Dióxido de titânio não é mais considerado seguro pela agência regulatória europeia, mas continua autorizado em quase 40 categorias de alimentos no Brasil
Proibido pela União Europeia desde 2021, o dióxido de titânio vai continuar presente na alimentação dos brasileiros, pelo menos até a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) se mexer. O aditivo é um pó branco, usado como corante pela indústria de ultraprocessados há décadas. É o que explica a possibilidade de algo feito a partir de derivados do petróleo, como um chiclete, ser super branco.
Mas, além de ser capaz de mudar a cor dos alimentos, o dióxido de titânio tem o potencial de alterar outras coisas, como o nosso material genético. Estudos mostraram que as partículas do aditivo poderiam induzir quebras nas fitas do DNA e outros danos nos cromossomos. Também podem se acumular no organismo – foram encontradas no fígado, baço, rim e tecidos intestinais em cadáveres. E essas partículas podem ainda desregular o sistema imunológico, afetar testículos e espermatozóides, bem como atravessar a placenta e serem transferidas ao feto.
Foram esses estudos, realizados nos últimos 15 anos, que levantaram preocupações quanto ao uso do aditivo, motivando proibições na União Europeia. Por aqui, a Anvisa já tinha reconhecido, há 2 anos, que “há evidências que indicam a pertinência da adoção de medidas restritivas quanto ao uso de dióxido de titânio em alimentos”. A reavaliação do aditivo chegou a entrar na agenda da agência e estava prevista para acontecer até o fim de 2023 – mas a Anvisa decidiu adiar a discussão, sem data para retomar. O adiamento foi informado pela assessoria em junho, por meio de nota, após questionamento de O Joio e O Trigo. A assessoria também informou que após a decisão da União Europeia “a Anvisa adotou o posicionamento de não conceder mais aprovações de uso desse aditivo para novas categorias de alimentos”.
O dióxido de titânio tem dois átomos de oxigênio e um átomo do metal titânio. Além de alterar a cor dos produtos, a substância também é capaz de deixar uma mistura mais ou menos turva, impedindo que um suco em pó, por exemplo, fique totalmente transparente. A Anvisa autoriza seu uso em 37 categorias de alimentos: chicletes, balas, sucos em pó, bebidas não alcoólicas em geral, cereais matinais, margarinas, molhos, queijos, requeijão, sopas, caldos, preparações prontas, produtos de panificação e confeitaria, entre outros. Ele está disponível para qualquer um e por um preço bem baixo: no site Mercado Livre, por exemplo, um quilo do aditivo sai por cerca de R$ 40.
Outra facilidade para a indústria brasileira é que, aqui, o dióxido de titânio pode ser usado sem limites. Ou seja, as empresas podem usar qualquer quantidade nos seus produtos – e nós, consumidores, nunca saberemos quanto foi, porque é um segredo industrial e não há informação a respeito nos rótulos.
Essa autorização de uso ilimitado no Brasil tem uma razão de ser. Ela segue a última avaliação toxicológica da substância, feita há mais de 50 anos atrás, pelo Comitê Conjunto de Especialistas em Aditivos Alimentares da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) – JECFA, pela sigla em inglês.
Na época, foram avaliados estudos com ratos, coelhos, porquinhos da índia, gatos e cachorros. A conclusão foi de que não seria necessário estabelecer um valor de ingestão diária aceitável (IDA) do dióxido de titânio, porque os estudos mostravam que ele não se acumulava no organismo e que não foram observados efeitos tóxicos após a absorção de de íons de titânio. Assim, alguns países, como o Brasil, liberaram o uso ilimitado, enquanto outros estabeleceram quantidades determinadas.
Com o tempo, novos estudos surgiram, como mencionamos acima, e colocaram em dúvida essa conclusão, o que levou à revisão do uso do aditivo na Europa. Em 2019, a França publicou um decreto suspendendo a circulação de alimentos contendo dióxido de titânio no país por um ano, considerando o princípio da precaução. Ou seja, se há dúvidas sobre a segurança da substância, é melhor prevenir do que remediar. Depois, um novo decreto estendeu a suspensão por mais um ano.
Em 2021, a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA, pela sigla em inglês) fez uma nova avaliação de risco do uso de dióxido de titânio como aditivo alimentar e concluiu que ele não poderia mais ser considerado seguro, em nenhuma quantidade, especialmente devido ao seu potencial genotóxico, isto é, seu potencial de causar danos ao DNA. Após a publicação da EFSA, a União Europeia decidiu proibir o uso do aditivo. A repercussão do caso levou o comitê de especialistas em aditivos da ONU, o JECFA, a anunciar, no final do ano passado, que também fará uma reavaliação do aditivo, mas o processo ainda não foi concluído.
A experiência francesa inspirou ativistas brasileiros. Ainda em 2021, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) enviou uma carta à Anvisa, pedindo a proibição do aditivo no Brasil. A resposta, reconhecendo a necessidade da adoção de medidas restritivas, veio por meio de uma nota técnica, que não está disponível no site oficial da Anvisa, mas foi obtida pelo Joio.
Cerca de duas semanas após a resposta, em agosto de 2021, a Anvisa fez uma reunião para discutir o assunto. De acordo com a assessoria da agência, participaram representantes da indústria, consumidores e comunidade científica. No entanto, o Joio não encontrou nenhum representante da sociedade civil que tenha participado do encontro. De acordo com a coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, Laís Amaral, a entidade foi convidada para a reunião, mas não pôde participar, pois o convite não foi feito com antecedência e não houve tempo hábil para viabilizar a participação.
Solicitamos à Anvisa a ata e lista de presença da reunião, mas a agência não as forneceu. Disse apenas que a reunião tinha “o propósito de obter informações sobre a essencialidade de uso do corante em cada categoria de alimentos, existência ou não de substituto, eventual necessidade de prazos diferenciados”. A agência afirmou ainda que, na ocasião, “foi sugerido pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA) que fosse construído um instrumento de coleta de informações junto aos fabricantes de alimentos, visando apoiar a Anvisa na avaliação dos impactos e definição de eventuais medidas de restrição”. Ainda de acordo com a assessoria, essas informações foram recebidas pela agência, mas ainda não tiveram sua análise concluída, porque a reavaliação da autorização de uso do aditivo foi adiada.
“Considerando as opiniões científicas conflitantes, que o dióxido de titânio tem sido usado como aditivo alimentar há décadas sem indícios de risco à saúde humana, e a perspectiva de avaliação do JECFA [entidade da ONU], a Anvisa entendeu ser pertinente o adiamento para o início da discussão regulatória no Brasil e no Mercosul”, informou a agência, via assessoria, em junho deste ano. As “opiniões científicas conflitantes” mencionadas pela agência fazem referência às posições divergentes à EFSA, apresentadas no ano passado, pela agência de saúde canadense e o Comitê de Toxicidade de Substâncias Químicas em Alimentos, Produtos de Consumo e Meio Ambiente do Reino Unido.
Na visão de Amaral, “quanto mais tempo a gente demora para decidir sobre esse tema, mais em risco a gente coloca o consumidor”.
Além do Idec, a organização brasileira Põe no Rótulo, formada inicialmente por mães de crianças com alergias alimentares, também acompanhou a discussão. Em uma consulta pública sobre aditivos para misturas lácteas, que aconteceu no ano passado, o Põe no Rótulo também pediu o banimento do dióxido de titânio, em todas as categorias de alimentos.
“Se tivesse deixado de agir ou meramente indicado a necessidade de algum alerta nos rótulos acerca do risco no consumo do aditivo, a agência francesa não teria alcançado a finalidade de proteção da saúde da população da França, potencialmente exposta ao consumo de substância danosa. Eventual inação implicaria em (ainda mais) custo para o sistema de saúde francês e prejuízo aos cidadãos franceses, o que confirma a proporcionalidade da medida acautelatória adotada pela França, cuja pertinência restou confirmada pelo posicionamento da EFSA. Trata-se, portanto, de exemplo de estratégia que deve servir de inspiração para a Anvisa”, defendeu o Põe no Rótulo.
A legislação brasileira define que os aditivos alimentares estão sujeitos a revisão periódica, “podendo o seu emprego ser proibido desde que nova concepção científica ou tecnológica modifique convicção anterior quanto a sua inocuidade” – e é competência da Anvisa “normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde”.
* Errata: Esta reportagem foi alterada às 11h de 27 de julho de 2023. Dois produtos foram excluídos da ilustração presente no topo da página. São eles: cereal matinal Nescau e margarina Doriana. Os dois produtos não contêm o aditivo alimentar dióxido de titânio.
** Nota da redação: Após a publicação da reportagem, a Anvisa procurou o Joio para reforçar que a agência adotou o posicionamento de não conceder mais aprovações de uso do aditivo em novas categorias de alimentos e que outros órgãos, do Canadá e Reino Unido, manifestaram posições divergentes à da EFSA. Por isso a reportagem foi atualizada, às 12h10 de 1 de agosto de 2023.