Infraestrutura pública atende majoritariamente agronegócio exportador; comunidades locais se organizam contra implantação e expansão
É sábado e faz sol. Percorremos as ruas de Apodi, no Rio Grande do Norte, para chegar ao sindicato dos trabalhadores rurais da cidade. Quem vê de fora a casinha antiga pintada de verde não entende a razão do entra e sai de gente. Batizado? Casamento? Embora uma centena de pessoas estejam reunidas, lá dentro não acontece nenhuma festa. Pelo contrário. A razão do encontro é a instalação de mais um projeto público de irrigação. Os agricultores o apelidaram de “Projeto da Morte”.
Projeto. Público. Irrigação. Nada na junção dessas palavras soa negativo. Mas o Perímetro Irrigado Santa Cruz de Apodi é um símbolo das contradições da política agrária brasileira – o que não é pouco.
O megaprojeto saiu do papel em 2011 e incentiva o agronegócio de frutas para exportação. Mas as cidades onde será implantado – além de Apodi, a também potiguar Felipe Guerra – são exemplos de reforma agrária e produção familiar, principalmente de mel orgânico.
Sob muitos protestos da população local, que chegou a enviar mais de duas mil cartas contra o projeto, a então presidente Dilma Rousseff decretou a desapropriação de 13 mil hectares de terras, expulsando famílias para dar lugar às empresas.
As obras se iniciaram em 2013, mas foram paralisadas em 2015. Segundo o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), apenas 24% da estrutura foi concluída. Se, originalmente, o perímetro estava orçado em R$ 242 milhões, hoje o órgão federal aponta que serão necessários R$ 374 milhões para concluir as obras.
Mas não há crise que não possa ser usada como oportunidade (para o mercado). Em 2022, Santa Cruz de Apodi foi incluído no PPI, o Programa de Parcerias de Investimento do governo federal, tornando-se um dos projetos públicos de irrigação escolhidos para estrear a privatização no setor.
A história representa uma fração dos muitos problemas que encontramos ao rodar por alguns dos principais projetos públicos de irrigação do Nordeste, nos estados de Ceará e Rio Grande do Norte.
Ao longo de 10 dias, entre agosto e setembro do ano passado, conversamos com quem foi expulso da terra para ceder lugar a esses megaprojetos. Quem resolveu peitar governo e agronegócio ocupando áreas nos perímetros. E quem luta com unhas e dentes pelo fim desse modelo.
“Quando chegou a água, nos tiraram a terra”
Os projetos públicos de irrigação – no jargão oficial, PPIs – começaram a tomar forma no fim da década de 1960, em plena ditadura. A ideia era que na Caatinga, onde a natureza sempre ditou quando e o que se plantava, se estabelecesse um novo tipo de produção agrícola, considerado moderno pelos militares.
O plano consistiu em desviar água de rios e barragens para o abastecimento de enormes canais, de onde seria bombeada para irrigar plantações o ano inteiro.
No discurso, as comunidades acostumadas a plantar frutas e verduras no “inverno” – como chamam o período de chuvas que vai de janeiro a junho –, e mandioca e milho no “sequeiro” do restante do ano, se veriam livres das amarras do clima. Na prática, descobriram que a água não era para elas.
“Quando chegou a água, nos tiraram a terra”, resume Osarina Lima, moradora do Sítio Junco – uma das comunidades rurais do município de Russas, no Ceará, afetadas pelas desapropriações feitas para garantir a expansão da área de outro desses projetos: o Perímetro Irrigado do Tabuleiro de Russas.
Aos 39 anos – metade deles passados na luta contra as desapropriações – Osarina é uma mulher bonita, de sorriso fácil e cabelos grisalhos. Chegamos na casa dela por volta do meio-dia e fomos recebidas com um banquete: feijão, arroz, purê de aipim, omelete e salada – tudo feito com plantas alimentícias não convencionais (PANCs), como vinagreira, bredo e ora-pro-nóbis, que ela cultiva em uma horta coletiva da comunidade. Repetimos uma vez. E mais outra.
Depois do almoço, Dino Gomes da Costa, 55 anos, liderança histórica de outra dessas comunidades, Lagoa dos Cavalos, se soma à conversa. Depois de aceitar um cafezinho e comentar por alto as chances de alguns candidatos locais – estávamos a menos de um mês do primeiro turno das eleições de 2022 – ele sentou em uma daquelas tradicionais cadeiras de fio. Em pouco mais de uma hora, na luminosa sala de Osarina, eles tentam resumir anos de sufoco.
O projeto público de irrigação de Russas foi gestado no início da ditadura, em 1967. Mas foi em plena redemocratização do Brasil, em 1988, que saiu do papel. Naquele ano, o governo federal selou o destino de 22 comunidades rurais e 782 famílias, que viriam a ser desapropriadas para dar lugar à primeira etapa do perímetro, implantada em 10,7 mil hectares – área equivalente a um terço da capital Fortaleza.
Vinte anos depois, em 2008, durante o segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, veio a decisão de expandir o projeto de irrigação agrícola. Foi nesta segunda etapa que as vidas de Osarina e Dino acabaram bagunçadas. A notícia foi dada pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas numa espécie de reunião-cilada.
“O DNOCS chamou as lideranças comunitárias pra apresentar os resultados da primeira etapa: empregos gerados, terras cultivadas… E, no fim da reunião, eles anunciam que até abril de 2010 todo mundo iria ter que sair. Aí todo mundo falou: ‘Opa! Não pode ser assim’”, relembra Dino, que estava lá.
O ímpeto das comunidades foi barrar. Afinal, em 2008, apenas 23% da primeira etapa do perímetro estavam ocupados – fato que também levou o Ministério Público Federal a questionar a expansão.
Mas nada foi capaz de segurar o DNOCS, que tocou em frente: desapropriou 306 propriedades rurais, afetando 67 famílias distribuídas em oito comunidades com nomes entre o bonito, o confortável e o poético: Bananeiras, Barbatão, Córrego Salgado, Escondida, Lagoa dos Cavalos, Sítio Junco, Sussuarana e Peixe.
Invisíveis aos olhos do Estado
Essas comunidades, assim como outras da região, começaram a se formar na década de 1930. A maior parte do tempo, viviam da criação de pequenos animais e da agricultura de subsistência. Mas, desde os anos 90, passavam por um processo de transição agroecológica, com produção de alimentos sem agrotóxicos e criação de abelhas – iniciativas que coincidiram com a chegada das primeiras políticas públicas, como a implantação de cisternas para captação de água da chuva.
“Antes não tinha nada, uma obra sequer nas comunidades. Tudo era direcionado à propriedade das pessoas que tinham mais condição”, lembra Dino. “A gente estava no auge de execução desses projetos”, complementa Osarina.
Mas, segundo o estudo de impacto ambiental (EIA) feito para avaliar a expansão do perímetro irrigado, nada disso existia.
O documento afirma não ter constatado a presença de “grupos sociais que através da organização comunitária” buscassem “superar os obstáculos existentes melhorando, assim, a qualidade de vida da área”.
De acordo com o EIA, tudo era “atraso” que seria superado pela expansão das atividades de fruticultura irrigada “de forma a tornar a região uma das líderes nacionais neste segmento, gerando empregos permanentes”. Em vez de trabalhar na própria terra, a população deveria virar empregada do agronegócio.
“O estudo dá vontade de chorar. Quem somos nós que moramos aqui há mais de cem anos? E o que a gente faz? Que valor tem?”, questiona Osarina.
O que poderia ter sido e não foi
Durante o almoço e a conversa com Dino e Osarina havia uma terceira pessoa: o pesquisador Diego Gadelha. Além de ser fã de rapadura, ele é coordenador do Observatório da Questão Hídrica – um projeto de extensão vinculado ao campus de Fortaleza do Instituto Federal do Ceará (IFCE). O problema da distribuição desigual das águas no semiárido nordestino é o seu assunto e, por isso, mesmo antes da viagem, nós já vínhamos nos correspondendo.
Para ele, a política de irrigação no Nordeste poderia ter sido o completo oposto do que vimos em Lagoa dos Cavalos e do que se avizinha em Apodi. A concepção original, explica, é do economista Celso Furtado – e tinha a ver com reforma agrária, de modo que latifúndios dos antigos coronéis pudessem dar lugar à produção de alimentos pelos pequenos. “A agricultura familiar – para usar um termo de hoje – teria um papel fundamental”, diz.
Porém, como tudo o mais no Brasil, também isso foi afetado pelo golpe de 1964. “O período da ditadura militar é quando a política de irrigação ganha materialidade e vai se expandir pelo Nordeste. Se a concepção original era produzir alimentos a partir da irrigação, com a ditadura, essa perspectiva vai mudando.”
Saem os alimentos que abasteceriam o mercado nordestino evitando crises de abastecimento, entram as monoculturas exportadas para o Sul e o Sudeste – e, depois, para fora do país.
“Se a gente pegar os planos de implantação dos perímetros, as palavras ‘modernização’ e ‘produtividade’ sempre vêm acompanhadas do pacote técnico da Revolução Verde: mecanização, adubação, agrotóxicos, sementes melhoradas…”.
Na década de 1980, organismos internacionais como o Banco Mundial começariam a recomendar que as empresas se tornassem o público prioritário dos projetos públicos de irrigação – fechando o ciclo do agronegócio.
No papel, esses projetos preveem a distribuição de lotes para quatro públicos-alvo: agricultores familiares, e pequenos, médios e grandes produtores. Tem funcionado assim: o órgão público responsável pela implantação do perímetro, na maior parte dos casos o DNOCS, define qual será a fatia destinada a cada um desses perfis, loteia tudo e abre um edital de seleção.
A metodologia, correta à primeira vista, é problemática na avaliação de quem vive e de quem pesquisa a situação. Isso porque, para passar na seleção, quem se inscreve no edital precisa provar experiência com esse tipo de irrigação, dentre outras exigências técnicas – o que historicamente deixou de fora as comunidades expropriadas, acostumadas à agricultura de “sequeiro” ou à irrigação tradicional.
Mas os problemas não param por aí. As empresas ganham muito mais fatias desse bolo que os demais irrigantes. Segundo dados levantados pelo dossiê Perímetros Irrigados, iniciativa de vários programas de pós-graduação do país, no Tabuleiro de Russas as empresas representam 11% dos irrigantes – mas ocupam nada menos do que 47% da área total do perímetro. Já os pequenos produtores, que somam 67% dos irrigantes, ocupam 37% do perímetro.
Mas, na prática, essa concentração é pior ainda, já que alguns irrigantes acabam arrendando ou vendendo lotes para outros – o que é irregular, de acordo com o próprio DNOCS.
Na nossa passagem pelo Perímetro de Russas paramos em frente a uma casinha muito bem cuidada que tinha movimento de gente. Fomos recebidas por Sérgio*, 49 anos – 19 deles passados no perímetro. Ele começou trabalhando na roça de outros produtores até que, em 2006, concorreu e ganhou um lote de oito hectares em uma licitação do DNOCS. Pagou R$ 1,5 mil por hectare; R$ 12 mil no total.
Se no papel Sérgio é um pequeno produtor, na vida real ele já detém uma área maior, de 32 hectares – chegando pertinho do lote mínimo destinado a empresas, de 34 hectares. “Eu licitei só um”, admite.
Com os negócios dando certo – ele planta abóbora, goiaba, graviola e macaxeira –, comprou outros três. “Muita gente é assim, sabe? Licita, aí não faz nada. No fim fica especulando preço e aí vende.” Segundo ele, seus quatro lotes hoje valem nesse mercado paralelo cerca de R$ 2 milhões – uma valorização de mais de 16.000%. “Tem muitos aí esperando amornar, chegar um empresário pra comprar”, reforça. Não é o caso dele, que pretende continuar produzindo.
“É como eu digo: o pequeno não tem vez. Eu digo aqui, eu digo ali, eu digo na mesa do juiz; em qualquer canto. Porque o cara tem um lote de oito hectares. Aí ele trabalha, trabalha e fica pequeno. Ele não pode ter direito de comprar outro lote, não?”
Segundo Sérgio, a orientação do DNOCS é de que se coloque esses lotes negociados de forma irregular em nome de outras pessoas. “Ou no nome do antigo proprietário, ou no nome de uma pessoa da família.” De um laranja, em suma. “Eu acho errado”, diz. Questionado pelo Joio, o DNOCS afirmou que “não orienta e nem reconhece nenhuma ação irregular”.
Mas Sérgio é um peixe pequeno – e por isso decidimos não o identificar nessa reportagem. Perto dali, no Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi, instalado entre os municípios cearenses de Quixeré e Limoeiro do Norte, a história é povoada por tubarões.
Origens de uma ocupação
Dirigir na região é um desafio. O celular não pega na maior parte do tempo e é comum não avistar viva-alma para pedir informações quilômetros a fio. Depois de irmos parar, literalmente, no meio do mato, num local difícil até de manobrar o carro, chegamos ao acampamento Zé Maria do Tomé, uma ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no coração do agronegócio cearense.
Sem perder tempo, fomos ao encontro de José Evandro Sousa Silva. Dolero – como é conhecido – tem 39 anos e trabalhou nas principais empresas de exportação de frutas que orbitam o Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi. Agrícola Famosa. Del Monte. Frutacor. Durante 19 anos, sua realidade foi a mesma da maior parte dos trabalhadores com quem conversamos ao longo dessa apuração. Passou por diversas funções, sempre ganhando salário mínimo. Em nenhuma das empresas havia lugar pra esquentar a comida: era um bóia-fria.
“Eles não têm nenhum cuidado com a saúde da gente, com o físico da gente, com a mente da gente. Só exigem a força bruta da gente. E, como a gente precisa, se obriga a estar nessa situação”, lembra. Hoje, Dolero é agricultor familiar e as coisas mudaram. “Graças a Deus estou trabalhando pra mim, não passo por isso.”
Sua passagem de uma ponta a outra tem a ver com a luta popular que levou, em 2014, o MST a ocupar o canal principal deste perímetro. E a história dessa ocupação diz muito sobre as injustiças que rondam o modelo dos projetos públicos de irrigação.
Jaguaribe-Apodi é o epicentro de um conflito fundiário que se arrasta desde o começo da década de 1990, quando empresas começaram a invadir áreas do perímetro que deveriam abrigar pequenos agricultores ou servir de reserva ambiental.
O caso mais emblemático é o da Del Monte, uma das três maiores empresas do ramo da fruticultura no mundo. Segundo um relatório do DNOCS feito em 2009 por exigência da Justiça, a transnacional era a maior invasora do perímetro, tendo abocanhado uma área de mais de 1,2 mil hectares. A Banesa, empresa nacional especializada em bananas, vinha em segundo lugar, com 356 hectares.
A invasão não se deu por parte só das empresas, mas também por membros da elite local, como Luiz Prata Girão, ex-deputado federal e fundador da Betânia, que se intitula “a maior empresa de lácteos do Nordeste”, invasor de 148 hectares.
De acordo com o DNOCS, os invasores não apenas usavam as áreas para produção própria como arrendavam lotes para terceiros. O mercado paralelo de terras foi criado às custas da expulsão de 81% dos 316 agricultores que conseguiram lotes nas duas primeiras fases de implantação do projeto.
A injustiça mobilizou parte das famílias expulsas a criarem a Associação dos Ex-irrigantes do Perímetro Jaguaribe-Apodi (Aija). A partir das denúncias da associação, a licitação da terceira fase do projeto, que estava sendo preparada pelo DNOCS, foi embargada em 2008. A Justiça Federal também decidiu que mil hectares do perímetro deveriam ser reservados para pequenos agricultores. Como retaliação, o líder da associação – Zé Maria do Tomé – foi assassinado com 19 tiros numa emboscada em 2010.
João Teixeira Júnior, então dono da Frutacor – uma das empresas invasoras do perímetro –, e José Aldair Gomes Costa, gerente da companhia, foram denunciados pelo Ministério Público como mandantes do crime. O Tribunal de Justiça decidiu que não havia indícios suficientes contra eles. O único denunciado é Francisco Marcos Lima Barros, morador da comunidade de Tomé que teria dado suporte ao assassino, um pistoleiro morto pouco depois. Treze anos após o crime, ele ainda não foi julgado.
A inação do Estado não se limitou à punição do assassinato. Até hoje os empresários invasores continuam no perímetro.
Hoje, o acampamento abriga cerca de 70 famílias – a maior parte delas sobrevivendo da monocultura da banana. A situação da ocupação, no entanto, está longe de ser confortável. O DNOCS reclama a área na Justiça e várias ordens de reintegração de posse já foram dadas – a última delas pelo Superior Tribunal de Justiça, em 2021.
Com a pandemia, porém, o Supremo Tribunal Federal decidiu suspender os despejos e as desocupações – o que garantiu a sobrevida do acampamento do MST. No final do ano passado, o plenário da corte aprovou um regime de transição para cumprimento de ordens de despejo. Ficou decidido que nenhum despejo pode acontecer sem que as comunidades afetadas saibam e sejam ouvidas – uma diferença significativa num país em que esse tipo de ação normalmente acontece logo ao raiar do dia, e com muita truculência policial.
Juridicamente, o que segura o acampamento Zé Maria Tomé são as exigências do regime de transição do STF. No plano político, porém, a esperança é de que o terceiro governo Lula encontre uma solução. Questionado, o DNOCS afirmou que “até o momento não houve tempo hábil para discutir sobre a situação com o atual governo”.
A história se repete como farsa
Apodi fica a 70 quilômetros do acampamento. Por lá, além de todos esses exemplos negativos do passado, os agricultores olham para um futuro absolutamente incerto, com a possível privatização do Perímetro Irrigado Santa Cruz de Apodi.
Para entender o que isso pode significar, basta olhar para Baixio do Irecê, na Bahia – maior projeto de irrigação da América Latina e abre-alas desse modelo de concessões ao setor privado. O leilão aconteceu em junho de 2022.
O BRLT 210 Fundos de Investimento em Participações Multiestratégia e Investimento no Exterior, da BRL Trust Investimentos, arrematou metade dos 105 mil hectares do perímetro por R$ 83,1 milhões.
Detalhe: segundo a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) – órgão público responsável pelo projeto –, o governo federal já investiu R$ 1 bilhão em Baixio do Irecê.
A assinatura do contrato, obtido pelo Joio por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), não se deu com o fundo, mas com uma empresa chamada Equipav Agropecuária e Irrigação.
A Equipav Agropecuária e Irrigação foi criada no dia 15 de setembro de 2022, um dia antes da assinatura do contrato com a Codevasf, e é ligada ao Grupo Equipav. O grupo atua no setor de infraestrutura e tem em seu portfólio a Aegea, companhia privada de saneamento básico que, por sua vez – e a ciranda já acaba –, tem entre os acionistas a International Finance Corporation (IFC), instituição vinculada ao Banco Mundial que, no Brasil, desenhou a modelagem de privatizações dos projetos públicos de irrigação.
A Codevasf não explicou por que a BRLT foi anunciada como vencedora, mas o contrato acabou assinado com a Equipav. De acordo com a estatal, a empresa tem de fazer investimentos diretos ao longo dos 35 anos da concessão, que não poderá ser prorrogada. Caberá à Codevasf fiscalizar isso.
Em contrapartida, o perímetro vira um negócio em si. A Equipav Agropecuária e Irrigação pode fatiar a área que lhe cabe, e arrendar para outras empresas. É ela quem define desde que tipo de culturas serão desenvolvidas até o tamanho dos lotes. Não existe nenhuma exigência de que parte da área fique com pequenos agricultores.
Para o pesquisador Diego Gadelha, se historicamente houve injustiças na distribuição dos lotes feita por órgãos públicos, como Codevasf e DNOCS, daqui pra frente serão as concessionárias que darão as cartas. “A lógica de uso da terra e da água será calibrada pela rentabilidade do capital, sem nenhuma consideração ambiental, social ou sobre projeto de nação. Os perímetros irrigados vão entrar na era da comoditização completa.”
Embora o governo Bolsonaro tenha sido responsável por tirar do papel, a privatização de Baixio do Irecê segue um plano traçado ainda no segundo governo Lula. A concessão integral do perímetro para exploração por empresas foi definida em 2011, primeiro ano de Dilma, pelo Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional (MIDR), a Casa Civil e o Banco Mundial.
Por tudo isso, as chances de que o novo governo breque o processo de privatização dos perímetros são remotas.
O Joio questionou o Ministério da Integração sobre as intenções de prosseguir com o plano de concessão iniciado no governo Bolsonaro. A pasta desconversou, respondendo que tal decisão cabe ao Conselho do Programa de Parcerias de Investimento, do qual faz parte junto com outros ministérios e a Presidência da República.
Já a Casa Civil – atualmente responsável pelo PPI – não respondeu a nenhum dos questionamentos da reportagem, deixando no escuro as intenções do governo Lula 3 em relação às privatizações.
Em julho do ano passado, um mês depois do leilão de Baixio do Irecê, o governo Bolsonaro abriu chamadas públicas para medir o interesse do setor privado na concessão de outros cinco projetos públicos de irrigação, dentre eles Apodi.
Segundo o MIDR, um consórcio liderado pela empresa Engeconsult Consultores Técnicos LTDA. está elaborando um estudo de viabilidade técnica, econômica e ambiental para a concessão. A data de entrega era 3 de abril, mas foi prorrogada para 2 de outubro, a pedido do ministério.
De acordo com o DNOCS, “em caso de realização de leilão para iniciativa privada, o projeto deverá ser concluído com recursos do vencedor do leilão”. É bom lembrar que, nos cálculos do órgão federal, faltam quase R$ 400 milhões para concluir o perímetro.
Diante das movimentações do governo federal, os agricultores tentam se rearticular para defender o território da Chapada do Apodi contra o “Projeto da Morte”.
“Nós sabíamos que o perímetro não era modelo pra agricultura familiar porque já conhecíamos os perímetros do Ceará e o contexto do polo Petrolina-Juazeiro. Com a promessa de levar água para as comunidades, era uma forma de atrair as grandes empresas”, explica Antonio Nilton, que atua pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) na região desde 1993. “E agora [o governo] vai entregar diretamente o perímetro para empresas privadas”, lamenta.
Depois de uma manhã de muitos debates em torno do megaprojeto, é hora do almoço em Apodi. Tudo do cardápio é fruto direto do trabalho dos agricultores: o famoso arroz vermelho da região, o cuscuz – que não pode faltar – e a galinha caipira. O auditório do sindicato vira um refeitório e, ao som de Alceu Valença, todos tentam respirar um pouco, pois é preciso muito fôlego para enfrentar tudo o que vem pela frente.