Foto: Cícero Pedrosa Neto

Autoritarismo e guerra ecológica

Como monocultivo, veneno e violência marcam a expansão da soja no Brasil

Em setembro de 2021, o Sindicato Rural de Santarém (SIRSAN), emitiu uma nota  na qual conclama os produtores rurais das cidades de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos a se manifestarem a favor do então presidente Jair Bolsonaro no dia 7 de setembro. As três cidades estão localizadas no sudoeste do Pará, e têm visto desde o início dos anos 2000 suas paisagens, demografias, vida social, cultural e política se transformarem com a chegada da soja e disparada do desmatamento. Seguindo à letra o manual da extrema-direita, ao fazer confundir uma proposta de golpe de estado com a defesa da democracia ameaçada por forças ocultas objetivando a derrubada de Bolsonaro, a nota explicitamente conclama por uma manifestação pacífica e paralisação da produção agropecuária..

No Dia da Independência, assim como em diversas partes do país, múltiplos bloqueios aconteceram na BR-163, que cruza os três municípios, e é considerada uma das principais infraestruturas  para exportação da soja do Centro Oeste. Embora não seja possível traçar uma relação de causa e efeito direta com o sindicato patronal dos proprietários de fazendas soja do Baixo Tapajós, investigações da Polícia Federal apontam que atos golpistas país afora foram financiados e promovidos pelo agronegócio na região que concentra o desmatamento no Pará, e que compõe o chamado Arco do Desmatamento.

Neste setembro de 2021 o país então passava por um dos momentos mais tensos desde a redemocratização, quando os militares abriram mão do poder para os civis. O ápice da tensão aconteceu no próprio dia 7, quando Jair Bolsonaro, ainda em plena pandemia, discursou presencialmente para uma turba enérgica, tanto em Brasília quanto em São Paulo, além de participar por videoconferências em outras manifestações pelo país.


Quem assinou a nota foi o diretor do sindicato, Sérgio Schwade, a quem tive a oportunidade de entrevistar em 2019. Eu havia passado cerca de dez dias realizando uma longa reportagem sobre os diversos impactos de agrotóxicos (principalmente glifosato) usados na lavoura de soja da região. Devido a essa exposição diária às toxinas, que deixam um odor químico-adocicado na paisagem de campos de soja entremeados por pequenas manchas de floresta remanescentes, terminava os meus dias com uma certa náusea e leve dor de cabeça. Um pouco assustado com o desfecho que a entrevista poderia ter, avisei a minha editora do Pulitzer Center, instituição que financiou a viagem da reportagem, que estávamos ingressando no sindicato. O receio tinha motivo: nos dias anteriores, enquanto eu e o repórter fotográfico Bruno Kelly realizávamos a apuração, fomos abordados duas vezes. Uma por um carro preto sem placa e vidros escurecidos, e, no dia seguinte, tomamos “uma fina”, um quadriciclo dirigido por um membro-diretor do sindicato.

Schwade é um homem alto e corpulento. Cabelo preto espesso, sem barba. Passou uma parte significativa da entrevista desconfiado, receoso do que responder, e com frequência buscando no olhar de sua secretária um sinal de como prosseguir. Mas aos poucos foi se soltando. Tinha um jeito entre simpático e paternalista, e em alguns momentos chegou a tocar meu ombro. Defendeu longamente os seus pontos: a soja gera riqueza e empregos para a região, não produz desmatamento e os agrotóxicos, se utilizados com a dosagem correta são como remédios – e tal como os remédios, o problema seria o uso excessivo.

Em 2018 Schwade participou de uma ação coordenada por sojicultores da região para impedir que uma comitiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) realizasse uma vistoria à aldeia Açaizal, do povo Munduruku. Schwade agrediu uma indígena com um tapa, derrubando a câmera que gravava o cerco dos sojeiros. 

Me detenho na figura de Sérgio Schwade porque acredito que ele seja um caso exemplar do agrobolsonarismo, e um dos artífices da guerra ecológica da extrema direita contra a multiplicidade de formas de vida representada pela sociobiodiversidade de biomas brasileiros como a Amazônia e o Cerrado. Venho utilizando o termo guerra ecológica para descrever esta violenta forma de eliminação das complexas teias de vida que compõem e entrelaçam territórios e pessoas, através do desmatamento, garimpo, barragem de rios, monocultivos e envenenamento por agrotóxicos. O termo me ajuda também a dimensionar, no caso particular do agronegócio, este ataque contra a multiplicidade de formas de vida, em nome da padronização do plantio.

Em Santarém, como em diversas outras cidades localizadas no chamado Arco do Desmatamento, a cidade mais importante do Oeste do Pará deu a Jair Bolsonaro uma votação massiva, equivalente a 55,57% do total de votos do município. O que acontece na região de intenso desmatamento que faz com que um projeto político autoritário receba tantos mais votos do que a média nacional? Para dialogar com o geógrafo Bruno Malheiro e seu brilhante Geografias do Bolsonarismo, que formas de uso e transformação do espaço ocorrem  na região que a aproximam tanto de um projeto político autoritário? O livro, vale dizer, reflete sobre os processos espaciais (expansão do gado, da soja, de clubes de tiro, entre outros aspectos)  que são formadores da sociedade brasileira, e que dão legitimidade a uma subjetividade autoritária, canalizada pelo bolsonarismo. Nas palavras do autor, trata-se de definir o Bolsonarismo como uma “racionalidade, um conjunto de comportamentos, discursos e dispositivos, é uma maneira de ver o mundo que possui bases espaciais concretas e centros de difusão”. 

Aqui me debruço sobre a espacialidade do monocultivo da soja, e a centralidade do uso do veneno na extirpação da diferença.

Formas de plantio

Proponho uma oposição entre formas de plantio representadas pelo agronegócio, que avança sobre o Cerrado e a Amazônia, e formas indígenas e ribeirinhas de cultivo. Não sou, evidentemente, o primeiro a chamar atenção para esse contraste entre as diversas maneiras pelas quais os coletivos humanos e as plantas interagem, ensejando formas políticas distintas. 

Entre os estudos a fazerem esta relação está o do antropólogo francês Alain Testart, para quem as desigualdades sociais, de classe e de Estado se desenvolvem com mais frequência, e de maneira mais acentuada, entre populações que cultivam cereais do que aquelas que cultivam tubérculos. O argumento de Testart concentra-se na capacidade de estocagem e durabilidade dos grãos devido a sua colheita sazonal. Se não impossível, é muito mais desafiador estocar tubérculos. Ainda que a farinha de mandioca tenha uma durabilidade estendida quando comparada ao tubérculo cru ou cozido, ela perece muito antes que um grão, o que é um ponto para o argumento do antropólogo francês. 

O fato é que parece haver uma relação direta entre grãos (proponho nos centrarmos aqui no caso da soja), monocultivo, violência e concentração de poder. Para propor uma imagem, podemos pensar que a sociedade que se constrói ao redor da soja, está solapando, destruindo, a sociedade que se constrói ao redor da macaxeira. Voltemos ao Baixo Tapajós, para identificar como isso opera. 

De acordo com a plataforma Mapbiomas, em 1985 havia 2.126.828 hectares de floresta em Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos (os três municípios que compõem o Planalto Santareno). Em 2021, a cobertura florestal caiu para 1.904.258 hectares. Ou seja, uma perda de cerca de 222 mil hectares (praticamente 10% da área de floresta dos municípios). Nestes mesmos 36 anos, a soja, que inexistia na região no início da série histórica, passou a ocupar cerca de 100 mil hectares nos três municípios.

Do ponto de vista da paisagem, da mudança do uso da terra, não há muitas dúvidas de que a soja esteja tomando o lugar da floresta – apesar de diversos setores ligados ao agronegócio e os políticos que representam o setor afirmarem que não há desmatamento vinculado à produção de soja na região. Mas a sociedade que se constrói ao redor da soja toma o lugar da sociedade da mandioca em outros aspectos também, concomitantes e paralelos aos da paisagem. E um dos principais é o cultural.

Plantação de soja próxima ao município de Belterra, no Pará. Foto: Bruno Kelly

Na região do Baixo Tapajós, rodeios, cavalgadas, bares de música sertaneja, grandes churrascos e feiras agropecuárias têm tomado o lugar de formas de sociabilidade ribeirinhas e indígenas – ou pelo menos tentado, pois a resistência é também grande. Há dois exemplos gritantes. Na comunidade de Boa Esperança (Santarém), outrora o principal pólo produtor de farinha da região, enquanto a soja foi tomando conta da comunidade, transformando a sua paisagem em uma verdadeira floresta em ruínas – sem a potência e exuberância que tinha antes, mas ainda assim com resquícios persistentes – os sojeiros, majoritariamente originados do Sul, sobrepuseram a Festa Gaúcha ao Festival da Tapioca. No mesmo final de semana das festividades tradicionais da região, o agronegócio celebra o que denomina como “A Tradicional Churrascada Gaúcha”.

São formas sociais, culturais e políticas que se opõem. Em grande medida pois são formas distintas de se relacionar com as plantas, constituir territórios e formar paisagens. E aqui cabe fazer uma distinção, eventualmente um pouco grosseira e com generalizações que poderão incomodar meus colegas antropólogos, mas que acredito ainda assim valer a pena ser feita, pela imagem produzida por este contraste. Para tanto, tomo como base aqui a reflexão do arqueólogo Eduardo Neves, autor do aclamado livro Sob os tempos do equinócio – Oito mil anos de história na Amazônia Central (Edusp/Ubu Editora 2022).

Em entrevista que realizei com o autor no início de 2023, e que foi publicada na íntegra pelo InfoAmazonia, plataforma de jornalismo especializada na cobertura de conflitos socioambientais na Amazônia, o arqueólogo traça uma distinção entre agronegócio e formas indígenas e ribeirinhas de plantio. A principal diferença está centrada na ideia de controle e abertura ou fechamento para a aleatoriedade, para o imponderável. Ou seja, para Neves, enquanto populações indígenas possuem um apreço pela agrobiodiversidade, e pela aleatoriedade, com abertura para o imponderável que o plantio pode proporcionar, o agronegócio está baseado no fechamento à diferença, no controle total para barrar a proliferação de qualquer tipo outro de vida, que não aquela que foi transformada em ativo (no caso, a soja).

Vale esmiuçar esta diferença. Diversos estudos antropológicos realizados na Amazônia, com os quais eu mesmo tentei dialogar em meu doutorado centrado no Baixo Tapajós, se baseiam na ideia de que existe uma relação de co-formação, de constituição mútua entre populações indígenas e territórios. Corpos, rios, florestas, vida coletiva, animais de caça, plantas, peixes só existem em relação, constituindo um território vivo. Esse argumento tem ganhado força também em outros campos de pesquisa, com as suas particularidades e diferenças, é claro, ao se falar em florestas antropogênicas, ou florestas culturais. Isso é, esta teia de relações humanas e não humanas que constituiu a floresta Amazônica tal qual a conhecemos hoje.

Nesse sentido, Neves salienta a ação dos povos da Amazônia como central na produção dessa biodiversidade: de um lado, a arqueologia tem mostrado que a Amazônia é, historicamente, um polo produtor de biodiversidade, em parte por conta da domesticação de plantas, de espécies como o cacau, o cupuaçu, a mandioca, o abacaxi, o guaraná,  alguns tipos de maracujá. Por domesticação, podemos entender uma alteração, uma seleção e aperfeiçoamento das espécies por determinadas características, a ponto de se converterem em novas espécies. 

Como define a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, são povos da megadiversidade, “povos indígenas e comunidades tradicionais também mantêm por conta própria, por gosto e tradição, as variedades em cultivo e observam as novidades”. A autora, enumera a variedade de mandioca, batata-doce, favas, amendoim, algodão e pimentas cultivados por diversos povos indígenas, e sintetiza:  “para os caiapós, bonito é um roçado com muita diversidade, pois os povos indígenas são mais do que selecionadores de variedades de uma mesma espécie. Eles são, de fato, colecionadores.” A autora coordenou também um trabalho ímpar, compilando informações acerca da biodiversidade cultivada por povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas, publicado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Mas a palavra “biodiversidade” para designar a relação das populações indígenas com as plantas que cultivam parece insuficiente. Ela exclui, de algum modo, um elemento tão fundamental e inseparável da lógica indígena, que é o “sócio”. Trata-se, portanto, como tem defendido estudiosos e militantes indígenas, de uma ativa produção de sociobiodiversidade, em que o apreço pela diferença e por processos de diferenciamento dizem respeito tanto à natureza quanto a expressões culturais, formas de organização sociais e políticas. Vale lembrar que são pelo menos 305 povos indígenas, e 274 línguas diferentes faladas no território brasileiro.

Por outro lado, não se pode negar que o agronegócio esteja também realizando experimentos. Pelo contrário, a relação entre agronegócio, acadêmia, agências de fomento a pesquisa, institutos privados, think tanks, vêm sendo forjada pelo menos desde a Revolução Verde – momento em que um consórcio entre o governo dos Estados Unidos e cientistas, a partir dos anos 1940, e em grande medida financiados pela Fundação Rockefeller empreende uma verdadeira cruzada contra formas tradicionais de plantio, sob o pretexto de lutar contra a fome em países que poderiam, na perspectiva norteamericana, cair nos braços do comunismo soviético. Mas a pesquisa e o experimentalismo do agro vão numa direção inversa às formas indígenas de cultivo. São experimentos a favor da padronização, da homogeneização. 

O agronegócio seria, então, dotado de formas totalitárias de plantio. Como defende o próprio arqueólogo Eduardo Neves a respeito da relação entre formas de plantio e política envolvidas no agronegócio: “são sistemas políticos ou de cultivo baseados no controle, na padronização”. São, em sua maioria, plantas geneticamente modificadas. E essas plantas vêm acompanhadas de agrotóxicos específicos, desenvolvidos em laboratório para impedirem que todas as outras formas de vida proliferam, com exceção do grão já desenhado para suportar o veneno. 

Além disso, o fechamento ao imponderável, ao acaso, é a regra. Afinal, a safra já é usualmente precificada e vendida muito antes de ser plantada. As plantations são duradouras, formas de organização econômica, que estruturou a colonização, e está baseada no grande latifúndio, monocultura, mão-de-obra escravizada e produção voltada para o mercado externo. Historiadores e antropólogos, como Sidney Mintz, defendem inclusive que foram os monocultivos coloniais que geraram a forma de produção padronizada das fábricas. E a financeirização da agricultura é tão central, que o poeta Fred Moten e o acadêmico Stefan Harney definem as finanças e a logística como as “ciências dos donos das plantations”.

As relações entre a forma como produzimos plantas baseadas no monocultivo e aspectos financeiros e políticos são inúmeras.  Um aspecto que considero um dos pontos nevrálgicos da relação entre plantas, pessoas e política são os agrotóxicos como uma ferramenta política de extirpação da diferença. Se o ódio à diferença, a aversão à diferença e a diversas formas de complexidade marcam a produção do agronegócio, a produção da homogeneidade encontra nos agrotóxicos a sua arma mais poderosa. Simplificação ecológica e extermínio de diferentes formas de cultura e vida social andam de mãos dadas.

Roça rodeada por produção de soja, em Santarém, Pará. Foto: Bruno Kelly

Efeitos dos agrotóxicos

Se existe um consenso na bibliografia acadêmica sobre agrotóxicos, e consensos neste campo tendem a ser raros, ele gira ao redor de duas palavras: indeterminação e elusividade. A dificuldade de encontrar uma correlação direta entre fator contaminante, casos clínicos e a mensuração epidemiológica dos efeitos é uma constante dos estudos sobre contaminação tóxica. Mesmo em casos tão concretos e visíveis quanto os derramamento de óleo na floresta equatoriana, e os altos índices de câncer na população indígena Cofán, há reticências por parte dos cientistas em relacionar a cancerogênese com a contaminação de petróleo na água ou de animais caçados – já que, argumentam os cientistas, há outros fatores que devem ser levados em conta, como predisposição genética e consumos de eventuais outras substâncias cancerígenas.

Entretanto, se para cientistas e epidemiologistas há constantes dúvidas sobre o efeito dos agrotóxicos nas populações expostas durante longo prazo a eles, para as populações afetadas, restam poucas dúvidas quanto aos efeitos concretos do uso de agrotóxicos. Durante minha pesquisa de doutorado, no Baixo Tapajós, ficou evidente, por exemplo, que para os moradores do chamado Planalto Santareno, era a intensa aplicação de pesticidas por parte dos fazendeiros da soja que forçava as pessoas a deixarem suas casas, e vendê-las a qualquer preço que lhes era oferecido. A constante pulverização de glifosato impedia que as formas de plantio tradicionais seguissem (todas as pragas iam para as roças familiares), impedia que árvores frutíferas dessem frutos e mesmo impossibilitava a respiração. Colhi casos concretos de pessoas que se trancavam em casa, com falta de ar, impedidas de respirar por conta da fumigação de glifosato.

Os casos se espalham pela Amazônia e pelo Cerrado. Um consórcio formado por duas agências de jornalismo independentes (Agência Pública e Repórter Brasil), tem publicado com frequência reportagens que apontam para o uso de agrotóxicos contra florestas e minorias (populações indígenas, quilombolas e agricultores tradicionais). No Maranhão e no Pará, no Mato Grosso do Sul e no Mato Grosso, agrotóxicos diversos são utilizados como forma de agredir populações e desmatar. O uso dos agrotóxicos está a serviço de uma verdadeira guerra ecológica contra a diferença.

Importa aqui pensar nos agrotóxicos como parte de um complexo agro-industrial-militar. E, na verdade, é precisamente esta a sua origem. O glifosato, amplamente utilizado nas plantações de soja pelo país afora foi inventado pela Monsanto para substituir pesticidas como o DDT (inseticida desenvolvido na década de 1940 para conter a malária, e banido em 1972 nos EUA e em 2009 no Brasil, devido às contaminações atmosféricas, no solo e persistência no ambiente) e o Agente Laranja (altamente tóxico, foi utilizado na guerra do Vietnã como uma arma química). Ambos os produtos foram, argumenta a antropóloga Vincanne Adams em Glyphosate and the Swirl (Glifosato e o Redemoinho, em tradução livre, pois ainda não há versão em português), criados pela Monsanto para uso em guerra, e apenas posteriormente comercializados no mercado Norte Americano – o que forçou a empresa a criar a sua divisão agrícola nos anos 1960 em meio Revolução Verde e tentativa de barrar o avanço do comunismo.

A invenção do glifosato veio de mãos dadas com a de alimentos geneticamente modificados para conseguirem resistir a sua aplicação, já que o herbicida mata ao bloquear uma enzima fundamental no processo metabólico pelo qual plantas (além de bactérias, fungos e algas) produzem aminoácidos. Sem os aminoácidos, a síntese de proteínas não ocorre, e a planta morre. A origem do glifosato é, portanto, militar, e os agrotóxicos são uma tecnologia de produção de morte selecionada, de tudo aquilo que não é geneticamente desenhado para sobreviver a sua aplicação. Um cenário de paisagens intoxicadas, moldadas pela aplicação indiscriminada de glifosato, que se repete não apenas no arco do Desmatamento da Amazônia, no Cerrado e no Matopiba, mas também na Argentina, como analisa Amalia Leguizamón em Sementes do Poder, e Gastón Gordillo em Rubble (ainda sem tradução ao português), no Paraguai, como investiga Kregg Hetherington em The Government of the Beans (O Governo dos Grãos, em livre tradução, pois ainda não exista uma ao português) e na Bolívia.

Não por acaso, foi no governo Bolsonaro, onde o culto à morte ganhou dimensões épicas até para os padrões brasileiros, que foram liberados 2.182 agrotóxicos para serem utilizados no Brasil. O país se tornou um verdadeiro laboratório a céu aberto para a indústria química. 

Estética da destruição

Há, nessa releitura 2.0 do fascismo no Brasil, uma evidente apreciação estética pela destruição. É impossível dissociar a destruição de Brasília no dia 8 de janeiro das repetidas imagens de desmatamento, de garimpos, e de queimadas pela Amazônia, Pantanal e Cerrado brasileiro. Em sua aparição na primeira metade do século 20, o culto à destruição promovido pelo fascismo tomava forma principalmente na guerra e o arruinamento de cidades antigas.  

Tal como relido em território brasileiro, o movimento autoritário adicionou, lado a lado ao ódio contra  os museus, à arquitetura moderna, à arte experimental e crítica, que marcam o nazifascismo no século 20, a destruição da floresta como alvo preferido da extrema direita. A relação entre as formas de cultivo e autoritarismo não são, evidentemente, um fenômeno exclusivo do contexto brasileiro contemporâneo. O próprio habitar colonial, para dialogar com o pensador martinicano Malcom Ferdinand, em Uma Ecologia Decolonial a construção do espaço, das relações sociais e políticas no Brasil, esteve ancorado tanto em um duplo genocídio (africando e indígena), como em um processo de simplificação ecológica para estabelecimento de monocultivo voltados à exportação.

É nas plantations e por meio destas paisagens de monocultivo, violência e toxicidade, que se estrutura, de forma duradoura, a sociedade brasileira. Se é impossível, em termos de uma história dos conceitos políticos, definir as plantations como um fenômeno exclusivamente relacionado com a extrema direita, a inversão é perfeitamente válida: talvez esteja aí, nesta forma de sociabilidade e política moderna que surge com as duas maiores violências registradas na história, a origem das formas de autoritarismo que viriam a se desenvolver no nazifascismo, tal qual o conhecemos na primeira metade do século 20, e na sua releitura pelos movimentos autoritários contemporâneos.

Fábio Zuker é antropólogo, jornalista multimídia e ensaísta. É doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo, e atualmente é pesquisador e pós-doutorando no Brazil LAB, da Princeton University. É autor de dois livros: Vida e morte de uma baleia-minke no interior do Pará e outras histórias da Amazônia (Publication Studio São Paulo; e em inglês pela Milkweeds Edition) e Em Rota de Fuga: ensaios sobre escrita, medo e violência (Hedra, 2020).


A pesquisa que deu origem a este artigo foi financiada pelo Brazil LAB (Luso-Afro-Brazilian Studies), da Universidade de Princeton

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