: Grupo de Pesquisa Ambiente, Território e Ações Coletivas)

“Até já entramos com um pedido de ampliação também, nós estamos fazendo estudos já para ampliar. Achei que na época 1.000 hectares seria suficiente, mas não é suficiente”, nos contou Gerson Wã raiwe, em junho. 

Na realidade, documentos a que o Joio teve acesso mostram que, inicialmente, pretendia-se cultivar 11 mil hectares, mas a Coordenação-Geral de Promoção ao Etnodesenvolvimento da Funai sugeriu uma série de alterações no projeto, incluindo uma redução da área prevista para plantio, que acabou ficando em 1.000 hectares. 

Em maio, a cooperativa protocolou no Ibama um pedido de autorização para a ampliação a 6.000 hectares, o que corresponderia a 4% da área total de Sangradouro. 

Pés de milho “safrinha” plantados pelo Projeto Agro Xavante. Foto: Marcos Hermanson

Parceiros

Oficialmente, os quatro fazendeiros multados produzem em parceria com os Xavante. Os termos de cooperação firmados com a cooperativa indígena definem que os produtores são responsáveis pelo maquinário e pela compra de produtos químicos, como agrotóxicos e fertilizantes, além de contratar a mão de obra indígena e não indígena. Aos Xavante cabe uma parcela de 20% dos lucros. 

Na entrevista concedida à reportagem em junho, o presidente da Cooperativa afirmou que metade da receita da cooperativa seria investida em saúde e educação e a outra metade seria distribuida igualmente entre a comunidade, mas essa previsão não existe nos contratos firmados com fazendeiros. 

Segundo os documentos, os lucros serão divididos apenas entre os cooperados da Cooigrandesan, que são cerca de vinte.

A estrada

A reportagem esteve em Sangradouro algumas semanas antes da operação do Ibama. Uma placa colocada à beira da BR 070 indica o projeto “Independência Indígena”, e traz os logotipos de uma dezena de organizações e órgãos públicos, como Funai, Ministério Público Federal, Polícia Rodoviária Federal e Sindicato Rural de Primavera do Leste, organização que reúne os produtores rurais da região. 

Placa do Projeto Independência Indígena exibe apoio de órgãos como Funai, Governo do Mato Grosso e Polícia Rodoviária Federal. Foto: Marcos Hermanson

Para chegar à lavoura, é preciso dirigir mais de vinte quilômetros pela estrada de terra, que chama atenção pela qualidade e pela largura. A pista, destoante das demais de Sangradouro exatamente pela qualidade, tem autoria desconhecida. 

Após pedido da Cooperativa, a presidência da Funai concedeu à Prefeitura de Poxoréu (MT) autorização para manutenção da estrada já existente, que ligava a BR 070 à área destinada à lavoura. 

Mas uma fiscalização realizada em novembro de 2021 descobriu que uma nova estrada, com largura de 50 metros e traçado paralelo à estrada antiga, havia sido aberta. 

Questionada pela Funai, a prefeitura de Poxoréu negou que tivesse sido responsável pela obra, dizendo que meramente havia feito a manutenção da estrada antiga. A estrada antiga, porém, continua igual. 

Ao final do trajeto, uma cancela fechada e uma casa recém-construída com uma bandeira do Brasil marcam o início da lavoura. Dali por diante, a paisagem se assemelha a qualquer fazenda de produção de grãos: há pequenos espaços arborizados atrás dos quais ficam os barracões para o maquinário, com tratores e colheitadeiras, e para o alojamento dos trabalhadores. 

Durante entrevista na sede do Sindicato Rural, José Otaviano Ribeiro Nardes afirmou que a ideia do Agro Xavante partiu de Jair Bolsonaro, que teria pedido pessoalmente ao fazendeiro que se encarregasse de conduzir a lavoura em larga escala. Na versão dele, teria sido o presidente quem o apresentou a Marcelo Xavier, delegado da Polícia Federal que assumiu a Funai em julho de 2019. 

“A Funai, ele mudou 100%. Não tínhamos acesso à Funai. Tu tinha que ir na Funai antes do Marcelo e depois. Ele conseguiu tirar da Funai mais de 80% de funcionários que não faziam nada. Hoje, se você chega na Funai, tem sala lá de 200 metros quadrados, com uma pessoa trabalhando ou duas, dentro de uma sala em que trabalhavam 100, 200 pessoas. Ele não conseguiu tirar, mas conseguiu transferir”, afirmou.

Ao mesmo tempo, Nardes queixava-se da dificuldade em avançar no licenciamento ambiental, e disse que iria pessoalmente a Brasília cobrar do Ibama uma solução rápida. “É só você ligar uma coisa na outra. O governo atual tem bastante influência sobre a Funai. No Ibama a esquerda caprichou mais. Ainda, como em outros ministérios do Brasil, o presidente não tem condições de fazer o trabalho que ele quer fazer. É difícil de trabalhar. Muito difícil.”

Os produtores rurais multados pelo Ibama foram procurados por telefone e através do Sindicato Rural de Primavera do Leste, mas não se posicionaram até a publicação da reportagem. Caso enviem resposta, ela será adicionada ao texto. O Ibama também foi procurado, mas ainda não encaminhou posicionamento.

* Colaborou Leonardo Fuhrmann

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