Relatório do IPES-Food mostra como a política de teto de gastos, a prioridade dada ao mercado financeiro e a produção para exportação estão impulsionando o aumento da fome nas nações de renda média e baixa
Uma família passa a trabalhar apenas para pagar contas atrasadas do mercado. Os juros cobrados pelo comerciante sobre os valores da caderneta impedem a compra de novos alimentos e a quitação completa da dívida. Crianças passam a trabalhar, sem tempo para estudar, e os adultos entram em jornadas exaustivas para tentar quitar a dívida. Com fome e problemas de saúde, eles não têm qualquer perspectiva de ver a dívida sequer diminuir e passam a ter cada vez menos autonomia de resolver sobre suas vidas.
A parábola talvez pareça um caso absurdo de exploração de trabalho escravo. É certo que os princípios das finanças públicas e dos governos não são os mesmos da economia doméstica. Até por isso, uma situação que seria surreal dentro de uma família acabou aprovada como política pública de países. E é o que está acontecendo com muitos deles, segundo aponta o IPES-Food (Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis) em relatório divulgado em março deste ano.
O trabalho aponta diversos processos de aumento da fome e da miséria no mundo e os relaciona com a crescente financeirização do capitalismo e o endividamento de países dependentes, que ainda assim se sentem pressionados a aumentar as taxas de juros de suas dívidas para conseguir atrair capitais em busca de rentabilidade rápida. Os resultados são uma baixa capacidade de investimento em políticas de desenvolvimento e programas sociais. Se tudo isso te soa familiar, é porque o Brasil é um ponto dentro da curva, nesse caso.
Ao mesmo tempo, os referidos países colocam em segundo plano a produção de alimentos para sua população e investem cada vez mais em commodities que serão vendidas no mercado internacional. Para ter mais competitividade, seus governos diminuem a cobrança de taxas e impostos para a exportação, o que mais uma vez reduz as condições de manter os investimentos públicos elevados, ainda mais por causa da pressão por tetos de gastos que servem para garantir a segurança aos investidores do retorno do dinheiro aplicado.
A equação parece complicada, mas o resultado é muito simples. De um lado, a população fica sem as políticas públicas de saúde, educação e segurança alimentar, entre tantas outras, e tem menos acesso à terra e aos alimentos por conta da expansão do agronegócio voltado para a exportação de commodities. De outro, a situação não parece mais promissora: a dívida cresce em um ritmo muito maior do que a capacidade de pagamento dos países.
Ou seja, nações endividadas com uma parte expressiva da sua população na miséria em um planeta cada vez mais sujeito a desastres climáticos. “Muitos países mais pobres dependem da exportação de safras comerciais, como café ou algodão, para ganhar dólares, ao mesmo tempo em que importam alimentos básicos para atender às suas necessidades de segurança alimentar – mas essa configuração mina fatalmente sua capacidade de alimentar suas populações e os mantêm presos em dívidas. Também torna esses países altamente vulneráveis a picos de preços de alimentos e a interrupções na cadeia de suprimentos, bem como a choques climáticos”, afirma a economista Jennifer Clapp, uma das responsáveis pelo estudo.
A espiral de pobreza, como mostra o relatório, não é uma política isolada e pode levar diversos países a quebrarem em breve, por falta de capacidade de pagamento de suas dívidas. “A crise alimentar ainda é forte e agora está provocando dívidas crescentes e fome crescente em dezenas de países de renda baixa e média. As crescentes dívidas estão se tornando inacessíveis para muitos governos, assim como eles lutam para pagar as importações de alimentos e fertilizantes. Décadas de progresso na redução da fome correm o risco de serem anuladas”, diz.
Clapp aponta para uma possibilidade de repetição da crise dos anos 1980, quando a escalada dos juros nos países do Norte provocou a quebra das nações dependentes. “À medida que as taxas de juros continuam subindo, a situação representa um golpe duplo para muitos países que são focos de fome e enfrentam níveis insustentáveis de dívida. A situação é urgente e requer ação – tanto para lidar com o aumento imediato da dívida e com a transformação dos sistemas alimentares para proteger os países dos piores efeitos da disfunção financeira global.”. Para ela, no entanto, a crise atual pode ter efeitos mais graves, porque também está associada a uma grande crise mundial de preços de alimentos – e ambas se reforçam mutuamente. “Fala-se cada vez mais da crise da dívida, bem como da crise dos preços dos alimentos. Mas estamos perdendo qualquer pensamento holístico para abordar essas crises gêmeas juntas. Queremos que os leitores entendam que a iminente crise da dívida está profundamente interligada com a forma como os sistemas alimentares estão atualmente organizados”, acredita.
Este é o terceiro relatório divulgado pelo IPES-Food, que tratam do avanço da fome nesta década. Nos dois anteriores, eles destacaram os impactos da Covid-19 e da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que elevou os custos de importação de fertilizantes, alimentos e energia, além de provocar alta nos juros. O texto atual aponta Líbano, Sri Lanka e Suriname como países que já não conseguem fazer pagamentos de suas dívidas soberanas. Ao todo, 21 países estão, simultaneamente, em situação de alto endividamento e em crise alimentar grave.
Apesar de não estar entre os países cuja situação é considerada mais grave, o caso do Brasil é citado com destaque no relatório. Os pesquisadores apontam um aumento da pressão sobre as finanças públicas, com uma elevação dos juros e a isenção de impostos nas exportações de commodities. Citam ainda a Emenda Constitucional 95, que congelou os gastos públicos por vinte anos, como mais um fator de enfraquecimento das políticas sociais e de estratégias de desenvolvimento. O resultado foi a transformação de um quadro de estagnação econômica em recessão e um aumento da dívida pública de 2016 para cá, principalmente a partir de 2020, por conta dos impactos econômicos da pandemia de Covid-19.
Professor de Economia da Universidade Federal do Pará (UFPA), José Raimundo Barreto Trindade aponta que o conceito de dívida externa foi superado pelo fato de que mesmo as dívidas contraídas internamente são negociadas em mercado internacional. “Como mostra esse levantamento, a China se tornou nos últimos 20 anos um dos principais credores dos países dependentes e tem hoje 21% do total desta dívida”, diz. Para ele, muitos países, como o Brasil, estão disputando recursos financeiros de baixa performance, que buscam apenas o lucro rápido baseado no spread, a diferença entre as taxas de juros dos países.
O pagamento em dólar dos valores das dívidas faz com que esses países tenham de correr atrás da moeda estadunidense. A consequência é a busca por uma balança comercial capaz de gerar dólares, com a produção em larga escala de produtos do agronegócio. “A consequência é a descapitalização da pequena agricultura, voltada para o mercado interno de alimentos, que passa a ter menos acesso a insumos, crédito e maquinário”, aponta.
As reformas neoliberais, segundo ele, fazem com que os governos priorizem políticas recessivas, como a Emenda Constitucional 95/2016, a independência do Banco Central, a retirada de direitos trabalhistas e o congelamento do salário médio da população. “É um movimento que se agravou no segundo governo Dilma Rousseff, quando o economista Joaquim Levy assumiu o Ministério da Fazenda, e se intensificou a partir do golpe de 2016”, defendeu. “É uma excrescência ter na Constituição um congelamento nos investimentos públicos em áreas como saúde e educação. ”
Não por acaso, a independência do Banco Central e a atual taxa de juros básica da economia brasileira terem se tornado motivos de tensão nos três primeiros meses do terceiro mandato de Lula. O presidente do banco, Roberto Campos Neto, cujo avô foi ministro do Planejamento nos primeiros anos da ditadura, teve seu nome aprovado no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro e se tornou um empecilho para a política desenvolvimentista prometida por Lula durante a campanha.
Na reunião de março deste ano, a taxa Selic foi mantida em 13,75% ao ano. No mesmo período, o vencedor do Nobel de Economia de 2011, Joseph Stiglitz, participou de um seminário do Bando Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e considerou estas taxas brasileiras “equivalentes à pena de morte”. A recuperação da política social anunciada por Lula e colocada em prática nos mandatos anteriores é citada pelo IPES como uma expectativa de melhora da situação do país.
Trindade destaca que, antes deste agravamento dos últimos anos, o Brasil já havia iniciado os movimentos da cartilha neoliberal, como a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), que limitava os gastos públicos, e a Lei Kandir (1996), que isenta de alguns impostos atividades para a exportação do agronegócio e da mineração. “O Brasil tem uma tributação concentrada no consumo, que faz com que as pessoas que ganham até dois salários-mínimos representem 30% da capacidade tributária. Ao mesmo tempo, a mineração e o agronegócio são beneficiados por isenções”, comenta.
A situação provocou uma crescente entrada do setor financeiro nestes dois setores. “Enquanto o país permanece com uma economia estagnada e um processo de desindustrialização, bancos e grandes fundos internacionais investem cada vez mais em setores como o agronegócio e a mineração. É uma economia primarizada”, explica.
A concentração destes setores de commodities em poucas mãos também leva as empresas a controlarem mais a capacidade de produção do que o próprio governo, que poderia levar em conta os interesses nacionais. “Aqui no Pará, temos o exemplo da Vale, que foi privatizada e mais de metade de suas ações está nas mãos de investidores internacionais”, cita.
Para Trindade, o relatório se concentra mais em países da Ásia e da África, mas a América Latina também pode sofrer com os efeitos da quebra de países. O Brasil não chegaria a quebrar por ter um endividamento de 70% do Produto Interno Bruto (PIB) e uma economia maior do que dos países em dificuldades. “A questão é que estamos seguindo a mesma cartilha e o nosso endividamento tem crescido não para atender as necessidades da população, mas para pagar cada vez mais pelos juros da dívida”, diz.
Exemplo disso é que, apesar dos cortes, a participação da dívida bruta no PIB teve um crescimento do primeiro governo Dilma para cá. A primeira gestão da presidenta terminou com uma dívida de 56,28% do PIB, segundo a série histórica do Banco Central. No momento do impeachment era de 67,58%, chegando a 75,48% no início do governo Bolsonaro. Na gestão dele, atingiu 87,57%, em outubro de 2020, e no fim de seu governo estava em 72,51%.