A multinacional está entre as patrocinadoras mais antigas da competição. Uma abre-alas para que a indústria de ultraprocessados dominasse o marketing do Mundial e das seleções participantes
De quatro em quatro anos, algumas cenas se repetem na Copa do Mundo. As ruas pintadas. As bandeirinhas verde-amarelo penduradas nos postes. O clima de carnaval nas ruas. O frenesi para completar o álbum de figurinhas – o que, hoje, no Brasil, está gerando uma busca ativa por produtos da Coca-Cola, inclusive com relatos de famílias e nutricionistas apontando que crianças têm pedido por produtos da empresa; isso porque o álbum oficial tem uma página dedicada a figurinhas exclusivas da multinacional, que só podem ser adquiridas através da compra de seus produtos. As crianças entrando no gramado junto com as seleções, de mãos dadas com os maiores jogadores do mundo. Nas imagens transmitidas pela televisão, o plano fechado no rosto permite ver, ao fundo, telões exibindo a logomarca dos patrocinadores, nas laterais do campo. A Coca-Cola está sempre lá. Se você nunca reparou, terá essa oportunidade no próximo domingo (20), quando começa mais uma edição da competição.
Esta será uma Copa de muitas “primeiras vezes”. A primeira sediada em um país do Oriente Médio, o Qatar – uma monarquia absolutista, que se tornou independente do Reino Unido há pouco mais de 50 anos, cuja economia é baseada na exploração de petróleo e que hoje vive uma série de tensões com a comunidade internacional. Seja pela criminalização da comunidade LGBTQIAP+, que já rendeu manifestações de repúdio de seleções que participarão da Copa. Seja pelas acusações de apoio a atos terroristas, que já renderam quase cinco anos de embargos econômicos impostos por países vizinhos. Não é à toa que o presidente da Fifa, Gianni Infantino, pediu às seleções “foco no futebol, não em política” – como se fosse simples assim.
Também é a primeira, desde que a pandemia começou. A primeira a ser transmitida no YouTube – o streamer brasileiro Casimiro Miguel exibirá 22 jogos em seu canal, com o patrocínio de Brahma, Coca-Cola, McDonald ‘s, Nubank e Vivo. A primeira em que não será permitido vender bebidas alcoólicas dentro dos estádios – e nem no entorno deles, decisão que foi tomada hoje (18), unilateralmente, pelo Qatar, causando uma crise na Fifa e o descontentamento de patrocinadores, em especial a Budweiser, fornecedora exclusiva de cervejas no evento. De acordo com reportagem publicada no UOL, a marca publicou um tweet dizendo apenas “Bom, isso é embaraçoso…” e depois o apagou. Bebidas alcoólicas só poderão ser vendidas na Fifa Fan Festival e outros pontos licenciados.
Mas essa também é uma Copa com figurinhas pra lá de marcadas. Mais uma em que há uma série de denúncias envolvendo violações de direitos humanos e trabalhistas na construção de estádios. Mais uma em que há denúncias de corrupção envolvendo a Fifa e o país-sede. Mais uma que conta com o controverso patrocínio das indústrias de bebidas alcoólicas e de ultraprocessados – formulações industriais feitas com partes de alimentos, que geralmente têm aditivos como corantes, conservantes e aromatizantes, e estão associadas a obesidade, desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e a pelo menos 57 mil mortes prematuras só no Brasil.
Dentre as empresas selecionadas pela Fifa para patrocinar a Copa do Mundo do Qatar estão Coca-Cola, McDonald’s e Budweiser (marca que pertence à Ambev). As seleções participantes também têm patrocinadores próprios. Ao todo, 21 empresas estão patrocinando ou apoiando a participação da seleção brasileira neste ano. Na última edição, eram apenas nove. O Guaraná Antarctica, da Ambev, já estava na lista quatro anos atrás. Dentre as novas aquisições do time estão os aplicativos Zé Delivery, que também é da Ambev, e Rappi.
Uma pesquisa do Ibope Repucom identificou que 300 marcas estão por trás da participação das 32 seleções que entrarão em campo esse ano. Fazem parte da longa lista, mais uma vez: Coca-Cola, Tetra Pak, Uber Eats, Budweiser, McDonald’s, Pepsi, Gatorade e Carrefour. No top 3 de setores que mais aparecem como patrocinadores, atrás apenas do setor financeiro, estão o setor de alimentos e o de bebidas sem álcool. Se eles fossem enquadrados em uma única categoria, a de ultraprocessados (que de fato são), desbancariam o setor financeiro e alcançariam o primeiro lugar no ranking.
Todos esses acordos firmados entre as empresas, a Fifa e as seleções participantes culminam em ações durante os mais de 60 jogos da competição; exibição de logomarca nos estádios e backdrops; conteúdos para redes sociais. Mensagens publicitárias que devem ser assistidas por cinco bilhões de pessoas, de acordo com estimativas da Fifa – o que é mais da metade da população mundial.
Vale lembrar que parte desse público é formado por crianças, que são especialmente vulneráveis a conteúdos publicitários. Quanto mais nova, menor é sua capacidade de diferenciar mensagens meramente informativas de mensagens com cunho mercadológico. Um estudo encomendado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) analisou as transmissões televisivas dos jogos da Copa de 2014 em oito países (Argentina, Brasil, Canadá, Finlândia, França, México, Espanha e Estados Unidos) e estimou que 325 milhões de crianças e adolescentes com menos de 16 anos foram expostos a pelo menos um minuto de imagens de torcedores bebendo em copos com logomarca. Pessoas que, na maior parte dos países do globo, não podem comprar ou ingerir bebidas alcoólicas.
“Do ponto de vista da saúde pública, é extremamente crítico”
A nutricionista, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e integrante do Grupo de Estudos, Pesquisas e Práticas em Ambiente Alimentar e Saúde (Geppaas), Paula Horta, alerta para os riscos dessa superexposição que a indústria tem na Copa. Em um artigo publicado há dois anos, ela explica que “a presença de marcas de produtos não saudáveis como patrocinadoras de clubes de futebol pode promover falsas associações entre produtos com baixo valor nutricional e comportamentos saudáveis para os indivíduos”, incentivando, dessa forma, hábitos não saudáveis, como o consumo excessivo de ultraprocessados e de bebidas alcoólicas.
“Do ponto de vista da saúde pública, é extremamente crítico”, afirmou Horta, em entrevista ao Joio. Ela cita um caso ilustrativo, da Gatorade, marca de isotônicos da PepsiCo, que no Brasil é distribuída pela Ambev. No site oficial, o produto é recomendado para “atletas amadores ou profissionais que precisam manter o ritmo durante a prática de atividades físicas de alta intensidade e duração”. Há ainda uma lista de esportes com os quais Gatorade “vai bem” (todos) e a orientação de consumir o produto antes, durante e/ou depois dos exercícios. Parece até uma bula de remédio, só que moderninha.
“Eles se apoiam muito nessa questão da hidratação, da performance, do bom físico, da saúde, mas a gente está falando de bebidas de baixíssima caloria”, diz Horta. “A gente chama de calorias vazias, porque de fato é só água e açúcar, ou, quando é uma bebida diet, água e adoçante, mais aromatizantes e corantes. Então é um produto que não agrega em nada nutricionalmente.”
Há inclusive evidências de que o consumo excessivo da bebida pode contribuir para a má saúde bucal, obesidade e outros fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis. Além disso, a marca tem um instituto que desenvolve pesquisas sobre hidratação e nutrição de atletas – típico da indústria de ultraprocessados, especialista em produzir evidências científicas embebidas em conflitos de interesses.
Além da associação à prática esportiva e à saúde, muitas marcas também se associam ao clima de festa e encontro que a Copa proporciona. Ao mundo mágico dos sonhos, desejos e esperanças que uma competição mundial mobiliza. As marcas de refrigerantes e de cervejas são especialistas nisso. Aprenderam direitinho com a indústria do tabaco. As campanhas da Coca-Cola e da Brahma para a Copa do Mundo de 2022 são exemplos que mereceriam pelo menos meia hora de papo sobre política; semiótica; apropriação cultural, de afetos, etc.
Horta defende que o ideal seria regular a publicidade de ultraprocessados e bebidas alcoólicas em eventos esportivos, mas afirma que “o caminho é bastante difícil”, porque “na verdade o evento esportivo até regride certas legislações, em países que são mais restritivos, em prol de uma uniformização” – isso aconteceu nas últimas duas edições da Copa, na Rússia e no Brasil, onde o consumo de bebidas alcoólicas no interior dos estádios não era permitido e foi liberado durante a competição. No Qatar, isso não aconteceu, mas os pontos de venda de bebidas alcoólicas no país, que são extremamente restritos, foram ampliados.
Da copa de centavos à copa de bilhões
A sensação que dá, ao revisitar essas imagens que se repetem em toda Copa, é de que sempre foi assim e sempre será. Mas, obviamente, nada é assim. Para entender como chegamos a essa Copa dominada por corporações, precisamos voltar no tempo e descobrir que por trás do casamento entre a indústria de ultraprocessados, em especial, a Coca-Cola e a Copa do Mundo, há um padrinho brasileiro: o polêmico ex-presidente da Fifa, João Havelange. História que não poderíamos deixar de contar.
O livro Uma história do futebol – copas do mundo e sociedade, do historiador e professor Airton de Freitas, conta que, até os anos 1970, a Fifa era comandada, basicamente, por ingleses e franceses – embora contasse com cada vez mais países-membros, de diferentes continentes, chegando a ultrapassar o número de filiados à Organização das Nações Unidas (ONU) durante o século.
Na época, países da África e da Ásia ficavam sempre no banco de reservas. Mas, com a recém-conquistada independência de várias nações, o futebol ganhou contornos que vão muito além do esporte e começou a se transformar em “uma forma de tentar firmar uma identidade nacional, porque esses países têm fronteiras artificiais, criadas após a Segunda Guerra Mundial, no processo de descolonização, e há divisões internas, étnicas, muito grandes”, contou Freitas, em entrevista ao Joio.
Esses países começam, então, a demandar mais atenção da Fifa e mais vagas na Copa do Mundo. A presença de Israel e da África do Sul, no período do apartheid, e a exclusão da China comunista das competições também eram pontos sensíveis à época.
O então presidente da Fifa, Sir Stanley Rous, “não conseguiu compreender ou não se importou muito ou subestimou aquela intensa efervescência política e seus reflexos no futebol. Rous, talvez ingenuamente, mas dentro do ideário democrático-liberal do pós-guerra, consentiu em dar aos novos membros nos encontros e decisões da Fifa um direito de voto idêntico ao dos mais antigos associados e potências futebolísticas. Em meados dos anos 1950, havia apenas 18 países asiáticos e cinco africanos entre os 80 filiados da Fifa; duas décadas depois, eram 39 países da África e 33 da Ásia. Ora, as nações africanas e asiáticas perceberam que poderiam, caso articuladas, defender seus interesses na entidade maior do futebol mundial”, conta Freitas, em seu livro.
Havelange soube usar os anseios desses países para conseguir se eleger, em 1974, como o primeiro presidente não europeu da Fifa – e, até hoje, um dos únicos. Em sua campanha, percorreu o mundo com um de seus principais “cabos eleitorais”, o “rei” Pelé, prometendo soluções para todos os problemas apresentados pelos países africanos e asiáticos, além do pagamento de todas as despesas das delegações, para que participassem do Congresso em que seria eleito.
“Até então, a Fifa tinha um problema sério com a organização da Copa do Mundo, porque, em geral, os prejuízos eram enormes”, conta Freitas. A receita vinha principalmente da bilheteria dos jogos e das transmissões. Mas Havelange chegou à Fifa com um plano para maximizar os lucros da entidade e colocar suas promessas em prática: “Vim vender um produto chamado futebol”, disse, quando assumiu o cargo.
Em 2006, ele declarou: “Quando eu cheguei no escritório da Fifa em Zurique, encontrei uma casa velha e 20 dólares no caixa. No dia em que fui embora, 24 anos depois, deixei propriedades e contratos no valor de mais de 4 bilhões de dólares.” Para isso, duas parcerias foram fundamentais. A primeira, com Hors Dassler, herdeiro da Adidas, remonta aos tempos de campanha para a presidência do órgão máximo do futebol. Ele foi um importante apoiador de Havelange.
Também foi quem fez o meio de campo entre a entidade e a representante da indústria de ultraprocessados que está há mais tempo na lista de patrocinadoras oficiais da Copa do Mundo: a Coca-Cola. Foi ela quem abriu as portas para que outras gigantes do setor, como McDonald’s e Ambev, abocanhassem suas cotas de patrocínio à Copa.
“Havelange chegara ao comando da Fifa prometendo mais espaço para as seleções afro-asiáticas e mais competições esportivas. Isso foi possível em grande parte com o dinheiro dessas empresas. Por exemplo, em 1977, a Fifa promoveu o primeiro campeonato mundial de juniores, realizado em Túnis. Como a entidade não possuía estrutura física e pessoal capacitada para o evento, sua realização ficou por conta dos profissionais da Adidas e da Coca-Cola”, conta Freitas, em seu livro.
O sucesso da associação entre Fifa, Adidas e Coca-Cola atraiu anúncios de outras empresas e valorizou o preço pago pelas emissoras de televisão para transmitir a competição. Anos depois, Havelange entregou boa parte das atividades comerciais da federação, a exemplo da negociação dos direitos de transmissão da Copa, à empresa ISL Marketing, criada por ninguém mais, ninguém menos, que seu fiel escudeiro de campanha e de mandato: Hors Dassler. No livro Foul! The Secret World of FIFA: Bribes, Vote-Rigging and Ticket Scandals, o jornalista Andrew Jennings aponta que o ato foi uma retribuição de um favor: a compra de votos para eleger Havelange como presidente da Fifa.
Se, nas próximas semanas, assistiremos a uma Copa dominada por grandes corporações, que nem sequer vendem produtos relacionados à prática esportiva, e ainda causam uma série de problemas à saúde individual e coletiva, é graças a esses senhores, brancos, europeus, que transformaram o futebol, nas palavras do próprio Havelange, na “maior empresa multinacional do mundo”.
Na visão de Freitas, “a Adidas e a Coca-Cola foram empresas fundamentais para que o futebol fosse o que é hoje: um grande negócio, um grande empreendimento, com uma taxa de lucratividade enorme”.