O corante que dá cor ao refrigerante mais vendido no mundo está presente em mais da metade dos grupos de alimentos. Os efeitos para a saúde humana ainda estão em aberto
“Quando a gente fala de corante, as pessoas automaticamente pensam naquela bala colorida, naquele pirulito, no refrigerante”, diz Mariana Kraemer, nutricionista e pesquisadora de aditivos alimentares da Universidade Federal de Santa Catarina. Porém, “a gente vê que corante é usado em todo tipo de alimento e não só em alimento colorido”.
O corante caramelo IV é uma entre um bocado de substâncias químicas usadas pela indústria para conferir, intensificar ou restaurar a cor de determinado alimento. Uma pesquisa sobre aditivos presentes em rótulos de alimentos nas redes de supermercados brasileiras encontrou esse corante em 15 dos 25 subgrupos de alimentos categorizados. Ele está presente principalmente nas bebidas adoçadas carbonatadas, ou seja, refrigerantes, energéticos e afins, figurando em 32% dos produtos analisados.
Os dados são de um levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) em parceria com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP). Foram mapeadas dez lojas das principais redes de supermercados de Salvador e de São Paulo.
Para além do que já se esperava, chama a atenção a presença desse aditivo em outros produtos, que não têm cores tão intensas, como massas de pizzas (11%) e refeições prontas (10,6%).
“Ele é um corante importante para a caracterização e reconhecimento de determinados produtos, como as bebidas de cola”, lembra Daniela Canella, professora na Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisadora do Nupens.
O caramelo IV é um corante artificial, resultado de uma técnica industrial que lança mão de processos químicos que colocam qualquer leigo de cabelo em pé. Esses aditivos, usados para tornar biscoitos, bebidas, miojo e companhia mais atraentes, são chamados, por alguns pesquisadores da área, de aditivos cosméticos. Além dos corantes, também entram nesse balaio saborizantes, aromatizantes e emulsificantes, entre outros.
É importante dizer que esse é um termo em disputa no mundo científico e não existe consenso – sob essa perspectiva, considera-se que são uma maquiagem, uma espécie de trapaça.
Uma pesquisa sobre aditivos presentes em rótulos de alimentos nas redes de supermercados brasileiras encontrou esse corante em 15 dos 25 subgrupos de alimentos categorizados. Ele está presente principalmente nas bebidas adoçadas carbonatadas, ou seja, refrigerantes, energéticos e afins, figurando em 32% dos produtos analisados.
Um artigo publicado utilizando também o banco de dados da pesquisa da USP e do Idec, “Distribution and patterns of use of food additives in foods and beverages available in Brazilian supermarkets” (Distribuição e padrões de uso de aditivos alimentares em alimentos e bebidas disponíveis em supermercados brasileiros, em tradução livre), concluiu que, dos cinco aditivos mais presentes nos itens avaliados, apenas um (conservantes) não era um aditivo cosmético.
A onipresença do corante caramelo IV vai além das fronteiras do reino dos ultraprocessados: algumas carnes embaladas – alimentos minimamente processados – também lançam mão da substância.
Kraemer explica que isso acontece porque, para durar semanas, meses e até anos nas prateleiras, alguns alimentos precisam de conservantes que podem descaracterizar sabores, texturas e aromas naturais. Para resolver o problema, a indústria agrega outros aditivos para tornar mais atraente aquele alimento que inicialmente não precisaria de nada disso. “Um blend que vai pro infinito”, lamenta a pesquisadora.
Coca-Cola, eis a questão
Avião sem asa
Fogueira sem brasa
É a Coca-Cola sem o caramelo IV
De longe, o produto que mais depende do corante caramelo IV é essa velha conhecida. Sem o companheiro para conferir a cor preta, a rainha dos refrigerantes seria transparente, o que retiraria completamente a identidade do produto que há anos se apresenta de tal forma no mercado que chegou a dar nome a cachoeiras cujas águas se assemelham à cor do refrigerante.
A preocupação em torno do ingrediente apareceu no relatório “Principais questões regulatórias”, uma encomenda da Coca-Cola para a consultoria Sancroft, realizada em 2016. Esse documento foi localizado pela pesquisadora Camila Maranha, professora da Universidade Federal Fluminense.
O relatório levantou as principais questões que a corporação deveria priorizar naquele momento e fez um mapa de calor para identificar quais países e regiões no mundo estavam em processos regulatórios e de desenvolvimento de políticas públicas com potenciais riscos aos negócios da corporação.
Os principais problemas de política da área de assuntos científicos e regulatórios elencados pela pesquisa da consultoria Sancroft:
- Cafeína
- Corante caramelo/4-MEI
- Corantes
- Resíduos de cultivo
- Saborizantes
- Organismos geneticamente modificados (OGM)/biotecnologia
- Rotulagem frontal
- Embalagem/Bisfenol A (BPA)
- Conservantes
- Açúcares, adoçantes de baixa ou nenhuma caloria e doçura
Fonte: Documento “Principais questões regulatórias”, 2016.
O relatório mencionou a publicação de duas pesquisas, no fim de 2015, que relacionam o consumo do 4-Metilimidazol (4-MEI) aos efeitos negativos para a saúde. Esse composto não é adicionado diretamente aos alimentos, mas se forma na queima dos compostos durante a fabricação do corante caramelo IV. Ele já é tido como cancerígeno pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), que faz parte da OMS.
O corante caramelo é obtido pela queima de açúcares em conjunto com outras substâncias. Existem hoje, no mercado, quatro tipos.
- O I, o mais simples ou natural;
- o II, que contém sulfitos;
- o III, que contém amônia;
- e, finalmente, o IV, que contém sulfitos e amônia.
A professora do Instituto de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Florencia Cladera, explica que os corantes caramelo conferem mais cor conforme aumenta seu número. Porém, o IV está mais presente nos alimentos ultraprocessados não só porque confere mais pigmento, mas também por causa da interação e compatibilidade com as outras substâncias presentes na lista de ingredientes. Ou seja, a indústria está lidando com um problema dificílimo de resolver.
“Tem, sim, uma tendência na indústria, hoje, de tentar substituir corantes artificiais por corantes naturais. Porém, os corantes artificiais são mais baratos, têm cores bem mais vivas. Do ponto de vista tecnológico, são melhores, vão se degradar bem menos”, explica Cladera.
Legislação vaga
O uso do caramelo IV e dos demais aditivos alimentares é regulamentado pela Portaria nº 540, de 27 de outubro de 1997 – dois anos antes, portanto, da criação da Anvisa, hoje responsável por essa regulamentação. A indústria deve apresentar algumas informações ao solicitar a inclusão em algum produto, como a comprovação da segurança de uso, a necessidade tecnológica, o limite proposto, a estimativa da ingestão diária aceitável do aditivo e as referências internacionalmente reconhecidas.
O Codex Alimentarius, conjunto de padrões alimentares da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e da OMS, é a principal referência para a tomada de decisões da Anvisa. O Codex tem teor recomendatório, o que significa, na prática, que cada país tem autonomia para propor as próprias diretrizes de aprovação e limites de ingestão dos aditivos alimentares.
A regulamentação brasileira é frágil em vários aspectos. Primeiro, a indústria não precisa indicar a quantidade de aditivos presentes nos produtos: eles aparecem ao final da lista de ingredientes, sem obedecer o critério de decrescimento de concentração. Segundo, aditivos presentes em outros ingredientes não são descritos na lista. Por exemplo, o queijo de uma pizza congelada pode conter aditivos que não serão considerados para o cálculo dos limites de ingestão diária aceitável, como também não estarão descritos na embalagem.
A professora da UFRGS Florencia Cladera destaca que temos uma “legislação bastante permissiva” com relação aos corantes artificiais. A ingestão acima do limite de ingestão aceitável também é uma preocupação da pesquisadora. “Isso [ingerir além dos limites aceitáveis] pode acontecer em função do mesmo corante estar presente em vários alimentos”, diz. “Isso é mais relevante ainda em crianças, porque as crianças têm o peso corporal menor e devem consumir menos. Ao mesmo tempo, a gente observa muitos alimentos para o público infantil com a presença de corantes.”
Daniela Canella vai na mesma toada: “A gente não conhece a quantidade de corante incluída nos produtos, mas a gente sabe que uma parcela importante de produtos amplamente consumidos pela população tem esse esse tipo de corante [caramelo IV]”, alerta.
“Tem, sim, uma tendência na indústria, hoje, de tentar substituir corantes artificiais por corantes naturais. Porém, os corantes artificiais são mais baratos, têm cores bem mais vivas.
Efeitos na saúde: o que se sabe até o momento
Em tese, os limites estabelecidos pela Anvisa para a ingestão diária aceitável (IDA) são seguros, porém, os atuais padrões alimentares colocam dois fatores na mesa: a associação entre vários aditivos e as quantidades consumidas ao longo do tempo por um mesmo indivíduo.
Uma criança que come um cereal de manhã, um salgadinho no lanche da escola e toma um copo de refrigerante à noite pode ter complicações de saúde ao longo da vida causadas por esses químicos. Mas ainda não se sabe exatamente quais efeitos esse caldo pode provocar, uma vez que, na ciência, é antiético submeter um grupo de pessoas a um experimento potencialmente tóxico, e que seria virtualmente impossível rastrear todos os efeitos de uma gama enorme de aditivos liberados para uso.
Com essa lacuna de evidências sobre os efeitos à saúde humana, pesquisadores da área fazem uma recomendação categórica: melhor precaver do que remediar. “A falta de evidências é diferente de você ter confirmação de segurança. São coisas diferentes. A gente não tem evidência de malefício, porque a gente não tem estudo, e não porque a gente tem estudo que confirme segurança”, explica Kraemer.
“A partir do momento que isso não foi testado em humanos, a gente deveria se valer do princípio da precaução e usar esse tipo de aditivo com cautela, porque pode causar danos, principalmente a médio e longo prazo, em seres humanos”, adverte a pesquisadora.
As crianças são o grupo populacional que mais preocupa os pesquisadores, considerando que elas têm exposições relativas mais altas em comparação com os adultos (devido à maior ingestão alimentar por quilo), seus sistemas metabólicos ainda estão em desenvolvimento e os principais sistemas de órgãos estão passando por mudanças substanciais.
O artigo “Food Additives and Child Health” (Aditivos alimentares e saúde das crianças, em tradução livre), publicado na American Academy of Pediatrics, alerta para as evidências que demonstram que os corantes artificiais podem estar associados à exacerbação dos sintomas do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH).
Uma meta-análise, publicada no Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, aponta que uma dieta de restrição de aditivos alimentares melhora os sintomas de TDAH, concluindo que cerca de 30% das crianças com o transtorno tenha respondido positivamente. A meta-análise é um método que agrega os resultados de dois ou mais estudos, sobre uma mesma questão de pesquisa, combinando seus resultados. O estudo também apontou que 8% das crianças com TDAH podem ter sintomas relacionados a corantes sintéticos.
O artigo “Aditivos alimentares na infância: uma revisão sobre consumo e consequências à saúde”, publicado na Revista de Saúde Pública – uma das autoras é a pesquisadora Mariana Kraemer – pondera que o consumo de diferentes tipos de conservantes e, concomitantemente, de conservantes, corantes e edulcorantes demonstraram riscos potenciais de danos ao DNA de células cerebrais, renais e hepáticas.
Essa crescente preocupação deixa duas pontas soltas. De um lado, a indústria não sabe o que fazer para substituir esses aditivos que deixam os ultraprocessados tão atraentes ao paladar, ao olfato, aos olhos. De outro, a ciência ainda carece de testes em humanos para especificar os problemas causados pelos aditivos.
Mas é o segundo ponto, principalmente, que interessa avançar. Até porque não há qualquer expectativa de que a Coca-Cola vá se despedir do caramelo e vá vender Coca com cara de Sprite.