Streamer Casimiro, que faz sucesso com o público infanto-juvenil, leva propaganda de Coca-Cola, McDonald’s e até de cerveja a milhões de pessoas em transmissões dos jogos.
“A transmissão do casimiro tá me deixando diariamente com vontade de comer mc donalds e eu nem gosto de mc donalds” (sic) – foi o que disse, no Twitter, uma das milhões de pessoas que acompanharam a Copa do Mundo pelas lives do streamer Casimiro Miguel. A #CopaNoCazé tem o patrocínio de Coca-Cola, McDonald’s, Ifood, Brahma, Unilever, Nubank, Vivo e a plataforma de apostas online EstrelaBet. Durante as cerca de 12 horas diárias de transmissão, há ações publicitárias com forte apelo ao consumo de fast-food, produtos ultraprocessados e bebidas alcoólicas.
O buraco fica ainda mais fundo quando levamos em conta que, de acordo com o streamer, parte significativa de sua audiência é composta por crianças e adolescentes, público especialmente vulnerável à publicidade e aos riscos do consumo desses produtos. Também no Twitter, outro espectador do streamer responde uma publicação da Brahma, com uma foto de um copo de cerveja personalizado: “Tenho 13 anos posso tomar Brahma?” (sic). Não, não pode. É aí que mora o problema da publicidade, especialmente direcionada a crianças, em um ambiente cuja regulação é turva e a fiscalização é quase nula.
A pesquisadora do Centro de Estudos em Consumo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead/UFRJ), Thaysa Nascimento, explica que, ao contrário das gerações que nasceram no mundo analógico – a minha, a de Cazé e talvez a sua também –, a geração Z, hoje, vive uma relação muito mais próxima entre fã e ídolo, o que a torna mais suscetível aos estímulos de consumo recebidos. “E mais do que isso, é uma geração que tem muita identificação com essas figuras, então começa a projetar a sua identidade nessas figuras. [A lógica é] ‘O Cazé é legal, então eu quero ser que nem o Cazé. E aí começam a passar por todas as ações que eles precisam ter para ser igual ao Cazé, e a comida vai entrar nisso”, completa.
Até porque a comida é elemento central do universo Casimiro, talvez tanto quanto o futebol. No canal @CortesdoCasimitoOFICIAL no YouTube, a playlist de reacts a vídeos de comidas tem 433 vídeos. Há ainda outras playlists, reagindo a lanches preparados por mães youtubers para seus filhos e aos programas de televisão MasterChef, Ilha do Sabor, Larica Total e Bake Off Brasil.
Cazé nunca escondeu seus hábitos alimentares, que ele mesmo caracterizou como “péssimos” em uma entrevista concedida ao jornalista André Henning. Em mais de uma vez o streamer defendeu, sem receber nada em troca, um toddynho, kapo de uva ou até uma coquinha nas lancheiras que comentava. Um prato cheio para a indústria de ultraprocessados, que soube aproveitar muito bem essa figura tão “gente como a gente” – e com uma sólida comunidade na internet. “Eu tenho consciência de que eu lido com pessoas que me tem como exemplo e que precisam, às vezes, não de mim, mas de alguém. Alguém para ensinar uma parada, alguém para compartilhar uma parada. Nem que seja compartilhar uma noite em silêncio”, contou o streamer, na entrevista a Henning. Um baita vínculo, que coloca sua responsabilidade com o conteúdo divulgado em seus canais ainda mais em evidência.
“É uma geração que tem muita identificação com essas figuras, então começa a projetar a sua identidade nessas figuras. [A lógica é] ‘O Cazé é legal, então eu quero ser que nem o Cazé. E aí começam a passar por todas as ações que eles precisam ter para ser igual ao Cazé, e a comida vai entrar nisso.”
Durante as lives há intervalos com comerciais curtos de todas essas marcas, exceto a Brahma. Algo bem semelhante ao que se vê nas tradicionais transmissões pela televisão. O que chama a atenção, no entanto, são as ações de marketing mais elaboradas, que envolvem o streamer e sua equipe. Vejamos um exemplo, do dia em que a seleção brasileira estreou na Copa.
Após o término do jogo, o narrador Luis Felipe Freitas chama o intervalo, que dura cerca de 5 minutos. Na volta, ele e Casimiro vão comentar a partida junto com o ex-jogador Juninho Pernambucano, que fez história no Vasco, time do coração de Cazé, e jogou na seleção brasileira na Copa de 2006. Mas antes, pausa para a publi.
E não é qualquer publi. São mais de dez minutos de imagens exibindo embalagens do Ifood, McDonald’s e Coca-Cola, com direito a cupons de desconto, declaração de amor de Casimiro à rede de fast food e a participação do entregador Thiago Köller.
“Ele [Casimiro] vai mostrando todas as facetas do que é o Ifood ali naqueles minutos: eu entrego rápido, entrego perfeito, entrego tudo quentinho, entrego aquilo que você quer comer”, analisa a pesquisadora Thaysa Nascimento. O streamer faz isso de forma leve, descontraída e por vezes cômica. Integrada ao universo do seu conteúdo. O jeito Cazé de ser e fazer. Que é justamente o que faz seu público – e a indústria – gostar tanto dele.
Durante a live, há espectadores que questionam se Köller é mesmo entregador do Ifood, outros que exaltam a humildade de Casimiro, e outros que criticam o fato da única pessoa negra em cena ser justamente o entregador. Há quem reconheça o marketing de milhões e quem acredite que tudo aquilo ali foi totalmente espontâneo. Confusão que é legítima, porque não há nenhuma identificação expressa de que se trata de uma ação publicitária.
Pode isso, Arnaldo?
O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) apresenta, em um Guia, orientações para a aplicação das regras do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária ao conteúdo comercial em redes sociais. O documento é categórico ao afirmar que tais conteúdos devem ser claramente identificados como publicitários, respeitando o princípio da transparência que o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor preconiza. Inclusive indica quais termos são adequados (por exemplo #publi e #publipost) e quais são inadequados (#ad e #colab).
Para o Conar, a divulgação de sites, ofertas e cupons de descontos não são suficientes para explicitar a relação comercial estabelecida entre o influenciador e o anunciante.
No caso das transmissões ao vivo, o texto orienta que a identificação do conteúdo publicitário deve ser feita em texto e/ou áudio, periodicamente repetido, “de forma que fique suficientemente claro à audiência integral ou esporádica que existe conexão relevante entre o influenciador, o anunciante e a agência [de marketing, publicidade, assessoria, etc]”. Isso não acontece durante a live do Cazé. Também não há, na descrição do vídeo, nenhum texto ou hashtag identificando a publicidade.
A ausência desses elementos é recorrente em outras lives da #CopaNoCazé. Assistimos às transmissões da abertura da competição e de todos os jogos do Brasil no canal do streamer, além de outros jogos da fase de grupos e cortes publicados pelo canal e por fãs. Encontramos o mesmo problema em todos os vídeos. Algo que não é exclusividade de suas lives. No Joio, já denunciamos outros casos envolvendo grandes nomes do sertanejo brasileiro em transmissões patrocinadas pela Ambev durante a pandemia.
As orientações do Conar, no entanto, não têm força de lei. São apenas sugestões. Por meio de sua assessoria de imprensa, a entidade informou que não é e nunca foi do interesse do Conar ter essa garantia legal, porque em sua ótica a autorregulação deve se bastar, sem a intervenção do poder público.
Para a pesquisadora Thaysa Nascimento, a falta de uma legislação específica é um problema para o mercado de influenciadores digitais. “Eu diria que hoje é um dos principais problemas, porque todo mundo fica meio perdido no que pode e no que não pode fazer. Por exemplo: publicidade com criança, pode ou não pode? A mesma regra da publicidade tradicional se aplica ao meio digital? Não tem uma norma sobre isso”.
Não é que a publicidade seja “terra de ninguém” no país. Há normas que tratam do assunto. Por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor, que proíbe e tipifica a publicidade abusiva ou enganosa, capazes de “induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde”, estabelecendo penalizações para quem infringir a regra. O Conar ainda estabelece a obrigatoriedade de inserir nas propagandas de cerveja advertências como “beba com moderação” ou “venda e consumo proibidos para menores” – o que também não acontece nas entradas ao vivo direto da Arena Brahma na live do Cazé.
No entanto, essas normas foram escritas no século passado e não falam explicitamente sobre o ambiente digital, o que fragiliza a possibilidade de reivindicar sua aplicação neste meio. Além disso, há o problema da fiscalização. O volume de conteúdo publicitário produzido e veiculado por influenciadores nas redes sociais é enorme. As próprias plataformas deixam passar uma série de conteúdos que infringem suas regras. E o Conar, que também tem esse papel fiscalizador, é um órgão criado pelo setor de publicidade para, como o nome já diz, se autorregulamentar. Uma das organizações que compõe o Conselho Superior do Conar é a Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), da qual fazem parte a Coca-Cola, Ambev, McDonald’s e Unilever, além de outras corporações do mesmo setor, como a BRF, Bünge, Danone, Mondelez e Nestlé.
Há bastante literatura científica expondo a ineficácia dessa autorregulação. Em geral, falta transparência e participação da sociedade civil nos compromissos firmados pelo setor privado; e as punições, quando definidas, são brandas.
Estudo mapeia impacto da publicidade de ultraprocessados em lives. Seis categorias de produtos foram consumidas pela maioria dos entrevistados pelo menos uma vez enquanto assistiam à Twitch. Os mais citados foram salgadinhos (88%), outras bebidas (83%) e fast food (78%).
Há evidências sólidas apontando que o marketing digital de bebidas alcoólicas, direcionado a jovens que têm entre 12 e 30 anos, aumenta não só o desejo, mas o consumo real de álcool. No entanto, medir o impacto da publicidade de ultraprocessados na internet, especialmente nas crianças e adolescentes, ainda é um desafio. Há lacunas significativas na produção científica sobre o assunto. Até porque é um fenômeno muito recente. Mas um estudo publicado no ano passado, no Journal of Nutritional Science, entrevistou mais de 600 usuários da Twitch – plataforma de transmissões ao vivo da Amazon – para identificar suas percepções e comportamentos diante do marketing de alimentos em lives. Quando perguntados sobre marcas específicas, oito das dez principais marcas relatadas eram de fast food ou entrega de comida. Seis das oito categorias de produtos foram consumidas pela maioria dos entrevistados pelo menos uma vez enquanto assistiam à Twitch. Os mais citados foram salgadinhos (88%), outras bebidas (83%) e fast food (78%).
Cerca de 14% dos entrevistados lembrou-se de desejar um produto após vê-lo anunciado na live e 8% relatou ter comprado de fato o produto. O percentual pode parecer pequeno, mas na época que o estudo foi realizado a Twitch tinha uma média de 17,5 milhões de visitantes diários. Hoje, já são mais de 30 milhões.
“Eles precisam atrair novos consumidores, justamente para rejuvenescer a marca e continuar atuante no mercado. E aí eu me associo com uma figura legal, que faz muito sucesso com essa geração, para atrair esses novos consumidores.”
Além disso, Nascimento lembra que a publicidade com influenciadores não tem o objetivo exclusivo de vender os produtos da marca no momento em que a ação acontece. Atrair novos seguidores, que podem se tornar futuros consumidores, também está na lista de metas das corporações. Assim como a reformulação ou reforço da imagem que a marca quer passar.
Por exemplo, o McDonald’s já é uma corporação sexagenária, mas mantém uma pinta de jovem descolada. “Eles precisam atrair novos consumidores, justamente para rejuvenescer a marca e continuar atuante no mercado. E aí eu me associo com uma figura legal, que faz muito sucesso com essa geração, para atrair esses novos consumidores”, avalia Nascimento. Ainda que a compra não seja consumada, o desejo foi instalado. Ponto para a indústria.
A reportagem tentou contactar a LiveMode, empresa que produz a #CopaNoCazé e faz a assessoria do streamer, mas não obteve retorno. Já o Conar, atendeu à reportagem, mas não quis comentar o caso.