Presidente do Ibama buscou atropelar área técnica, como havia feito em outra terra indígena. No apagar das luzes, ele se juntou aos militares na Funai e ao MPF para viabilizar projeto do agro em área dos Xavante
Documentos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) obtidos pelo Joio mostram que, no final do mandato de Jair Bolsonaro, a Funai, o presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério Público Federal (MPF) se articularam para desembargar uma área interditada por desmatamento ilegal no interior da Terra Indígena Sangradouro, no leste de Mato Grosso, onde vivem indígenas da etnia Xavante.
A área de 1.500 hectares que os órgãos pretendiam liberar havia sido desmatada em 2020 por fazendeiros e indígenas ligados a um projeto de agronegócio na terra indígena, o Agro Xavante, e estava sendo utilizada desde então para plantio de soja, milho e arroz, com a anuência da Funai e do MPF.
Em julho de 2022, o Ibama multou os fazendeiros envolvidos no projeto por desmatamento ilegal e embargou a lavoura. Desde então, os atores envolvidos vêm tentando conseguir a liberação da área – a segunda safra de soja se daria justamente no momento em que a área foi alvo de fiscalização.
Como já contamos em reportagem do Joio, uma comitiva de militares lotados em altos cargos da Funai se deslocou até Sangradouro em agosto do ano passado para discutir como destravar o projeto e retomar o plantio. Na reunião, os militares prometeram derrubar o embargo do Ibama.
O caso reforça como o Agro Xavante foi uma prioridade do bolsonarismo. Os envolvidos no projeto contaram ao Joio que o projeto partiu de um pedido do próprio presidente da República. A intenção era fazer da iniciativa, também chamada de Independência Indígena, um protótipo de modelo a ser replicado pelas demais etnias país afora.
A ênfase na abertura das terras indígenas a projetos econômicos em “parceria” com o agronegócio e a mineração contrasta com o descaso geral do último governo em relação à questão indígena, simbolizada pela tentativa de genocídio do povo Yanomami e pela total ausência de demarcação de novas áreas.
Os documentos agora obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que, por pouco, os diretores da Funai e do Ibama não foram bem-sucedidos.
Logo após a multa e o embargo, o mesmo procurador do MPF que havia dado aval ao projeto Agro Xavante em novembro de 2021, Everton Pereira Aguiar Araújo, abriu um inquérito para apurar “a cessação de presença de não indígenas” na TI Sangradouro.
No inquérito, o procurador sugere à Funai que seja firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre as partes para regularização da lavoura.
A sugestão, registrada em ofício de 5 de setembro de 2022, foi enviada poucas horas após uma reunião entre Aguiar e os presidentes do Ibama e Funai à época, Eduardo Bim e Marcelo Xavier, na sede da Procuradoria da República de Barra do Garças. O Joio pediu via LAI as gravações da reunião, sem sucesso.
A resposta dos órgãos foi rápida. Contrariando a equipe de fiscalização da autarquia que presidia – que havia multado os produtores e embargado a área – Eduardo Bim encaminhou, após quinze dias, um modelo de termo ao seu homólogo da Funai, Marcelo Xavier.
Nos moldes de documento semelhante assinado pelos indígenas da etnia Pareci em 2019, o acordo prevê o desembargo imediato da lavoura, desde que os lucros sejam distribuídos para a comunidade e haja prestação de contas semestral. Também abre margem para que a área total seja expandida para seis mil hectares.
O despacho de Eduardo Bim ainda sugere à Funai o “desembargo imediato” da área, visto que há risco de “perda milionária de sementes, caso o plantio não seja efetuado imediatamente”.
A minuta elaborada pelo Ibama transitou com urgência dentro da Funai e em cinco dias recebeu parecer favorável do órgão. Da mesma forma, ganhou aval do MPF. Só quem reclamou foi a cooperativa indígena envolvida no projeto, a Cooigrandesan.
O presidente da entidade, Gerson Wa Raiwe, solicitou que o Termo de Compromisso Ambiental elaborado pelo Ibama permitisse a permanência dos fazendeiros no local.
“[Solicitamos a] suspensão do embargo aos cooperadores técnicos, além das multas, que inviabilizam o desenvolvimento do projeto em questão, sendo a cooperativa insuficiente e incapaz nesta etapa do projeto, que não passou ainda do seu primeiro plantio e por isso fica impossível de desenvolver sozinho os trabalhos”, escreveu, sem obter resposta.
Conforme o processo interno da Funai obtido pela reportagem, as últimas movimentações relativas ao tema ocorreram no dia 10 de novembro de 2022. Desde então, não consta que o termo tenha sido assinado – o que foi confirmado por um funcionário da Funai com conhecimento do tema.
Na velocidade da luz
A agilidade dos órgãos envolvidos para solicitar o desembargo da lavoura contrasta com a morosidade dispensada a outros assuntos dentro da Funai.
Em abril do ano passado, o Serviço de Gestão Ambiental e Territorial da Coordenadoria Regional (CR) Xavante da Funai, em Barra do Garças, alertou sobre “fortes indícios” de discrepância entre a área prevista para desmatamento na lavoura do Agro Xavante – que constava nos termos de cooperação firmados entre a cooperativa e fazendeiros – e a área de fato desmatada.
Também apontou para a completa ausência de informações relacionadas ao trabalho da cooperativa. Quem eram os trabalhadores envolvidos no plantio? Havia uso de transgênicos? Quais eram os resultados da lavoura e como estavam sendo distribuídos?
A investigação do Joio sobre o caso mostrou que a cúpula da Funai, ao passo que ignorava as comunicações emitidas pela área técnica, também era complacente com a recusa da cooperativa em prestar esclarecimentos. As informações nunca chegaram a ser remetidas à CR Xavante.
Em outra ocasião, também relatada aqui, a direção da Funai em Brasília ignorou por mais de dois anos uma denúncia feita por servidores da CR Xavante – embasada com fotos e depoimentos de indígenas envolvidos – de que 80 hectares estavam sendo arrendados para plantio de soja no interior de Sangradouro.
Prestação de contas
Os documentos obtidos pela reportagem trazem o balanço das atividades de plantio desenvolvidas no interior da terra indígena – os mesmos que nunca foram fornecidos à Funai.
Em 2021, segundo a cooperativa, foram produzidas 108 toneladas de arroz – seis das quais foram distribuídas à comunidade. Na safra de 2022, a cooperativa e os fazendeiros produziram mil toneladas de soja e duas mil toneladas de arroz. Segundo alega Wa Raiwe em ofício ao MPF datado de outubro do ano passado, 80 toneladas de arroz e cerca de R$ 495 mil reais seriam distribuídos à comunidade de Sangradouro, que tem cerca de 2.700 pessoas (média de R$ 180 por pessoa).
Pelos acordos firmados em 2021 entre fazendeiros e xavantes, 80% dos lucros da lavoura ficam com os brancos, enquanto os cooperados indígenas tomam o restante. O Estatuto Social da Cooigrandesan não prevê qualquer obrigação com relação à distribuição de lucros para a comunidade.
A reportagem procurou a Funai, o Ibama e o MPF, mas não houve retorno até o fechamento deste texto.