Espremidas entre fazendas, atingidas por agrotóxicos e em área com alto índice de grilagem, famílias do Oeste da Bahia cobram visita do presidente, que foi a evento do agro para dizer que não pode haver “preconceito” entre grandes e pequenos agricultores
Faz um sol forte e a temperatura está acima de 30 graus. Uma moça para na frente de um trator verde e amarelo e sorri, enquanto sua amiga a fotografa. Depois, ela sobe no veículo e posa, como se estivesse dirigindo a máquina. A cena se repete outras vezes, com outros personagens. O figurino das pessoas é quase o mesmo: bota, jeans, cinto, chapéu (e cílios postiços para as mulheres). Estamos na Bahia Farm Show, em Luís Eduardo Magalhães, no oeste da Bahia.
Tudo na feira é superlativo: há caminhões e colheitadeiras enormes, tratores cujas rodas são maiores que um adulto; máquinas que podem ser pilotadas digitalmente, drones para monitorar a lavoura, test drive de caminhonetes e máquinas para pulverização aérea de agrotóxicos.
Bandeiras do Brasil tremulam e frases como “Somos agro”, “Orgulho de ser agro”, “Sou agro vencedor”, “Forte como o agro” estão espalhadas por toda a área da exposição, que é considerada a “maior feira do tipo do Norte/Nordeste”, e a segunda maior do Brasil, ficando atrás apenas da Agrishow, que é realizada em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
De acordo com a Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba), 100 mil pessoas visitaram o evento e as vendas durante a feira movimentaram R$ 8,2 bilhões.
Três dias antes de nossa visita, em 6 de junho, quem pisou o local foi Lula. O presidente esteve na abertura do evento dos grandes produtores de soja, milho e algodão da Bahia. Na ocasião, ele disse que não pode haver rivalidade entre o agro e a pequena agricultura: “Outra polêmica que eu acho maluca é o pequeno proprietário e o agronegócio. São duas coisas totalmente necessárias para o país. Não há por que o preconceito do grande contra o pequeno ou do pequeno contra o grande.”
Na versão 3.0 do lulismo, a conciliação segue a ditar o tom: “O Brasil precisa dos dois. Porque os dois ajudam o Brasil. Então, pelo amor de deus, é preciso parar de construir rivalidade onde ela não existe. A gente não pode dar corda para o discurso ignorante. Por que eu poderia ser contra um produtor rural que quer terra para trabalhar? Por que eu poderia ser contra um grande produtor que está produzindo e vendendo sua soja ou fazendo o Brasil voltar a plantar algodão, coisa que o Brasil tinha deixado de plantar?”
Cercados, sem lavoura e com banho de veneno
Perto dali, deram de construir rivalidade onde ela existe. A 93 quilômetros de Luís Eduardo Magalhães, no distrito de Roda Velha, município de São Desidério, vivem pequenos produtores rurais que “não deveriam ter preconceito com os grandes”. Eles não tiveram a mesma sorte dos fazendeiros recorrentemente acusados de grilagem: lá, embora quisessem, não receberam a visita do presidente.
Sentada em uma cadeira roxa na varanda de sua casa, cabelos brancos presos em um coque, dona Alzira Barbosa dos Santos Silva, de 73 anos, conta que mora desde criança na região. Mãe de 11 filhos, “deus levou um, ficaram 10”, ela comenta a visita de Lula à região. “Ele veio aí em Luís Eduardo, mas seria bom vir aqui em Roda Velha ver o que tá acontecendo com a gente”, reclama.
Ela conta que, com a chegada das fazendas na região, nos últimos anos, os moradores foram aos poucos sendo cercados. “Antigamente a gente tinha liberdade pra andar, pegar uma estradinha e sair na BR, ia pra onde quisesse. Agora, não pode mais. As fazendas fecharam tudo”, lamenta.
E se antes “plantavam de tudo”, como mandioca, arroz, feijão, hoje “não dá mais nada. Acho que é pelos trem que eles passam na roça, o veneno, essas coisas”, explica. Claro, sem poder plantar, a alimentação dos moradores piorou e eles passaram a ter que “comer comida de mercado”.
Além de estarem rodeados por lavouras, os moradores de Roda Velha tomam banho de veneno: os agrotóxicos são aplicados por pulverização aérea. “O avião passa aqui bem por cima das casas e o vento traz aquele cheiro que faz mal pra gente. Tem noites que nem consigo dormir”, conta Jacira Barbosa da Silva, 43 anos, uma das filhas de dona Alzira. Na “época do veneno”, conta, as crianças adoecem, o rio fica sujo. “Quando a gente vai tomar banho no rio, fica tudo cheio de caroço na pele”, diz.
Enquanto Lula discursava na abertura da feira, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgava os dados atualizados de desmatamento. Uma coincidência sombria para a visita do presidente à região que concentra cinco dos seis municípios que lideram a derrubada em 2023. No jargão do presidente, talvez seja preconceito imaginar qualquer associação entre os fazendeiros agraciados pelo discurso e o caminhar da devastação.
O Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática informou um aumento de 35% de perda de vegetação no Cerrado, entre janeiro e maio de 2023, na comparação com o mesmo período de 2022.
Menos coincidência, e mais plano de negócios, a grilagem por parte dos maiores fazendeiros e empresas da região é algo conhecido – e certamente Lula sabe não se tratar de preconceito. Poucos dias antes da visita à Bahia Farm Show, a Justiça estadual bloqueou 19 propriedades suspeitas de avançar sobre uma comunidade tradicional a poucos quilômetros ao sul de Luis Eduardo Magalhães. Poucos quilômetros acima, são 340 mil hectares investigados por grilagem – cinco vezes e meia a área de Salvador.
A essa altura, dona Jurailde da Silva Gonçalves já estaria sentada à espera da chuva do caju, mas a chuva deu de não chegar. “Antes, a primeira chuva vinha quando o caju abria flor. Agora, só chega quando o caju até acabou.” Era em agosto que a seca começava a findar no oeste da Bahia, mas, de uns anos pra cá, com sorte é em outubro que vêm as águas.
“A gente era liberto. Ih, a gente era liberto de tudo. De tudo.” Ao lado de dona Jurailde, seu Valdemiro Gonçalves da Silva estica os braços, como se pudesse alcançar um segundo da liberdade que se foi. Os dois não fizeram nada de errado, mas estão presos. A prisão não é de cadeia nem de cela, mas de fazenda e de cerca.
Do alto do satélite, o povoado de Roda Velha é uma tripa de terra espremida entre latifúndios de soja, milho e algodão. Do chão, é uma estradinha de quem sente saudade das Gerais e dos parentes que perderam a vida entre motos, carros e caminhões que fazem girar a engrenagem do agro – um dia depois de nossa visita, faria um ano da morte do filho do casal, por sua vez separado da morte do irmão, também em acidente de carro, por um ano e quatro meses. Atualmente, é o filho do meio transformado em caçula quem deixa a mãe de coração apertado e olhos abertos todas as noites, quando sai para trabalhar em uma das fazendas que inviabilizam a vida em Roda Velha.
“A gente gostava de sair pra pescar no rio. Dormia debaixo da lua, perto do rio, e no outro dia pescava”, conta Jurailde. Mas, a cada novo grileiro, era uma cerca que se erguia, inviabilizando as longas expedições pelas beiradas. Valdemiro, a cada punhado de palavras, evoca a poluição como desalento. “Hoje a água está suja. E é pouca. Você precisava de ver esse rio naquela época. Agora já nem tem peixe, de tanto veneno.” O rio está a poucos metros de casa, mas já não tem serventia. Sem a chuva previsível, o feijão e o milho deixaram de valer a pena. E a fome passou a assombrar.
A cada tanto, o filho do meio – aquele convertido em caçula – tenta livrar mãe e pai do aperreio. Sem poder passar por dentro das fazendas, ele entra no carro e dá longas voltas até chegar a um último trecho onde é possível pernoitar. É debaixo das estrelas que o casal parece brincar de teatro da liberdade do passado e dormir com os anjos de um jeito que nunca conseguem.