Para Serere, indígenas críticos ao agronegócio ‘são vagabundos’. Em entrevista ao Joio, ele defende parcerias com fazendeiros como fase de transição para que Xavante sejam bilionários, banqueiros e donos de multinacionais
Foi dentro da cela do presídio, deitado, que José Acácio Serere Xavante teria recebido uma luz: um chamado para se tornar evangélico. “Assim que eu sair daqui da cadeia, eu vou ser teu servo. Eu vou. Eu vou ser teu filho. Eu vou trabalhar para o Senhor. Eu nunca vou pecar. Eu nunca vou fazer coisa errada. Mas o Senhor entra aqui e se manifesta.”
Isso foi em 2007. Serere havia sido condenado por tráfico de drogas, num momento em que também aliciava garotas Xavante para prostituição, em cidades do Mato Grosso.
Quinze anos se passaram, e a causa de Serere mudou. Ele foi preso novamente na segunda-feira (12), desta vez pela Polícia Federal, sob ordens do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, por incitação à violência. Na visão de Moraes, o fato de Serere convocar a atos violentos constitui um risco claro. Após a prisão, bolsonaristas promoveram uma série de atos de vandalismo em vias públicas da capital federal, no mesmo dia em que Lula foi diplomado pelo Tribunal Superior Eleitoral como vencedor legítimo do pleito de outubro.
Nas últimas semanas, ele vinha desfilando em redes sociais, em cidades de Mato Grosso e em Brasília, na companhia de outras lideranças indígenas bolsonaristas – todos têm uma característica em comum: são apoiadores ou integrantes de projetos de agronegócio dentro de terras indígenas.
Desde que deixou a cadeia pela primeira vez, Serere, hoje com 42 anos, se dedicou a trazer para a religião outros Xavante. Especialmente os moradores da Terra Indígena Parabubure. “Já batizei 40 crianças”, garante. Até que vieram as eleições presidenciais. Bolsonarista convicto, Serere se somou a centenas de pessoas que decidiram contestar a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva e a participar de atos golpistas.
Logo após o resultado das urnas, Serere enviou pelo WhatsApp um vídeo no qual se dirigia a seus apoiadores. Tendo ao fundo uma bandeira do Brasil e uma foto de Bolsonaro, ele diz que deus concedeu a eles a obrigação de lutar. “Lula não foi eleito. O ministro Alexandre de Moraes roubou os votos de Bolsonaro para Lula (…) Então, não podemos admitir que essa corrupção reina no Brasil. O ministro Alexandre de Moraes tem que ser preso pelo Exército brasileiro. Ele não está acima da Constituição Federal. Ele está sendo bandido.”
Serere aceitou nos receber numa noite fria de junho em uma praça pública de Campinápolis, em Mato Grosso – o município foi criado dentro de uma antiga terra indígena Xavante, onde a presença dessa etnia é marcante. Ele chegou a ser eleito suplente de vereador em 2004 na vizinha Nova Xavantina e candidatou-se a prefeito pelo Patriota, em Campinápolis, em 2020, quando obteve 689 votos, contra quase 4.000 do eleito Zé Bueno.
Serere chegou usando uma camiseta vermelha, shorts preto e os batoques auriculares que caracterizam os Xavante. Desconfiado, antes de iniciar a conversa, ele quis saber qual era a nossa “tendência”: se éramos ou não bolsonaristas. Explicamos que somos jornalistas e estávamos ali para escutar o que ele tinha a dizer. Ele se irritou e insistiu que precisávamos contar qual era a nossa tendência. Diante da nossa recusa, ele ainda tentou mais duas vezes, até que cedeu e começou a contar sua história.
A tensão foi se dissipando ao longo de uma hora e meia de conversa. Nos meses seguintes, pensamos no significado daquela entrevista. Não publicamos nenhuma reportagem a respeito porque todas as ideias evocadas por ele nos pareciam difusas demais. Até que Serere ganhou as manchetes nacionais como pivô das manifestações terroristas realizadas em Brasília.
Indígenas bilionários
Na conversa conosco, Serere externou a visão de mundo que o move. “O que os brancos fizeram para o nosso povo, para nossas mulheres, para nossas crianças? Mataram. As índias foram estupradas, os nossos ancestrais foram escravizados, foram mortos. Somos remanescentes. E para o ser humano indígena crescer ele tem que ter investimento, tecnologia. Pode entrar através do desenvolvimento.”
A entrevista com o indígena foi agendada devido à informação de que ele era um dos agentes responsáveis por desmatar uma área em Parabubure para o plantio de soja e milho. A derrubada foi uma iniciativa da prefeitura e se deu à revelia de outras lideranças indígenas, contrárias à iniciativa. O secretário de Assuntos Indígenas de Campinápolis, Epaminondas Conceição, confirmou ter desmatado 170 hectares – após a publicação da reportagem do Joio, ele foi exonerado do cargo.
Serere, de fato, buscou convencer lideranças de Parabubure a seguir o caminho dos parentes de outra terra Xavante, Sangradouro, também em Mato Grosso, onde 1.500 hectares foram desmatados para produzir soja e milho em um sistema de arrendamento por fazendeiros locais – o arrendamento de terras indígenas viola a Constituição.
“O branco muitas vezes pensa que o índio tem que ser pobre, que ele pode estar só cuidando da natureza. Ele pode só cantar, dançar, fazer ritual. E ele não pode ser milionário”, disse Serere. “O índio não pode ser agricultor. O índio não pode ser fazendeiro. O índio não pode ser capitalista. O índio tem que ser índio como é, mas como se fosse um, não um ser humano, desvalorizando a sua intelectualidade, o seu crescimento de capacidade humana. O índio não pode criar bomba atômica. O índio não pode construir, criar uma máquina. Que maravilhoso! Tá vendo? Maravilhoso!”, diz ele, empolgado.
Durante a entrevista, Serere ficou irritado com dois indígenas que estavam na praça e que nos pediram dinheiro. “Hoje, a maioria dos indígenas não quer a lavoura. Sabe por quê? Porque eles são preguiçosos. Isso é real. Porque os índios são vagabundos. O índio é uma pessoa que quer só viver dependendo dos outros. Chega”, lamentou. “Nós somos responsáveis por sermos miseráveis. Tem índio que passa fome na aldeia, tem as crianças indígenas morrendo, de desnutrição e falta de comida”, disse.
Para ele, o dinheiro é a condição para que os indígenas possam disputar a hegemonia dos brancos, e isso se daria pela via eleitoral, com a assunção de deputados, senadores, governadores e até mesmo um presidente da República ligado aos povos originários.
Na entrevista, o indígena afirmou ser “uma pessoa que defende o governo Bolsonaro. Eu sou Bolsonaro”, disse. Perguntamos o que ele achava sobre a declaração do presidente, de que não ia demarcar terra indígena durante seu governo. “No momento, a gente não tem autonomia, não tem poder. O que nós temos é poder através dessa lavoura, através desse minério”, disse o pastor, que também é favorável a projetos de mineração em terras indígenas.
– Você sente medo de que talvez os produtores rurais quisessem expandir demais a área de cultivo dentro da terra indígena, ganhando espaço ali dentro? – perguntamos.
– É uma bênção, é uma bênção. Do mesmo jeito, se ele expandir ou não, e nós vamos decidir também futuramente, de acordo com o planejamento de Agro Xavante, nós vamos expandir, vamos crescer, nós vamos aumentar. É o investimento. Isso é bom.
A parceria com não indígenas para explorar as terras indígenas, seja na forma de mineração, seja pela via da agricultura, é temporária, acredita Serere: tudo passa pela transferência de tecnologia para que os indígenas assumam o controle não apenas de suas áreas. “E por que não pode ter o banco indígena na aldeia e não pode ter uma empresa de grande porte dentro das áreas indígenas?”, indagou.
Hoje, segundo ele, o agro pode ser um parceiro dos povos indígenas. Mas no futuro, garante, “vai ter conflito com o agronegócio não indígena. Se a gente tiver um poder na mão, quando tiver um indígena, um banco indígena na aldeia”, explica. Porém, “no momento, nós não podemos desafiar. Não temos autonomia nem poder. Não tem um representante. Já viu algum índio milionário, bilionário? Já viu? Não tem. Quem manda é o capitalista. Eu sou capitalista. Eu penso em capitalismo. Eu penso em dinheiro para que o índio venha a ter essa dignidade e essa condição”, explicou.