Demanda internacional pelo fruto dificulta acesso da população local e coloca pesquisadores em alerta para a biodiversidade da floresta
A safra do açaí acontece entre junho e dezembro. Historicamente extrativista, o alimento já foi conhecido como pão dos pobres, mas seu atual modo de produção e altos preços têm modificado o consumo na região amazônica, bem como no Brasil e no mundo. Transformado em matéria-prima para sorvetes, sobremesas e produtos de linha fit, o fruto vem reproduzindo padrões de outros alimentos que hoje são considerados commodity, mesmo que a cadeia de produção ainda seja muito permeada pelas comunidades ribeirinhas locais.
“Esse açaí, que não é o açaí que faz parte da cultura alimentar paraense, é comercializado com roupa de sustentável, de superalimento, de defensor da Amazônia, de que sai das comunidades, de que a Amazônia está em pé. E aí? E assim ele vai se tornando uma commodity”, disse Tainá Marajoara, que é descendente do povo indígena Aruã, do Marajó, e atua como pesquisadora, cozinheira e ativista pela preservação das culturas alimentares.
Chegamos em Belém do Pará em dezembro de 2022, já era o final da safra e o começo do período de chuvas intensas. A ideia era percorrer os caminhos pelos quais o fruto passa para a gravação do “Açaí, um fruto viajante”, segundo episódio da 6ª temporada do Prato Cheio. Paramos para almoçar e conversar com Tainá no Iacitatá Amazônia Viva, ponto de cultura alimentar que ela fundou na capital paraense.
Segundo Tainá, assim como a soja e os produtos transgênicos em geral, em vez de gerar maior distribuição de renda e maior qualidade de vida, a ascensão do produto no mercado vem gerando devastação, utilização de agrotóxicos, empobrecimento da população e uma situação de insegurança alimentar. “Quando o açaí deixa de ir para a mesa das famílias e passa a ser comercializado para fora, essas famílias ficam reféns das indústrias de alimentos e dos seus mercadinhos, com os ultraprocessados que se estabelecem nas comunidades ou que passam nas suas beiradas”, disse.
O açaí é uma comida histórica de povos originários e tradicionais pelo seu valor nutricional e alta disponibilidade para as comunidades amazônicas. É também um símbolo da cultura paraense e inspirou a música de Nilson Chaves e João Gomes, Sabor Marajoara, uma espécie de hino local. As palmeiras do açaí, os açaizeiros, são encontradas com frequência em solo de várzea e aproveitam todos os nutrientes que descem com as águas dos rios, conta Tainá.
Atualmente, além da contaminação fluvial que decorre, principalmente, das atividades da mineração na região, outro fenômeno preocupa: a açaização. Um estudo publicado no periódico Biological Conservance, que analisou áreas no estuário do rio Amazonas no Pará, mostrou uma mudança estrutural na floresta por consequência do manejo do fruto. Em regiões onde há intenso manejo, com 600 touceiras de açaí, as funções e os serviços que as espécies desempenham na floresta caíram pela metade. Isso se traduz no empobrecimento do solo e diminuição da biodiversidade, colocando em risco árvores emblemáticas da Amazônia, como a sumaúma e a embaúba.
A pesquisa, que tem como principal autor o biólogo Madson Freitas, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), coloca em xeque o discurso comum de que o açaí e outros produtos de base extrativista sejam sinônimos de sustentabilidade. Em outra matéria de O Joio e O Trigo, a gente já tinha mostrado como o agronegócio vem se apropriando do conceito de bioeconomia a fim de alavancar seus negócios, valendo-se do discurso socioambiental.
Com a descoberta do açaí pelo restante do país e do mundo, o consumo vem aumentando exponencialmente. As exportações de açaí paraense tiveram um aumento de quase 15.000% nas vendas internacionais entre 2011 e 2020, segundo a Associação Brasileira dos Produtores e Exportadores de Frutas e Derivados (Abrafrutas), a partir de dados da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca (SEDAP). Com a alta demanda, a área plantada passou de 77,6 mil hectares para 188 mil hectares entre 2010 e 2019, o que demonstra o perigo da criação de monoculturas de açaí em regiões de floresta.
A Abrafrutas ainda chama a atenção para os impactos no consumo local de açaí, que fizeram com que os chamados “batedores”, profissionais que processam o alimento em pequenos empreendimentos, se manifestassem publicamente contra a escassez e a alta nos preços do fruto. Foi também o que ouvimos de diversas pessoas no Mercado Ver-o-Peso, em Belém: muitas consomem o fruto em todas as refeições, mas estão diminuindo a quantidade devido ao preço.
“Se esse consumo fosse algo de fato sustentável, não teria um milionário e 50 famílias em situação de pobreza”, disse Tainá Marajoara. Segundo ela, é preciso que as pessoas se conscientizem sobre a Amazônia e a superexploração de um único produto. “Então o que tem que ser feito é cada vez mais o consumidor se perguntar: Por que é que eu quero comer açaí da Amazônia e não estou tomando a juçara daqui dos caiçaras?”.
No ano passado, produzimos um episódio de podcast sobre a palmeira juçara, que dá o palmito e um fruto similar ao açaí. No episódio “Juçara, um símbolo de resistência“, falamos sobre o simbolismo da juçara para a Mata Atlântica e seus habitantes.
Caminhos do açaí
O episódio “Açaí, um fruto viajante“, da nossa 6ª temporada, passa por pontos de venda, fábricas, centros urbanos e estaciona numa comunidade extrativista na região do Marajó, no Pará. No município de Curralinho, ficamos na casa da família de Letícia Moraes, cria da comunidade Nossa Senhora da Boa Esperança e secretária da Juventude no Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).
Situada na beira do rio, a casa de Letícia tem seu próprio porto, assim como as vizinhas. É dessa estrutura que sai o barco da família rumo aos igarapés, os braços dos rios que dão acesso à floresta, onde será coletado o açaí. Dali também sai o fruto, depois do processo de debulha, pelas mãos do atravessador local – responsável por vender as cestas de 14 quilos para um atravessador secundário, conhecido como “macapaense”, que vai levar o produto para fora da região.
“Esse açaí que sai para os macapaenses não é contabilizado como renda para o município. Não vai só para Macapá, mas vai também para Abaetetuba, Barcarena, Igarapé-Miri, que são os locais que têm fábrica de produção. E tudo isso vai praticamente para fora”, conta Letícia, sobre o problema da informalidade na cadeia produtiva do açaí.
Além de não contabilizar renda para o município, a informalidade tem uma série de outros problemas. Segundo o estudo “O peconheiro” – Diagnóstico das condições de trabalho do extrativista de açaí, realizado na região de Curralinho, 9 em cada 10 entrevistados disseram que já tiveram alguém da família ou meeiro, contratado por porcentagem da colheita, acidentado no trabalho de seu açaizal.
A pesquisa também mostra que há alto índice de evasão escolar durante a safra. Na viagem, encontramos até um professor de uma escola pública de Curralinho que abandonou o cargo para trabalhar no mercado do açaí. Como professor, ele recebia um salário de R$ 1.420, por uma jornada de 44h semanais. Já com a venda do fruto, ele recebe mais de R$ 5 mil por mês. Em 2021, Curralinho obteve nota média de 2,7 no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), abaixo da média nacional.
Para saber mais sobre os processos de apanhação (colheita) e sobre as dinâmicas com os atravessadores, bem como detalhes da compra e venda local e internacional, escute o episódio da temporada Caminhos, disponível em todos os tocadores. Baixe também o Mapa do Açaí, publicado na seção Mesa Cheia, no site do Joio.
Compra e venda
A Feira do Açaí é um importante entreposto comercial que acontece durante todas as madrugadas no complexo do Ver-o-Peso na capital paraense. Para quem chega desavisado, é impressionante a quantidade de estímulos e atividades: as negociações acontecem ao som do brega tocando no boteco, onde além de envolvidos com o mercado do açaí, há também prostitutas e usuários de drogas. Um samba hypado também acontece por ali em dias específicos.
Já no chão de pedra, há uma hierarquia bem demarcada entre os trabalhadores em suas variadas categorias, desde os responsáveis pelo barco, passando pelos carregadores, até os vendedores. E há também uma mulher, a Maria, que fica agachada enchendo cestas com todo o açaí que cai no chão. Tem dias que ela consegue vender sete cestas, por 30 reais cada.
A origem dos paneiros, que comportam 14kg de fruto, muitas vezes é desconhecida. Os vendedores da feira resumem a poucos nomes as regiões de produção, o que não condiz com a quantidade de comunidades extrativistas. A informalidade relatada anteriormente por Letícia, do Marajó, resulta nessa perda de informações pelo caminho. Todo esse açaí, que vem de diversas diversas comunidades do Pará, chega misturado ali naquele chão de pedra do Ver-o-Peso, onde é vendido.
Os preços variam a cada dia e durante a madrugada também. É como um pregão, influenciado por variáveis como chuva, procura, oferta, qualidade do produto. “Aqui é melhor do que uma bolsa de valores. Você não consegue fazer previsão na feira porque não sabe o que vem, depende da quantidade”, disse um dos vendedores ali, Esmeraldo Miranda Freitas, conhecido como Papito.
Depois de passar a madrugada na feira, ele vai para seu ponto de venda. “Também sou batedor”, disse, contando que seus preços, naquele dia, eram de R$ 18, R$ 24 e R$ 30 para o açaí do tipo “popular”, “médio” e “grosso”, respectivamente. As classificações do produto variam de acordo com a proporção de água adicionada ao fruto. Por telefone, três meses depois da nossa viagem ao Pará, Esmeraldo informou que o açaí subiu R$ 6, passando para R$ 24, R$ 30 e R$ 36. E um paneiro na feira da madrugada chegou a R$ 120.
Questionado sobre uma possível diferença entre os consumidores de seus produtos, ele foi enfático: “Tem, tem diferença de classe, com certeza. Tem pessoas que gostam de comprar meio, pede água de açaí. A quantidade maior vendida é a de R$ 18 [o popular]”. Com o boom do açaí, além do fino ou popular, do médio ou regular, do grosso ou especial, há também uma categoria chamada papa, que é mais concentrada e tem se tornado cada vez mais cara. E tem ainda a tal água de açaí, mencionada por Esmeraldo, que tem sido a alternativa mais acessível e cujo nome dispensa explicações.
Houve um tempo em que a noite terminava, e as cestas continuavam ali. Os vendedores jogavam, então, no rio, o que sobrava. Hoje, o preço mudou tanto e o açaí ficou tão valorizado, que nada é desperdiçado e tudo vale dinheiro. O mercado está totalmente aquecido. E por mais que o pessoal compre água de açaí, como chamou seu Esmeraldo, pode subir o preço que a venda é garantida. Foi o que nos contou um comprador, que se identificou apenas como Antônio. Ele tem 70 anos e toma açaí desde que era bebê. “Aqui nós temos o povo viciado [em açaí], é uma droga. Essa droga daqui vicia mas ela é boa”, disse.
Da feira, sai açaí para diferentes destinos. Tem batedor que vai triturar e vender em litro, representantes de restaurantes e fábricas, gente que compra para revender em outras cidades e proprietários de pontos no mercado municipal, o Ver-o-peso, que servem o tradicional peixe com açaí no almoço.
Ao longo da madrugada, os preços vão baixando. No começo, há quem diga que é só carrão estacionado. “O melhor açaí é o vendido logo na madrugada e, se você ficar até de manhã, vai ver que é outra classe de gente, outro batedor, aqueles que batem lá para dentro da terra firme, lá longe, então vai vender açaí barato e tem que comprar barato”, contou Esmeraldo.
Quando, ainda assim, sobra açaí no final da feira, aquele de pior qualidade e melhor preço, os vendedores já têm contatos na manga para acionar ao amanhecer: as fábricas. Pouco tempo depois das ligações, caminhões buscam as sacas restantes e levam para unidades de processamento.
Uma das grandes empresas da região é a Petruz. Segundo o site, a empresa começou há 30 anos, fundada por uma família de migrantes nordestinos em busca de oportunidades na região Norte. De lá para cá, se tornaram um polo industrial e uma grande exportadora de açaí – principalmente para os Estados Unidos, seu maior comprador.
“Se a gente for falar da porcentagem da venda anual para os Estados Unidos, é mais ou menos de 50% a 60%, ou 1,8 milhão de quilos de açaí”, disse o gerente internacional do grupo, Martin Chavez. “O grosso da venda é açaí como ingrediente, em tambores de 80 quilos, que servem para fazer produtos verticalizados como sorvete de açaí, sorbet, paleta, bolo, suco, sabores, bebida.”
Apesar do fruto ser nativo do Brasil e a demanda interna ser alta, pouca gente no país já provou o açaí fresco. A maioria dos brasileiros consome produtos ultraprocessados que têm apenas uma pequena porcentagem de açaí em sua composição. São produzidos por diversas indústrias, espalhadas pelo país, e vendidos aos montes em supermercados, sorveterias, bares e até como comida de rua. “[O mercado interno] é bastante competitivo, o preço é apertado e a margem não é muito grande”, disse Martin, que garante que o brasileiro compra mais polpa e faz sua própria mistura na tigela.
Empreendedorismo de açaí
Vender açaí no Brasil virou nicho do empreendedorismo. No YouTube e em qualquer rede social é possível encontrar vários vídeos de pessoas ensinando como ganhar dinheiro com açaí. Tem gente usando polpa de 8% de açaí, que compra a R$ 10 o quilo, e mistura com outras coisas pra fazer render e vender com um monte de complemento no iFood. Em uma rápida pesquisa no aplicativo, os preços de uma porção individual em São Paulo variam entre R$ 18 e R$ 30 – a gente encontrou também uma porção de 500g de açaí trufado com creme de kit kat por R$ 37,90.
Já em outros países não tem essa coisa do potão de açaí que vai virar um batidão. É um bowl, montado a partir de sachês de 100g, misturado com frutas vermelhas, as “berries”. A Oakberry é uma empresa brasileira que tem se destacado nacional e internacionalmente. Ela é um “case” do empreendedorismo do açaí. Na unidade da Austrália os preços vão de 14 a 19 dólares australianos, ou R$ 48 e R$ 65.
Em termos de qualidade do açaí, Martin conta que os Estados Unidos compram o médio, a Austrália, o popular, e a Europa, o especial (o de melhor qualidade e mais caro). O mercado internacional hoje está interessado mais nas certificações de sustentabilidade. “No mercado internacional, 99,5% é vendido orgânico. Um total de 3 milhões, quase 4 milhões de quilos”, afirmou o gerente. Ele faz um paralelo com o consumo dos brasileiros, que, segundo ele, não se importam com esse tipo de certificação. “O brasileiro diz: ‘Ah, é orgânico? Tá bom, faz o quê? Não tem nada tóxico mas o sabor muda? Não? Ah, então não precisa’, conclui.
O público brasileiro, então, não estaria interessado em rastreabilidade, em controle de agrotóxicos, em saber se há trabalho exploratório na cadeia do produto. Ou apenas não acreditam nas certificações, que não garantem 100% de confiabilidade, como revelou recentemente uma matéria do jornal americano The Washington Post. A reportagem mostra a relação da empresa Sambazon com o trabalho infantil. Então, muitos brasileiros acabam tomando aquele açaí que fica por último na Feira do Açaí, que o vendedor liga no final da feira para vender mais barato, ou até aquele açaí que cai no chão e vai parar na cesta da Maria.
Monocultura de açaí em terra firme
No final de 2019, a Embrapa lançou a BRS Pai D’Égua, uma semente de açaí criada para produzir em terra firme com irrigação e que promete mais rendimento e produtividade. Essa variedade de semente tem sido usada por grandes, médios e pequenos produtores. Durante a apuração, fomos conhecer uma dessas plantações, no município de Curuçá.
Era uma monocultura dividida em blocos. Entre as fileiras de árvores, um caminho permite a passagem de um trator, o que é impossível numa produção de açaí no meio da floresta. Mas uma coisa é igual: em cima das árvores, trabalhadores com facas na boca e no bolso da calça pulavam de um tronco para outro. Uma cena impressionante, que evidencia a falta de segurança do trabalho, como apontado no estudo citado anteriormente.
Esse mesmo material diz que a cadeia do açaí está num processo de comoditização. O que impede que isso se concretize, segundo o documento, são duas características: a produção do açaí ocorrer apenas dentro da área nativa da palmeira, e o fato do preço não ser ditado por um mercado externo ao produtor.
Segundo Dulcimar Baratinha de Moraes, pai da Letícia e um dos precursores da produção e venda de açaí na região de Curralinho, já há uma redução na procura por parte dos compradores. E como a oferta hoje é maior, inclusive pelo aumento das fazendas de açaí, os extrativistas começam a sofrer com longos intervalos entre as vendas, o que, segundo eles, pode ser também uma estratégia para forçar a queda dos preços. “Anos atrás, vinha muito barco de Breves e levava açaí para Macapá, barcos grandes. Agora já vem pouco, porque já tem uma produção para ir pra esses locais, então não precisam tanto vir para cá”.