Foto: Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira-Purus da Funai

Há mais de um ano, Funai se omite em proteger indígenas isolados localizados na Amazônia

Frente de Proteção do órgão aponta risco de conflito e organizações pedem proteção urgente para indígenas localizados em julho de 2021. Servidor que coordenou expedição denuncia perseguição da Funai

Há um ano e três meses, a direção da Fundação Nacional do Índio (Funai) não toma medidas para proteger os “isolados do Mamoriá Grande”, grupo de indígenas localizado em agosto de 2021 pela coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus. 

A localização do 29º grupo de indígenas isolados se deu nas proximidades do rio Purus, no interior da Reserva Extrativista do Médio Purus, no município de Lábrea, no sul do Amazonas. 

O fato foi informado em setembro do ano passado à Funai e à Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC) por meio de relatório enviado a Brasília. Na época, os servidores do Amazonas solicitaram a instalação de bases de proteção e a restrição de uso do território, que são as medidas-padrão tomadas quando da confirmação de um grupo de isolados. Em outubro e dezembro de 2021, a Funai do Amazonas enviou novos relatórios, em relação aos quais seguiu sem retorno. A omissão da Funai em proteger o grupo recém-localizado foi noticiada pelo Joio em janeiro deste ano. 

À época, a novidade foi motivo de comemoração entre indigenistas, que esperavam que a direção da fundação finalmente se visse obrigada a atuar. Mas a inércia do órgão se manteve, e segue a preocupar organizações. 

Após a denúncia, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI), e a Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp) emitiram notas públicas falando em negligência e risco de genocídio. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) enviou um ofício ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) denunciou a omissão da Funai ao Ministério Público Federal (MPF). Em novembro deste ano, OPI, Coiab e Focimp enviaram carta ao MPF pedindo proteção urgente para a área onde vivem os isolados. 

Em março de 2022, o Ministério Público Federal fez uma recomendação à Funai, assinada pelo procurador da República Fernando Merlotto Soave, solicitando que o órgão indigenista efetue a edição e publicação de Portaria de Restrição de Uso relativa aos Mamoriá Grande. Ele recomendou a realização de “tratativas entre Funai e ICMBio, com diálogo junto aos povos tradicionais no local, para instalação de base de proteção etnoambiental na foz do igarapé Macaco no interior da Resex Médio Purus, e em outros locais caso seja necessário, após estas articulações”. 

O prazo dado pelo MPF para que a Funai se manifestasse “sobre o acatamento da recomendação, encaminhando esclarecimentos detalhados acerca das providências adotadas para seu cumprimento”, foi de dez dias. Porém, a Funai respondeu ao MPF apenas em agosto, ou seja, após cinco meses. E até agora nenhuma medida foi tomada pelo órgão para proteger o grupo indígena em seu território. 

Risco de conflito

A área onde os indígenas foram confirmados está sobreposta em parte à Reserva Extrativista do Médio Purus, e um possível encontro entre indígenas isolados e extrativistas pode ser perigoso. “Há um risco de conflito”, alerta o indigenista Daniel Cangussu, servidor da FPE que coordenou a expedição que confirmou o grupo de isolados. 

Em julho deste ano, o coordenador do mesmo órgão, Izac da Silva Albuquerque, organizou uma terceira expedição à região. “Ficou claro que o território está invadido e a cultura material está sendo acessada. A Funai tem se omitido e permitido o aumento dos conflitos entre eles, inclusive há ameaças cada vez mais frequentes dos ribeirinhos contra técnicos da Funai”, denuncia Cangussu. 

O indigenista relata que em uma expedição à região dos isolados realizada em junho deste ano, o coordenador da FPE foi acompanhado por policiais militares. A equipe foi abordada por ribeirinhos dentro do acampamento da expedição. Em outro momento, foram abordados por outros ribeirinhos que, perguntaram se a equipe teve problemas, já que algumas pessoas da região estariam mobilizadas para retirar a equipe da Funai à força. Também teriam dito que, caso os servidores não tivessem feito a expedição com policiais, “a coisa ficaria ruim” para eles, relata o servidor da Funai. 

Uma das críticas de organizações e do movimento indígena é que a Funai de Brasília tentou desqualificar o trabalho da equipe do sul do Amazonas, ao falar que o grupo não representaria um novo registro de isolados, e sim eram parte do grupo Hi-Merimã, povo isolado que vive na região. 

“Falaram que não é um novo grupo. Essa é uma avaliação contrária das pessoas que trabalham em campo. E, depois, disseram que não havia urgência de ação, já que era o pessoal do Himerimã, que estava ali de forma sazonal e depois ia voltar pra terra indígena deles, que é homologada”, afirma Leonardo Lenin Santos, ex-coordenador de proteção e localização de índios isolados da Funai e assessor indigenista do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi).

De acordo com a política pública que assegura os direitos dos grupos isolados, quando há a confirmação do registro da existência de um grupo, o passo seguinte à confirmação é a decretação de uma restrição de uso sobre o território onde vivem, assim como a criação de medidas de vigilância e proteção territorial. 

“Faz mais de um ano que o registro foi confirmado. A Funai não garantiu sua proteção e insiste em uma narrativa de continuar realizando o monitoramento sem proteger”, diz Cangussu. “Se fizermos dez monitoramentos, isso não vai garantir a proteção. O propósito do monitoramento territorial é mapear vestígios dos isolados. É possível, por exemplo, monitorar um grupo por décadas, sem garantir para ele a proteção”, explica. 

O cacique Zé Bajaga, da etnia Apurinã e coordenador executivo da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus, afirma estar preocupado. “Essa demora prejudica os parentes e os coloca em risco. Sabemos que a Funai de hoje é totalmente anti-indigena. Nem uma restrição de uso para os parentes em vulnerabilidade conseguiu fazer e nem uma casa de vigilância para proteção? Ficamos cada vez mais apreensivos e indignados”, diz.

Morosidade do MPF

Para Leonardo Lenin, da OPI, a Funai “está nítido que a coordenação da CGIIRC, diretoria e Presidência da Funai estão empurrando o caso com a barriga, mesmo que tanto a equipe de campo como o movimento indígena apontem a urgência e preocupação pela situação”. Segundo ele, “desta vez, seja por excesso de demanda, seja por falta de  entendimento do que é necessário fazer em relação à publicação da restrição de uso, o MPF também foi moroso, confiando em tomadas de ações da Funai que vem atuando contra os direitos territoriais indígenas. Diante da gravidade da situação, das denúncias feitas por organizações indígenas e indigenistas, esperava-se que o MPF, cumprindo suas atribuições constitucionais o MPF fosse mais enérgico em sua atuação”, critica Lenin.

De acordo com o artigo 232 da Constituição Federal, “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”. 

Ao longo deste ano, em reuniões com o MPF e indígenas, a Funai defendeu a construção de um acordo de cooperação com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para criar uma gestão compartilhada da Resex, sobreposta ao território ocupado pelo grupo isolado. 

Porém, para as entidades indigenistas, a sugestão da Funai desrespeita os direitos territoriais previstos na Constituição e deixa os isolados mais vulneráveis. A portaria que foi proposta pelo órgão indigenista foi assinada pelo ICMBio, mas, até o momento, não recebeu o endosso da Funai. 

Na carta ao MPF, as entidades indigenistas ressaltam que “ICMBio e Funai são instituições vinculadas a ministérios diferentes, com diferentes regimentos, fluxos orçamentários, escalas de trabalho, normativos administrativos e também diferentes concepções de proteção territorial. Será extremamente desgastante, senão impossível, que ambas as instituições atuem de maneira harmônica no trabalho contínuo e ininterrupto de um posto de fiscalização. Se, passados um ano, Funai e ICMBio não conseguiram nem mesmo entrar em simples acordo sobre a questão, quem dirá na complexa operacionalização de um posto de vigilância amazônico?”

Assédio e perseguição

O indigenista Daniel Cangussu relata que, desde que a direção da Funai foi denunciada, ele vem sendo assediado e perseguido pela Presidência do órgão. “A confirmação do registro teve um reflexo contrário [ao que deveria ter]. Ela expôs a localização do grupo, não garantiu a proteção dos indígenas e expôs os servidores”, argumenta. Ele diz que, desde a denúncia, nenhuma das ordens de serviço em seu nome foi assinada por Brasília. 

“A gente começou a achar estranho que todas as ordens de serviço dos outros servidores eram assinadas. E só as minhas que não”, diz. Embora as Frentes de Proteção tenham orçamento próprio, as atividades e expedições realizadas precisam de autorização, ou seja, da assinatura da Presidência da Funai. “A única coisa concreta que temos pós-localização é que a pessoa que coordenou a expedição passou a ser ameaçada pela própria Funai. Esse é o reflexo institucional da confirmação do registro”, diz. 

Apesar das negativas, Cangussu tem feito as expedições. “É uma decisão interna, minha e do coordenador. Mas há situações constrangedoras. Recentemente, participei de uma expedição sem ter uma ordem de serviço. Eu coordenei uma equipe e o Izac [coordenador da FPE], outra. Ele, com autorização, eu, sem. E uma equipe de policiais me acompanhou. A Funai assinou a autorização para os policiais e não assinou a minha”, denuncia. A reportagem não conseguiu contato com o coordenador da FPE< Izac da Silva Albuquerque.

Em nota, o MPF informou que “está acompanhando o caso e dialogando como todos os atores interessados, como Fundação Nacional do Índio (Funai), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e lideranças indígenas. Foram realizadas reuniões nas últimas semanas para entender o contexto e as medidas adotadas até o momento. Foi informado que um termo de cooperação entre Funai e ICMBio está em construção, bem como o anúncio de instalação de uma base de proteção na região do Mamoriá Grande”.

Disse, ainda, que “á medidas ainda que precisam ser tomadas pelo Poder Público para maior proteção dos povos isolados na região, e o MPF segue atuando no acompanhamento dessas tratativas para decidir sobre eventuais medidas cabíveis, até mesmo a judicialização se necessário, caso as articulações não gerem os resultados esperados”.

Procurada, a Funai não se manifestou até a publicação da matéria.

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