O Joio e O Trigo

Pagou, levou: a controversa venda dos nomes das estações de metrô em São Paulo e no Rio

Pandemia e redução de passageiros foram pretextos para viabilizar o negócio, mas valores fechados estão longe de compensar as perdas

O movimento que alterou nomes de estádios de futebol, teatros, cinemas e casas de shows avança sobre estações de metrô nas duas maiores cidades do país. São os chamados naming rights, quando uma empresa compra o direito de colocar o nome de sua marca em um espaço ou estabelecimento. 

A venda do direito à denominação não é uma tendência nova no mundo da publicidade. Nos equipamentos culturais, em muitos casos foi uma alternativa para garantir a sobrevivência desses espaços. Nos estádios esportivos, ajudou a monetizar os clubes de futebol e seus investimentos milionários. 

A despeito do significado simbólico dos lugares em nossa memória social e afetiva, trata-se de um negócio entre entes privados. No caso do metrô, o buraco é mais embaixo.  

A adoção desta modalidade publicitária em um meio que transporta milhões de passageiros diariamente levanta uma discussão técnico-jurídica, mas também conceitual: a quem pertence o nome das coisas e dos lugares? E eles devem estar à venda?  

No Rio de Janeiro, a Coca-Cola manteve durante quase três anos sua marca em uma das estações mais importantes do sistema, o metrô Botafogo, terminal da linha 2, como já mostramos no Joio. Um negócio controverso que resultou na abertura de dois processos e um imbróglio administrativo e jurídico entre poder público, agência reguladora dos transportes, concessionária e a empresa. 

A parceria foi levada a cabo de forma direta entre a concessionária que explora o transporte público e a Coca-Cola, sem autorização nem sequer comunicação ao poder público. E desfeita sem alarde nos primeiros dias de novembro, pouco mais de uma semana após uma falha no sistema de abertura e fechamento de portas ter causado a morte de um idoso. José Alves Simão, de 82 anos, ficou com a mão presa na porta e foi arrastado pela composição na estação Uruguaiana, no Centro do Rio. 

Em São Paulo, três estações foram rebatizadas: Saúde-Ultrafarma, Carrão-Assaí Atacadista e Penha-Lojas Besni. A próxima a mudar de nome será a estação Clínicas. Quem venceu todas as licitações até agora foi a empresa Digital Sports Multimedia (DSM), que por sua vez vende o espaço a corporações conhecidas do público. Dessa maneira, não é possível saber o valor pago por Assaí Atacadista, Ultrafarma e Lojas Besni, já que se trata de um negócio firmado entre duas empresas privadas. 

Caso as licitações tenham sucesso em São Paulo, 15 estações devem receber o nome de marcas por dez anos, renováveis por mais dez. No entanto, o governo paulista tem enfrentado dificuldades neste processo, com pouco ou nenhum interesse na aquisição dos naming rights e ofertas muito baixas. Na mais recente rodada de licitação (da estação Praça da Árvore) novamente apenas a DSM manifestou interesse, com uma oferta de R$ 40 mil mensais recusada pela companhia paulista. 

Mesmo com os impasses na venda da denominação parcial dos nomes das estações de metrô, a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos estuda fazer o mesmo no sistema ferroviário de São Paulo. 

A queda brusca do número de passageiros durante a pandemia e o impacto nas contas dos sistemas metroviários foram a oportunidade para levar o negócio a cabo. Nas duas cidades, o fluxo de usuários do metrô caiu pela metade em 2020 e seguiu ainda baixo em 2021. Embora longe do patamar pré-pandemia, os números deste ano indicam uma recuperação lenta. 

A alegação em torno da necessidade de arrecadação, porém, resvala nos valores pagos até aqui. A Digital Sports Multimedia desembolsa R$ 468 mil mensais pelas quatro estações, o que equivale a apenas 3% do faturamento com receitas não tarifárias do metrô paulista. 

No Rio, o negócio firmado com a Coca-Cola representa cerca de 6% das chamadas receitas acessórias. 


Embora os dois sistemas metroviários tenham modelos diferentes de concessão dos serviços, em ambos é permitida a exploração de outras receitas, como já acontece com o aluguel de espaços comerciais nas estações, a publicidade nos vagões e plataformas, ações especiais de marketing, entre outros exemplos. 

No caso paulista, o metrô é operado pela Companhia do Metropolitano de São Paulo, sociedade de economia mista, em que o Estado detém a maior parte do controle acionário. No Rio de Janeiro, desde o final dos anos 90 a iniciativa privada administra, mantém e opera as linhas 1 e 2 (até 2038), e a linha 4 (até 2036). 

Porém, a venda dos naming rights coloca a discussão em outro lugar. Um dos vários aspectos contraditórios em torno do tema é o fato de que as estações e seus nomes são um patrimônio público, portanto, em tese não poderiam estar à venda. 

“A ideia de que o nome de uma estação possa estar à venda é muito problemática”, critica o arquiteto Renato Cymbalista, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “Entendo que alguns pontos por onde passam milhões de pessoas podem ser valiosos comercialmente e que o metrô alugue esses pontos porque é um recurso que vai para a operação. Isso é uma coisa, mas vender o nome de uma estação é diferente. É muito diferente de um teatro construído com recurso privado. Porque esse teatro não foi publicamente concluído, só que esta estação foi publicamente construída.”

A venda dos naming rights envolve citações à marca nos áudios dos trens, em todo o enxoval das estações, no mapa da rede, nos sites e redes sociais dos sistemas, totens de acesso e testeiras  

Em todo o mundo, a discussão sobre financiamento dos sistemas metroviários e dos meios de transporte em geral é complexa e envolve o planejamento urbanístico das cidades. No caso brasileiro, há algumas disparidades, como o fato de que a maior parte das receitas vem da tarifa, ou seja, do passageiro, numa equação que nunca fecha, nem para as concessionárias, nem para o poder público. 

Em grandes cidades com sistemas de transporte construídos mais recentemente, o metrô atua também como uma espécie de incorporador imobiliário, comprando terrenos no entorno das estações e fazendo a exploração comercial desses espaços: o lucro obtido é revertido para a operação e a manutenção do transporte. 

Um negócio escuso 

No Rio, o negócio foi feito no apagar das luzes, mesmo sem que houvesse previsão legal no contrato de concessão junto ao poder público. O nome da Coca-Cola já estampava a estação de Botafogo nos primeiros dias de 2020, antes mesmo de a Secretaria Estadual de Transportes e a Agetransp, a agência reguladora dos transportes públicos no estado, terem sido sequer comunicadas, muito menos consultadas sobre a regularidade desta operação. 

A concessionária Metrô Rio levou um ano para informar formalmente a venda ao poder público estadual. Apenas após a notificação formal, foi possível saber o valor do negócio: a gigante dos refrigerantes pagou R$ 9,6 milhões para estampar sua mais famosa marca na estação Botafogo até dezembro de 2023. Isso dá cerca de R$ 266 mil mensais, dos quais metade fica com a concessionária e a outra metade vai para o sistema metroviário. 

Não houve consulta nem aos usuários do metrô, nem à comunidade de Botafogo. “Um belo dia apareceu essa história. Ninguém foi consultado. Nem a gente, nem a secretaria, nem a Agetransp”, critica o engenheiro Licinio Machado Rogério, morador do bairro e diretor da Associação de Moradores de Botafogo. “Ninguém aqui gostou”, acrescentou Licínio, que também integra o Fórum de Mobilidade Urbana, criado há 11 anos para discutir os problemas relacionados ao transporte público no Estado do Rio de Janeiro. 

Planos da Coca para o metrô, e o que de fato foi feito. Créditos: PGE/RJ e Mariana Costa

A Estação Botafogo era um desejo antigo da Coca-Cola, que tem sua sede no mesmo bairro. Em 2013, o então governador Sérgio Cabral vetou a proposta. O cenário de instabilidade política e administrativa, e a crise econômica no estado criaram as condições ideais para o negócio se concretizar, ainda na brevíssima gestão do então bolsonarista Wilson Witzel, eleito em 2018 e afastado menos de dois anos depois em meio a denúncias de corrupção e a um processo de impeachment.  

“A concessionária demorou quase um ano para informar ao Poder Concedente e a seus órgãos responsáveis pela fiscalização e acompanhamento do equilíbrio econômico-financeiro a existência de um contrato vultoso. Baseou-se na pandemia vivenciada e a consequente queda de receitas para justificar a celebração da parceria. Todavia, o acordo fora firmado em fevereiro de 2020, momento em que o Rio de Janeiro, sem que fosse possível prever os momentos difíceis que se avizinhavam, ainda celebrava o Carnaval”, observou o procurador Alexandre Santos de Aragão, em parecer da Procuradoria Geral do Estado (PGE). 

O documento determinou que a concessionária Metrô Rio informasse as receitas do contrato e que “o bem público retorne ao seu status quo ante”, ou seja, que o nome da marca fosse retirado da estação até a conclusão dos dois processos administrativos. Os valores foram informados, mas o nome da Coca-Cola foi mantido até a parceria ser desfeita, em novembro deste ano.   

Em agosto, a Secretaria Estadual de Transportes pediu a convalidação do contrato.  “Convalidar é ver se, mesmo com os erros, seria mais prejudicial renovar o contrato ou não. Mas isso deve obedecer vários princípios da administração pública – como conveniência e oportunidade, e aqui defendemos que o contrato não pode ser convalidado. Sequer há lei que discipline naming rights para logradouros públicos, dentre outros pontos”, explica a advogada Ladyane Souza, da ACT Promoção da Saúde – uma das financiadoras de O Joio e O Trigo. A organização atua no processo como amicus curiae, instrumento que garante a participação de entidades da sociedade civil em processos judiciais de questões relevantes e de grande impacto. 

O caso está em análise na Agetransp. A agência informou que “o processo regulatório foi aberto, mas como a relatora (conselheira Aline Almeida) teve o mandato encerrado, o mesmo foi redistribuído para um novo conselheiro e está em fase de instrução”.

Onda privatista 

Em São Paulo, também não houve consulta à população e aos passageiros do metrô. A venda dos nomes das estações passou a fazer parte de um amplo pacote de concessões idealizado pelo ex-governador João Doria quando ainda era prefeito da capital, e que seguiu adiante, com facilidade, na gestão de Bruno Covas e de Ricardo Nunes.

O projeto foi apresentado à Comissão de Proteção à Paisagem Urbana, vinculada à Secretaria Municipal de Urbanismo e responsável por fiscalizar o cumprimento da Lei Cidade Limpa, que limitou e criou regras para os anúncios na paisagem urbana no âmbito do município. 

A comissão considerou que a lei é omissa em relação aos naming rights e a discussão girou em torno de especificidades técnicas, como tamanho de placas, fonte, logo e etc. 

O mérito da mudança não foi discutido e, por sete votos a favor e três abstenções, o projeto foi aprovado na Comissão. Abstiveram-se de votar os representantes da Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente, do IAB-SP (Instituto de Arquitetos do Brasil) e da Associação Viva Pacaembu, estes últimos representantes da sociedade civil. 

Repercussão nas redes sociais. Créditos: Reprodução

“Os nomes nas nossas cidades refletem condições históricas e memórias. Não é por acaso, são consensos sociais em torno de algum significado. O que não significa que esses nomes sejam sempre bons, há aqueles que podem evocar memórias muito ruins e traumáticas, como as ruas que homenageiam figuras ligadas à ditadura militar. Mas ele é resultado de muita atribuição de significado histórico. Os nomes dos lugares não são caixas vazias à espera de significados. São muito mais do que isso”, explica o professor Renato Cymbalista.

Outro lado

Procuramos o Metrô de São Paulo para saber se houve alguma consulta aos usuários e como têm sido recebidas as críticas dos passageiros, mas não tivemos retorno. Não localizamos a empresa DSM.    

No Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Transportes informou por meio de nota que “até o presente momento não foi comunicada sobre a retirada do nome da Coca-Cola da estação do MetrôRio”. 

A Agetransp também desconhece o término do contrato  Em nota, a agência afirma ainda que “não recebeu nenhuma informação da concessionária Metrô Rio sobre o encerramento do contrato de ‘naming rights’ com a empresa Coca-Cola”. 

Em um comunicado conjunto com a concessionária Metrô Rio, a Coca-Cola informou a princípio que o projeto de parceria foi encerrado “após o cumprimento do período de vigência do contrato que concedia o direito de uso da marca na estação Botafogo”. 

No entanto, o contrato firmado entre as duas empresas, ao qual o Joio teve acesso, vigorava até dezembro de 2023. 

Em uma segunda nota, o discurso mudou. “As companhias esclarecem que somente à concessão de direito de uso da marca na estação Botafogo será encerrada em 31/12/2022 e que parcerias de outras naturezas permanecem ativas. Sobre contratos e/ou respectivas negociações, as empresas destacam que não comentam devido às políticas de compliance e confidencialidade.” 

Nem a Coca-Cola, nem a concessionária Metrô Rio informaram quais são as parcerias de outras naturezas que permanecem ativas. 

Por Mariana Costa

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