Estudo realizado no Reino Unido envolveu quase 200 mil participantes e é o primeiro a avaliar incidência e morte por diversos tipos da doença, inclusive raros
O consumo de alimentos ultraprocessados contribui, e muito, para aumentar o risco de incidência e morte por diversos tipos de câncer – inclusive alguns mais raros, como o de ovário. A conclusão é de um estudo obtido com exclusividade pelo Joio que acaba de sair na revista eClinicalMedicine, e adiciona mais evidências ao que pesquisadores de diferentes áreas vêm falando há anos.
Liderado por Kiara Chang, pesquisadora de políticas de saúde pública no Imperial College de Londres, o estudo avaliou o aumento de incidência e mortes causadas por 34 tipos de câncer em pessoas com idade entre 40 e 69 anos.
Para isso, a equipe de pesquisadores recolheu entre 2009 e 2012 dados alimentares de 197.426 pessoas registradas no UK Biobank – uma base de dados biomédicos que abrange meio milhão de britânicos – e as acompanhou até janeiro de 2021.
Um dos cuidados que a equipe teve, conta Chang, foi não incluir pessoas que tivessem princípio de câncer. Todos os participantes não tinham a doença quando entraram no estudo. “Ao final do período, quase 16 mil destas pessoas desenvolveram algum tipo de câncer e outras quatro mil morreram pela doença,” conta a pesquisadora.
Cada aumento de 10% no consumo de ultraprocessados aumentou o risco de câncer em geral em 2%, e as chances de mulheres desenvolverem câncer de ovário aumentou em 19%.
Este pequeno incremento no consumo também aumentou as chances de morte pela doença de forma geral (6%), por câncer de mama (16%), e por câncer de ovário (30%).
Segundo a coautora Renata Levy, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens) e da Faculdade de Medicina da USP, os resultados não são exatamente surpreendentes. “É um resultado denso, mas esperado. Isso, em função das condições associadas ao câncer que esses alimentos provocam – como diabetes, hipertensão e obesidade –, ou pelo desbalanço nutricional que produtos ricos em gordura e pobres em proteínas trazem,” conta ela.
Também há o efeito de outros componentes como aditivos, corantes artificiais e emulsificantes. “Eles têm sido associados a alterações na microbiota intestinal e podem ser um dos mecanismos que, por via do acúmulo prolongado e crônico, podem desencadear a doença.”
Apesar de o resultado estar dentro do esperado, tanto Levy quanto Chang se disseram surpresas com o aumento no risco de desenvolvimento de câncer de cérebro e de ovário, que são tipos relativamente mais raros da doença. “Conseguimos observar isso por causa do grande número de pessoas envolvidas no estudo,” diz Chang. “Agora precisamos esperar para ver se estudos posteriores confirmam essa tendência que detectamos,” afirma, por sua vez, Levy.
A pesquisa é a primeira a fazer uma ligação direta entre diversos tipos específicos de câncer e o consumo de ultraprocessados. Apenas duas pesquisas anteriores – uma na França e outra nos Estados Unidos – analisaram a relação entre má alimentação e incidência de cânceres mais comuns, como de mama, próstata e colorretal, com resultados que vão ao encontro dos achados no estudo realizado no Reino Unido.
Consumo vem aumentando no Brasil
Segundo especialistas ouvidos pelo Joio, a pesquisa é importante porque o consumo de ultraprocessados vem aumentando no Brasil.
De acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, entre 2002 e 2003 a participação de ultraprocessados na mesa do brasileiro era de 12,6% – no entanto, entre 2017 e 2018 o consumo saltou para 19,7%.
A distribuição desse consumo, ainda de acordo com o IBGE, varia conforme a idade: entre adolescentes até 18 anos, os ultraprocessados ocupam 26,7% da dieta. Já entre adultos até 59 anos, o consumo é de 19,5%; e entre maiores de 60 anos, é 15,1%.
Salgadinhos, biscoitos, macarrão instantâneo, comidas congeladas, salsichas, refrigerantes e iogurtes são alguns exemplos de alimentos ultraprocessados. Segundo uma pesquisa recente, o Brasil perde mais vidas por conta do consumo de ultraprocessados – 57 mil por ano – do que para os homicídios, que mataram 45,5 mil brasileiros em 2019.
Para Larissa Brussa, doutora em genética, o estudo traz evidências bastante robustas sobre a relação entre câncer e consumo de ultraprocessados graças ao grande número de envolvidos – “e por conta do nível de detalhe com que olham para os diferentes tipos de câncer, algo difícil de fazer neste tipo de análise.” Ela diz que, apesar de as condições ambientais e fatores genéticos serem diferentes no Reino Unido e no Brasil, é muito provável que os resultados se apliquem por aqui e em outros países.
Renata Levy explica que, assim como nas pesquisas que relacionam o fumo ao câncer de pulmão, os resultados que encontraram são válidos para múltiplos cenários e países. “Isso porque ajustamos as condições para diversos fatores, dentre eles o consumo de álcool, histórico de câncer na família, índice de massa corporal, obesidade – para termos certeza de que estávamos olhando para as causas diretas do câncer. Fizemos estes ajustes para ter certeza de que não estávamos sendo confundidas por outras condições ou doenças.”
O estudo mostrou ainda que quase metade das calorias dos participantes (48,6%) vinha de alimentos ultraprocessados. “A porcentagem é alta, mas ainda assim é um pouco menor que a média do consumo do britânico, de 54%” diz Chang.
A título de comparação, segundo o IBGE, mais da metade das calorias consumidas pelos brasileiros (53,4%) vem de alimentos in natura ou minimamente processados. Mas isso não é motivo para relaxar, diz Ana Paula Natividade, médica e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Com o avanço da fome, que atinge 33 milhões de brasileiros, e da insegurança alimentar, que atinge outros 92 milhões, o contingente de pessoas vulneráveis ao consumo de ultraprocessados é imenso. “O desafio é acabar com a fome e ao mesmo tempo garantir que as pessoas tenham uma alimentação minimamente saudável,” avalia ela.
Uma doença cara, mas evitável
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que o câncer é uma das principais causas de mortalidade no mundo. Apenas em 2020, praticamente uma em cada seis mortes foi causada pela doença, que ceifou quase 10 milhões de vidas naquele ano.
No Brasil, mais de 230 mil pessoas morrem de câncer e cerca de 450 mil novos casos são diagnosticados anualmente, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca). Entre os brasileiros, a doença é a segunda maior causa de mortalidade.
Se, por um lado, o câncer traz um grande custo emocional e financeiro para pacientes e suas famílias, por outro, traz também um grande custo para a saúde pública.
De acordo com o Inca, os gastos com pacientes com mais de 30 anos com algum tipo de câncer atribuído à alimentação, nutrição e atividade física vai aumentar muito nos próximos anos. Em 2018, o SUS despendeu R$ 338 milhões para estes casos. Em 2030, a estimativa é que sejam gastos R$ 828 milhões – 145% a mais.
A maior previsão de aumento nos gastos deve ser com cânceres provocados pelo consumo de carne processada – como bacon, salame, presunto e linguiça –, principalmente o colorretal. Em 2018, foram gastos R$ 28 milhões com casos atribuídos a esse consumo, e em 2030 isso pode aumentar para R$176 milhões – um salto de 529%.
O aumento tem motivo: segundo dados do IBGE, o consumo desse tipo de alimento praticamente dobrou entre 2008-09 e 2017-18, passando da casa dos 30% para cerca de 60% entre homens e mulheres maiores de 20 anos no Brasil.
Se cada brasileiro consumir menos de 50 gramas por dia de carnes ultraprocessadas, a economia para o sistema de saúde pode chegar a quase R$170 milhões até 2040.
Para a coautora Fernanda Rauber, também pesquisadora das escolas de Saúde Pública e de Medicina da USP, uma política pública para controle do consumo de ultraprocessados é fundamental. No Reino Unido, a regulação é muito deficitária, mas por aqui ela acredita que as políticas alimentares são avançadas. “O Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, norteou várias ações e políticas públicas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar e as novas regras de rotulagem nutricional. Precisamos avançar em outras medidas, mas temos esta grande diferença em relação ao Reino Unido.”
Consumir menos ultraprocessados alivia a saúde pública e poupa vidas. Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, 40% dos casos de câncer poderiam ser evitados pela redução dos principais fatores de risco – dentre eles o consumo de ultraprocessados. O tratamento nos primeiros estágios da doença também é bastante importante: 30% dos casos podem ser curados se detectados e tratados adequadamente no início da doença.
Para Ana Paula Natividade, da Fiocruz, uma grande barreira para que o consumo de ultraprocessados diminua – e com ele os cânceres e as outras doenças que provoca – é a força da indústria alimentícia, cujo lobby é transnacional. “Assim como temos uma Convenção-Quadro que estabelece diretrizes para o controle do consumo de tabaco, deveríamos ter um tratado parecido para limitar o poder das indústrias de ultraprocessados e o consumo desses produtos”, defende.