Como fabricantes de cigarro multiplicaram entidades e se instalaram dentro do governo brasileiro para atrapalhar a execução da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco, do qual o Brasil é um dos signatários
O engenheiro-agrônomo Delcio Sandi ostenta desde 2014 a posição de diretor de relações externas e assuntos governamentais da divisão brasileira da British American Tobacco, a BAT, uma das maiores fabricantes de cigarros do mundo. O cargo pomposo é um eufemismo comum aos profissionais que atuam nas instâncias de poder defendendo interesses particulares. Em linguagem popular, Sandi é lobista.
O executivo atua há quase duas décadas no setor do fumo. E, nesse meio tempo, coleciona pelo menos outros quatro cargos que lhe garantem portas abertas nos principais corredores do poder em Brasília. Seu nome consta em uma reunião de 2015 da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco como membro do Sindicato da Indústria do Fumo de São Paulo (Sindifumo-SP), entidade que ele segue representando em encontros que envolvem as pautas do setor.
No final de 2018, Sandi participou de uma audiência da Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle de Defesa do Consumidor do Senado. Lá, apresentou as preocupações da indústria frente a um projeto de lei proposto em 2015 por José Serra (PSDB-SP). O PL busca proibir a publicidade de produtos derivados do tabaco em pontos de venda, como bancas de jornais – medida já adotada em vários países, como o Uruguai. Na ocasião, Sandi vestia a camisa da Associação Brasileira da Indústria do Fumo, a Abifumo.
No ano seguinte, 2019, o executivo da BAT Brasil, antiga Souza Cruz, participou de uma reunião na Receita Federal na qualidade de conselheiro do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO). No encontro, que aconteceu com Marcelo de Sousa Silva, à época secretário-especial adjunto da Receita, ele apresentou um estudo encomendado pela organização à Fundação Getúlio Vargas (FGV) sobre o “impacto do contrabando de cigarros na economia”, um das grandes bandeiras do lobby do fumo (logo falaremos mais dela).
Naquele mesmo ano, Sandi estava de novo em Brasília, desta vez como representante do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco, o SindiTabaco, em audiências sobre cigarros eletrônicos promovidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
BAT, Sindifumo-SP, Abifumo, ETCO, SindiTabaco: Sandi é um exemplo de como a indústria da fumaça se pulveriza em diferentes siglas, nomes e CNPJs, mas frequentemente coloca as mesmas pessoas para defender as posições de sempre. É uma tática que faz o lobby do tabaco parecer maior do que de fato é, repetindo rostos que trabalham pelos mesmos interesses, mas sob uma variedade de empresas ou entidades que se reforçam mutuamente, simulando falsos consensos.
Ponto de encontro do lobby
Uma consulta às agendas públicas de membros da diretoria colegiada da Anvisa e representantes do Ministério da Economia mostra que, entre agosto de 2016 e setembro de 2021, ocorreram 30 reuniões com representantes da BAT Brasil. Das 16 vezes em que os participantes do encontro são citados nominalmente, o nome de Sandi aparece em 15.
Entramos em contato com Sandi através da assessoria de imprensa da BAT a respeito da sua atuação na defesa da indústria e suas expectativas diante da mudança de governo, mas não houve retorno. Depois da publicação da reportagem, a empresa enviou uma nota em que afirma que “a participação da BAT Brasil em entidades de classe e associações é legítima e comum em diferentes setores econômicos” e que “acredita que o relacionamento apartidário entre os setores público, privado e a sociedade civil é característica inerente à democracia.”
A atuação de Sandi inclui também andanças no Congresso (não registradas em agendas oficiais), Ministério da Justiça e, principalmente, no da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). O Mapa abriga o ponto de encontro do lobby da fumaça: a Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco.
Criada em 2003, a então Câmara Setorial do Fumo (posteriormente rebatizada) tinha uma formação heterogênea, que incluía não apenas as entidades ligadas às corporações do cigarro (o Brasil abriga as principais multinacionais), como também representantes de bancos públicos, da Receita Federal, dos ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, além de associações de trabalhadores como CUT, e de pequenos agricultores, como a ANPA, da Bahia. A composição tentava abarcar também todos os estados produtores de tabaco, espalhados pelas regiões Sul, Sudeste e Nordeste do país.
Até 2007, o fórum tinha um caráter consultivo. Mas, com a chegada de Reinhold Stephanes ao comando do Mapa, o perfil da Câmara mudou. Nomeado da pasta no segundo mandato de Lula e com uma trajetória política iniciada na ditadura, ele tornou o colegiado deliberativo. Não demorou muito para a indústria enxergar nisso uma oportunidade de pautar as posições em defesa do fumo de um lugar privilegiado: de dentro do Estado brasileiro.
Dois anos após a ratificação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, o governo federal passou a abrigar o principal fórum de onde partem os argumentos para convencer autoridades públicas a barrar medidas centrais para a implementação do tratado internacional, como o aumento da taxação dos cigarros e a oferta de alternativas para que fumicultores diversifiquem o monocultivo do fumo.
Um levantamento das atas da Câmara Setorial ao longo desses 20 anos mostra que a indústria se apossou do colegiado. Das 17 entidades e órgãos de governo estaduais e secretarias federais que participavam das discussões em 2003, restam apenas uma panelinha formada por Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), que ocupa a direção da câmara, a Amprotabaco, que reúne prefeitos de municípios produtores, e as entidades que representam diretamente a indústria: Abifumo, SindiTabaco, Sindifumo-RJ, Sindifumo-SP, Sitfa – além de um representante do próprio Mapa.
Alexandre Octávio de Ribeiro Carvalho, ex-integrante da Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (Conicq), sediada no Instituto Nacional do Câncer (Inca) e dissolvida no governo Bolsonaro, monitora há 20 anos as movimentações da indústria contra o único tratado de saúde que existe até hoje.
Em entrevista ao Joio, ele disse que a mudança de perfil na Câmara promovida por Stephanes, atual secretário de estado do Paraná, tornou-a esquizofrênica. “Uma câmara técnica passou a ser uma câmara política, criando uma oposição formal instalada do governo contra a Convenção-Quadro”, resume Carvalho, que abastece o Observatório sobre as Estratégias da Indústria do Tabaco, situado na Fiocruz. “Todas essas entidades juntas agem para neutralizar os avanços para a redução do tabagismo.”
A conclusão de Carvalho decorre de situações como uma reunião da Câmara Setorial realizada em julho de 2015, no segundo mandato de Dilma Rousseff. Na ocasião, Carlos Galant, então diretor-presidente da Abifumo, fez a seguinte proposta: unificar todos os grupos de trabalho do fórum em um só intitulado “Grupo da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco”.
Esse grupão direcionaria todas as entidades da Câmara em prol de dois objetivos:
1) acompanhar projetos de lei contra o cigarros
2) articular a criação de duas frentes parlamentares com o mesmo foco, uma de combate ao contrabando e outra de propriedade intelectual e pirataria
A sugestão foi aprovada por unanimidade. Estava selada ali a união das sete principais entidades do lobby da fumaça para atrapalhar a implementação do tratado de saúde.
Núcleo duro
Um levantamento feito pelo Joio lista 11 entidades pró-tabaco que ocupam hoje a Câmara Setorial. Delcio Sandi participou em algumas oportunidades das reuniões da Câmara, como a de 2015. Na ocasião, ele estava rodeado das principais figuras do lobby da fumaça: Benício Werner, Carlos Galant, Iro Schünke e Romeu Schneider.
Benício Werner é o atual presidente da Afubra, a entidade que, em tese, representa os interesses dos fumicultores, mas está muito mais próxima da indústria. Prova disso é a defesa dos DEFs, dispositivos eletrônicos de fumar, que usam pouco ou nada de tabaco na sua composição – uma guinada tecnológica com potencial de reduzir a demanda que hoje sustenta os 128 mil fumicultores associados. Werner está sempre acompanhado de Romeu Schneider, secretário da Afubra e atual presidente da Câmara Setorial.
Carlos Galant é o nome por trás da Abifumo e, na avaliação de Carvalho, o unificador do discurso em defesa do setor nos últimos 20 anos. Gaúcho de Pelotas, sua atuação como lobista garantiu o ingresso em 2003 da associação que representa as maiores corporações de cigarro presentes no país como a BAT Brasil, a Philip Morris e a Japan Tobacco International (JTI), na Câmara Setorial, e na Confederação Nacional da Indústria (CNI), entidade que também abriga o SindiTabaco. Abifumo e SindiTabaco se consideram “co-irmãs”.
Em 2005, quando a Convenção-Quadro foi ratificada pelo Brasil, a Abifumo passou a integrar o Fórum Nacional de Combate à Pirataria (FNCP), outra entidade ligada à ETCO, o instituto de ética concorrencial. FNCP e ETCO não estão unicamente associados à indústria da fumaça, já que representam outros setores econômicos, mas seus levantamentos sobre o contrabando de cigarros são armas usadas na tentativa de minar as iniciativas de aumento de preços e impostos, comprovadamente eficazes contra o tabagismo.
O argumento que uma elevação dos preços acabará turbinando ainda mais o mercado ilegal é repetido à exaustão por Sandi, Galant, Schünke e pelos prefeitos da Amprotabaco, como o atual presidente da entidade Marcus Vinicius Pegoraro e o secretário-executivo Guido Hoff, o mais assíduo da Amprotabaco nas reuniões em Brasília. A alegação de que a redução do preço impacta no mercado ilegal é contestada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), com base num estudo sobre a configuração do mercado ilegal brasileiro.
Se Delcio Sandi é a figura da indústria que troca de chapéu conforme a ocasião, transitando em várias instâncias do poder em nome de diferentes entidades, Iro Schünke é o maestro dos sindicatos que representam as gigantes do setor. A teia de relações do lobby se estende a diferentes associações e entidades, liderados pelo SindiTabaco, o pai de todos, presidido por Schünke desde 2006. É uma constelação de siglas, que incluem os Sindifumo de São Paulo, do Rio de Janeiro e o da Bahia, além das entidades parceiras como a Afubra, a Amprotabaco, que nasceu em 2013 sob a bênção do SindiTabaco, e o Stifa.
Engenheiro-agrônomo nascido em Candelária, cidadezinha da região central do Rio Grande do Sul, Schünke, hoje com 75 anos, construiu sua carreira em fumageiras. Antes de se tornar lobista do setor, foi diretor e superintendente de produção na Meridional – que, após uma fusão com a Dimon, deu origem à Alliance One International, uma das maiores exportadoras de fumo do mundo.
Sua atuação no SindiTabaco ocorreu quando ainda batia ponto na fábrica. Em 2006, apenas um ano após a ratificação da Convenção-Quadro, assumiu a presidência do sindicato financiado pelas maiores corporações de cigarro, cargo que ocupa até hoje. “Ele é como um regente que coordena as estratégias entre diferentes entidades, especialmente as ligadas aos trabalhadores da indústria e agricultores”, diz Alexandre de Carvalho, do Inca.
Como Sandi, Iro Schünke transita nos corredores do poder com diferentes títulos, como medalhas militares na lapela. É também diretor-presidente do Instituto Crescer Legal, ligado ao SindiTabaco e voltado à capacitação de novos fumicultores, diretor da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs) e tem cadeira cativa na CNI e na Confederação Nacional da Agricultura (CNA), além da Câmara Setorial, onde os lobistas se encontram. Além das tradicionais associações empresariais, participa de eventos da constelação de entidades que promovem os argumentos pró-cigarro, como o ETCO e o Fórum Nacional de Combate à Pirataria – o presidente-executivo do ETCO, Edson Luiz Vismona, também dirige os trabalhos do FNCP.
Nos quatro anos do governo Bolsonaro, as pautas do SindiTabaco liderado por Schünke ganharam espaço e adesão no Executivo. O governo federal empreendeu o mais duro golpe contra a Convenção-Quadro, que culminou com a dissolução da Conicq revelada pelo Joio. Enquanto o lobista da ex-Souza Cruz, Delcio Sandi, pressiona a Anvisa pela liberação dos cigarros eletrônicos e o Ministério da Economia com a pauta dos tributos, Schüncke tratou de galgar prestígio junto ao Ministério da Agricultura liderado por Tereza Cristina.
Um exemplo dessa aproximação, marcada pela simpatia mútua, foi a reunião em fevereiro de 2019, logo após a posse de Jair Bolsonaro, na qual o representante das 14 corporações de cigarro aparece ao lado do quarteto Benício Werner, Romeu Schneider e Carlos Galant no gabinete da ministra. O cicerone foi Fernando Schwanke, outro político oriundo da fumicultura gaúcha, ex-prefeito de Rio Pardo (RS), que assumiu a secretaria da Agricultura Familiar e Cooperativismo da pasta.
Indicado por outro gaúcho, o deputado federal do MDB Alceu Moreira, uma das mais ferrenhas vozes pró-tabaco, Schwanke se tornou o principal interlocutor das demandas da turma da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco no Mapa. Assumiu dizendo que tornaria o sistema integrado de produção entre fumicultor e indústria um modelo para outros setores agrícolas.
Na reunião, Iro Schünke se sentiu à vontade para desabafar. Afirmou que se sentia “atacado” – reclamação recorrente na turma do lobby, que se defende lançando dados da importância econômica do setor e repetindo que a atividade é legal. Segundo ele, a ministra e o secretário garantiram que “essa ‘ideologia’ não iria existir mais”. “O ativismo contra a produção de tabaco é página virada”, confirmou Schwanke ao portal Agrolink. A cobertura do encontro não deixa dúvidas de que os lobistas estavam se sentindo em casa no governo Bolsonaro.
Números inflados: um clássico
A proximidade levou o Ministério da Justiça a criar em 2019 um grupo de trabalho para estudar a redução dos tributos do cigarro, mas que não avançou. Outro golpe foi a decisão da Anvisa de manter a proibição dos DEFs em 2022 depois de uma série de audiências e reuniões a portas fechadas que reuniu os principais nomes do lobby.
Ao assumir o sexto mandato à frente do SindiTabaco no ano passado, Schünke reafirmou sua meta de seguir trabalhando em “assuntos regulatórios” e para “dar visibilidade” ao setor. “Aumentar a importância do tabaco para além do que ele representa é uma das estratégias mais usadas pela indústria desde sempre”, descreve Carvalho.
A exaltação à pujança vem sempre acompanhada dos números de empregos gerados: “600 mil no campo e 40 mil nas indústrias”, disse Schünke na reunião com a ministra Tereza Cristina.
Dados do Ministério do Trabalho e Previdência apontam que, em 2022, as fábricas de fumo empregaram no Brasil 12,6 mil pessoas. No campo, as estatísticas da própria Afubra contam outra história. Desde 2004, o setor vem encolhendo no Brasil em termos de área plantada, produção e famílias envolvidas. De lá para cá, o número de fumicultores reduziu em 31%. E a produção encolheu 27%. Na safra 2021-22, a área plantada foi 9,8% menor que a anterior na região Sul, celeiro desta cultura no país.
Entramos em contato com Iro Schünke para entender as relações entre as entidades na defesa do setor e a queda na produção e empregos, mas não houve retorno.
Rede se une por dispositivos eletrônicos
Entre especialistas, é consenso que a queda da demanda tem a ver com os esforços de redução do tabagismo no mundo. Nos últimos 20 anos, a prevalência cai de 32% para 22% da população.
Em breve, é possível que o baque seja ainda maior, por conta do avanço dos cigarros eletrônicos, que usam nada ou muito pouco de tabaco. Essa, aliás, é uma das principais bandeiras do lobby da fumaça no Brasil hoje: forçar a Anvisa a liberar a venda desses produtos. Mas a proibição, de 2009, foi reforçada em 2022.
A defesa dos dispositivos eletrônicos dominou a maioria das reuniões que o lobista Delcio Sandi participou nos últimos cinco anos em Brasília. Mas também concentra o foco de Iro Schünke que, apesar das andanças na capital federal, mantém o foco da atuação na região Sul, responsável por 95% da produção de tabaco do país.
É aí que entra a cooptação por parte do SindiTabaco de entidades como a Afubra e da Stifa que, em tese, deveriam estar do lado dos fumicultores, mas aparecem na constelação do lobby da fumaça lado a lado com SindiTabaco, Abifumo, Amprotabaco e os institutos de apoio como ETCO e FNCP.
Criada na década de 1950, a Afubra detém a presidência do ponto de encontro do lobby da fumaça: a Câmara Setorial no Mapa. Em uma entrevista a uma rádio de Santa Cruz do Sul em 2016, seu presidente, Benício Werner, disse com a voz pausada e meio trêmula que os números do crescimento do mercado de cigarros eletrônicos “assustam muito”. Mas nas atas das reuniões da Câmara analisadas pelo Joio, essa preocupação não é expressa por Werner ou Schneider diante dos colegas da indústria – ainda que possa representar um nocaute para as quase 130 mil famílias que integram a associação.
Nem mesmo o Programa Nacional de Diversificação de Áreas Cultivadas com Tabaco (PNDACT), uma exigência que entidades como a Afubra fizeram ao governo brasileiro à época da ratificação do tratado, é mencionado nas reuniões. Os exemplos de diversificação se resumem às safrinhas, plantações de milho e feijão cultivadas na entressafra do fumo, apoiadas pelas fumageiras. Werner foi procurado, mas também não respondeu.
Em seu quarto mandato à frente da Afubra, Werner não esconde a proximidade com a indústria. Questionado em entrevista após sua última eleição sobre qual é a posição da Afubra na cadeia produtiva, disse “(estamos) junto às entidades parceiras, sindicatos e federações, não só da parte que diz respeito à produção do campo, como também dos trabalhadores da indústria, com a própria representação das indústrias.”