O Joio e O Trigo

Um passo adiante: indústria do tabaco mira regulamentação da reforma tributária

Lobby do cigarro ignora Senado e prioriza Executivo para garantir alíquota baixa no imposto sobre produtos nocivos à saúde

“Eu fumei durante 20 anos, senhor presidente”, declarou Eduardo Braga (MDB-AM) na tribuna do Senado em 2019. Na ocasião, o senador votava favoravelmente ao projeto de lei 769/2015, de autoria do senador José Serra (PSDB/SP), proposta para vetar a propaganda e o uso de aditivos de sabor e aroma em produtos derivados de tabaco. Três anos depois, o senador pelo Amazonas é relator da Proposta de Emenda à Constituição nº 45/2019, a PEC da Reforma Tributária, uma das mais ansiadas pelo parlamento brasileiro – e temidas pela indústria

Ao centro, senador Eduardo Braga (MDB-AM) recebe representantes da indústria em audiência na CCJ.
Foto: Pedro França/Agência Senado

O relator da proposta é um dos exemplos da nocividade do tabaco. Os hábitos como fumante por duas décadas lhe resultaram num câncer de bexiga aos 46 anos de idade, mas o  discurso do parlamentar não parece incomodar a indústria do fumo, que se mantém calada no debate em curso no Legislativo. 

Um passo à frente, o lobby corporativo marca presença no Executivo, mais precisamente no Ministério da Fazenda, de onde devem sair propostas de regulamentação de quais produtos e alíquotas as empresas serão submetidas. O tributo que mais ronda a atividade industrial, não somente a do tabaco, é o Imposto Seletivo (IS), cuja intenção é desestimular o consumo de produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente, como é o caso do cigarro. 

Bernard Appy, secretário extraordinário de Reforma Tributária no Ministério da Fazenda, lida com uma agenda lotada. No último dia 4 de outubro, um grupo de interessados em baixar a alíquota do IS se reuniu presencialmente com o secretário.

Secretário extraordinário da Reforma Tributária recebeu representantes da indústria em gabinete.
Foto: Agência Brasil

A reunião de uma hora no gabinete de Appy era com representantes da Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo), como diretores e gerentes da British American Tobacco (BAT, antiga Souza Cruz), da Philip Morris International (PMI), da Philip Morris Brasil (PMB) e da Japan Tobacco International (JTI). Até a data de publicação desta reportagem, a Abifumo não tinha publicado nenhuma linha sobre o curso da reunião.

Uma entidade crítica ao imposto seletivo e aliada às corporações, a Confederação Nacional das Indústrias, já vem se encontrando com Appy há algum tempo. Entre reuniões e eventos presenciais e remotos, a CNI já tratou de reforma tributária com o secretário extraordinário quatro vezes, em fevereiro, maio, e duas vezes em junho deste ano. Publicamente, a CNI afirma que o imposto seletivo deve ser “aplicado somente a produtos que se deseja desestimular o consumo”. 

No parlamento, quase não se vê investidas da indústria do cigarro, que neste pleito está mais discreta que o normal. O lobby ferrenho de outros momentos políticos, a exemplo da pressão que fez para liberar o cigarro eletrônico na Anvisa, não foi visto no período em que o texto da PEC 45 tramitava na Câmara dos Deputados.

Mas o que faria uma das mais fortes estruturas lobistas do país se manter discreta diante de uma proposta de oneração sobre o cigarro?

“Eu acho que o ambiente está bem favorável à indústria no momento, porque tem muita incerteza e porque é bem difícil calibrar o Imposto Seletivo agora”, opina José Angelo Divino, professor e coordenador do programa de pós-graduação em Economia da Universidade Católica de Brasília (UCB), que pesquisa a carga tributária da reforma para o tabaco.

O artigo 153, que dispõe sobre imposto seletivo, é só uma das polêmicas que dividem grupos defensores do bem-estar socioambiental e o setor econômico, que visa o lucro pela menor margem da cobrança fiscal. O imposto sobre os insumos agropecuários e o período de transição são fatores de atenção da reforma.  

Depois da apresentação do relatório da CCJ, prevista para o dia 20 de outubro, os senadores membros da comissão ainda terão alguns dias para analisar e ajustar a proposta antes de encaminhá-la para apreciação da Casa. A expectativa é que o Senado vote o texto ainda em 2023 e que ele seja alterado, já que foram propostas mais de 350 emendas por senadores. 

A alteração do texto no Senado deve levar a proposta novamente à Câmara dos Deputados. Enquanto isso, a indústria do cigarro pajeia quem pode sugerir valores de alíquotas durante a regulamentação do imposto que mais vai onerar os negócios.

Cenário favorável à indústria

Um mês após a aprovação do texto da PEC 45 na Câmara, o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) criticou uma possível reoneração da produção do tabaco. O parlamentar gaúcho que frequenta os almoços e corredores da indústria reclamou do aumento do tributo mesmo sem uma definição das alíquotas.  

A proposta que seguiu para o Senado é de que os produtos do Imposto Seletivo (IS), de arrecadação federal, sejam taxados já na saída do produto da fábrica. 

Na outra ponta, a do varejo, o consumo também será onerado pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), uma carga tributária a ser administrada diretamente por estados e municípios e que substituirá, ao final da transição, o conjunto de cinco impostos: PIS, Cofins e IPI federais, ICMS estadual e ISS municipal. A alíquota dos dois impostos, no entanto, permanece em aberto.

Quanto mais se sobretaxam os produtos nocivos, como tabaco e álcool, por exemplo, mais branda poderia ficar a alíquota para impostos gerais que incidirão sobre os consumidores, como o IBS.

O que está em pauta agora é em que moldes o IS será cobrado. Nem mesmo a decisão sobre quais produtos a carga tributária incidirá está definida, o que só ocorrerá após a passagem do texto pela casa parlamentar, por lei complementar ordinária ou medida provisória. Segundo fontes políticas e estudiosos ouvidos pelo Joio, com tantas evidências de que o cigarro faz mal à saúde, dificilmente a indústria ficará de fora do IS. A questão é: qual será o tamanho da oneração?

Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sugeriu, em 2021, que o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) fosse fixado de 26% a 27%, intervalo percentual entre os mais altos do mundo e que não diminuiria a arrecadação atual. 

No entanto, este estudo não considerou a desoneração, só agora discutida para alguns produtos essenciais, como alimentos da cesta básica e medicamentos. Na lógica do cálculo compensatório, quanto mais produtos e setores são desonerados, maior é a carga tributária para aqueles que pagarão impostos.

Na época, o Ipea sugeriu uma alíquota para o IS sobre o cigarro de 42,4%, em caso do IVA dual (imposto federal e subnacional, cuja arrecadação é dos estados e municípios) de 27%. O IS incidiria sobre o preço de fábrica e o IVA sobre a fábrica e o consumo.

Atualmente, o imposto sobre o cigarro varia de estado para estado por diferenças no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, o ICMS estadual. Em abril de 2023, o imposto total sobre esse produto foi calculado em 83,32% pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT).

Sem o ICMS estadual, que faz variar o peso do imposto sobre o cigarro, a indústria pode sair ganhando com o nivelamento. “Como a alíquota vai ser a mesma no país todo, em alguns estados vai ficar mais barato. Então, para a indústria, manter a carga atual pode ser vantajoso em alguns estados onde a alíquota estava alta”, afirma Marcello Baird, coordenador de Advocacy na ACT Promoção da Saúde, que monitora   os movimentos da indústria. “Esse é o foco do lobby da indústria: reduzir ou manter a carga atual”, explica. 

Segundo José Angelo Divino, o silêncio do setor do fumo neste estágio das discussões no Legislativo remete à posição confortável do momento sobre a oneração do imposto seletivo.

“Não vale muito a pena eles ficarem chamando muita atenção porque, por enquanto, não há nada indicando que serão prejudicados. Agora, quando começar a discussão de alíquota, se realmente a ideia de aumentar a carga vingar, com certeza vai haver uma reação”, prevê o pesquisador da Católica de Brasília.

A “estratégia do medo” do lobby da indústria

A cada quatro meses, integrantes da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco se reúnem para discutir temas de defesa do setor. Neste ano, um tópico ganhou espaço entre outras pautas comuns, como a exportação do tabaco e a COP 10, no Panamá.

“Estamos preocupados que, quanto maior a tributação, maior também o mercado ilegal e, consequentemente, menor a arrecadação do governo. Que isso seja levado em consideração antes de se mexer nos índices”, disse o presidente da comissão, Romeu Schneider, ao introduzir os trabalhos da 70ª Reunião Ordinária da câmara.

O vídeo da reunião, a que o Joio teve acesso via Lei de Acesso à Informação, externa a preocupação da câmara setorial sobre o imposto seletivo. “O setor de tabaco já contribui com um índice extremamente alto na tributação”, reclamou Schneider.

Membros da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco discutem elevação de impostos do cigarro.
Foto: Divulgação.

O argumento dos representantes da cadeia produtiva do tabaco não fica apenas nas reuniões fechadas da câmara setorial. Ao contrário, está publicado em vários canais de comunicação e formatos, chegando a diferentes públicos entre os contribuintes brasileiros. 

Os leitores de portais de notícias se deparam com uma enxurrada de conteúdos patrocinados pelo Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), velho parceiro da indústria do cigarro. O Metrópoles, o Poder 360, o Jota e a Exame são alguns exemplos de conteúdos em formato jornalístico, com manchete, estatísticas e fontes, que criticam o aumento de imposto sobre o cigarro. Um formato especial de série foi encomendado pela FNCP à Folha de S. Paulo.

Para quem só vê televisão, o conteúdo propagado pela FNCP chegou também.  

As “publi” dos famosos não fogem à estratégia de marketing da indústria. Nas redes sociais, o conteúdo pago alcança os seguidores de influencers da política e da vida financeira. Eventos remotos e presenciais promovidos pela entidade também envolveram veículos de comunicação, a reforma tributária e a indústria do tabaco.


“Se essa reforma tributária vai resultar em aumento da carga tributária, em quanto será esse aumento? Porque, se houver [aumento], nós estamos entregando o mercado claramente para o contrabandista, para quem opera na ilegalidade”, disse Edson Vismona, presidente da FNCP, em evento promovido entre a entidade e o Correio Braziliense.

Todos os conteúdos circularam entre maio e outubro deste ano, período de maior discussão do texto da reforma tributária entre as casas legislativas federais.

Especialistas que analisam o imposto seletivo e a cadeia produtiva do cigarro alertam para o uso de “argumentos da ilegalidade” para evitar que itens prejudiciais à saúde sejam sobretaxados.

“O único argumento que sobrou para justificar o não aumento da tributação de tabaco é a questão do cigarro ilegal, mas ele não se justifica”, afirma Valter Palmieri Júnior, professor e doutor em Economia, para quem o caminho não é baixar o imposto sobre o produto legal, mas controlar o mercado ilegal. 

“Se hoje 45% do mercado do Brasil é clandestino, é porque é muito fácil entrar aqui com cigarro ilegal. Se você amplia o controle do produto ilegal, este produto consequentemente vai ter uma elevação de preço, já que alguém está lucrando com essa entrada fácil de cigarro”, justifica Palmieri.

O argumento do economista já foi referendado por um estudo da Universidade Católica de Brasília (UCB) de 2020. A pesquisa calculou que, se mecanismos de controle e fiscalização mais efetivos baixassem em 10% a entrada de cigarro ilegal no país e, ainda assim, um imposto especial para desincentivar o consumo de cigarros fosse aplicado, a arrecadação brasileira sobre o cigarro subiria de R$ 13,5 bilhões para R$ 18,9 bilhões. Ou seja, ao contrário do que diz a indústria, haveria um aumento de arrecadação tributária. 

O modelo matemático ainda aponta que o consumo de cigarros no país cairia simultaneamente ao aumento de arrecadação aos cofres públicos. O estudo, feito antes do texto atual da reforma tributária e sobre o consumo, não corresponde ao modelo de imposto seletivo, que incide sobre o preço de fábrica.

Uma pesquisa mais recente, de 2022, concluiu que  “o aumento de preços dos cigarros, devido a tributos mais altos, não deslocam a demanda para o mercado ilícito”. Os dados, baseados nos questionários a fumantes da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS-IBGE), mostram que o mercado ilícito no Brasil não aumentou na década pesquisada, a de 2010; que os preços dos cigarros ilegais tendem a subir quando são feitos reajustes de preço no cigarro legal nacional; e que há um movimento de consumidores do cigarro ilegal para o legal, mas não o contrário.

“A reação da indústria vai ser sempre a estratégia do medo. Dizer que vai aumentar o mercado ilegal, vai aumentar o consumo de cigarro ilegal, quando isso não é verdade”, conclui José Angelo Divino, um dos autores das pesquisas.

A FNCP, que propagandeia o “argumento da ilegalidade”, tem como associada a British American Tobacco (BAT).

Agrotóxico, item da cadeia produtiva do tabaco

Um regime fiscal especial para produtos do agronegócio, entre eles insumos como sementes e agrotóxicos utilizados na produção de tabaco, tem o carimbo da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) – e força política suficiente para apoiá-lo. O artigo 9º do texto da reforma tributária indica uma possível redução de alíquota para etapas produtivas da cadeia agropecuária.

Ao lado de produtos e serviços essenciais para o consumo dos brasileiros, como educação, medicamentos e transporte coletivo, estão os “produtos e insumos agropecuários”. A redução de imposto geral que prevê este artigo pode chegar aos 60%. 

“A preocupação de setores da indústria é essa: ‘eu já vou pagar uma alíquota de 25% em cima do meu produto e ainda corro o risco de ter mais uma alíquota pelo imposto seletivo, porque o meu produto é prejudicial. Então, eu tenho que buscar alguma forma de gritar um desconto dentro do IVA”, o Imposto sobre Valor Agregado, imposto geral que incidirá sobre todos os produtos, indica, na condição de anonimato, uma fonte que acompanha nos bastidores as discussões da reforma no Legislativo.

A senadora Zenaide Maia (PSD-RN) considera a inclusão dos agrotóxicos no benefício da redução uma “inversão da lógica de promoção da saúde e do meio ambiente”. Ela propôs uma emenda para incluir os agrotóxicos no imposto seletivo.

Já a indústria repudia um imposto para o produto, que oneraria também a produção do tabaco. “É preciso delimitar o imposto seletivo para que essa tributação não alcance insumos da cadeia produtiva, porque dessa forma nós poderemos trazer a cumulatividade de volta”, disse Armando Monteiro Neto, conselheiro da CNI, em uma das audiências públicas da CCJ no Senado.

Uma das culturas que mais intoxica agricultores com agrotóxicos no país, a cadeia produtiva do tabaco se vale, por exemplo, de benefícios fiscais e até de alíquota zero sobre alguns produtos. “Insumos agrícolas, principalmente destinados para produtos de exportação e para culturas do tabaco, não deveriam ter isenção ou qualquer privilégio, não há nada que justifique isso”, opina o economista Valter Palmieri.

Segundo ele, esse pode ser o único ponto da reforma tributária em que a indústria do tabaco não está ganhando. “Essa redução [de até 60%] pode representar até um avanço, já que hoje muitos insumos não pagam. Em relação ao que é hoje, pode ser um ponto positivo”, diz.

Agrotóxicos usados em lavouras de tabaco podem sofrer alteração de alíquota com a reforma tributária. Foto: Reprodução/Sinditabaco

Sobretaxa à prazo e com desconto

Uma pesquisa Datafolha encomendada pela ACT Promoção da Saúde aponta que nove em cada dez brasileiros acreditam que produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente devem ter aumento de imposto. 

A pergunta sobre a oneração para diferentes produtos, como os alimentos ultraprocessados, bebidas alcoólicas, altos emissores de carbono, entre outros, apresentou a maior quantidade de respostas favoráveis à oneração dos derivados de tabaco, com 79% de respostas favoráveis. 

Os respondentes também foram questionados sobre se o governo deveria conceder incentivos fiscais para tais produtos. O cigarro e os derivados do tabaco somaram 57% das respostas contrárias, ou seja, que não concordam com estímulos públicos para o consumo.

O aumento de impostos para o cigarro, que teria parte da arrecadação direcionada à saúde pública, diminuiria a distância do valor de arrecadação atual, de R$ 13,5 bilhões, para os gastos do Sistema Público de Saúde com o tratamento de doenças causadas pelo tabagismo, que é de R$ 50 bilhões. Por isso, a sobretaxação da indústria do tabaco é defendida por quem observa os prejuízos causados pela indústria.

“Em economia, chamamos isso de externalidade negativa, quando uma produção econômica gera um custo para a sociedade como um todo que não está incluído nesse produto”, menciona o professor Palmieri.

Mesmo após a aprovação da reforma tributária, a oneração ou não de produtos prejudiciais à saúde pode trazer vantagens para as empresas, como a diminuição da arrecadação entre o período de mudança de um modelo para o outro. Essa fase da reforma, chamada de “transição”, prevê a oneração gradativa de setores num período de oito anos, podendo chegar a 2032 no caso de a reforma ser aprovada até 2024. 

“Esse período de transição, com certeza, beneficiaria a indústria. O ideal é que para esses produtos que fazem mal à saúde, como tabaco, a mudança seja imediata. Porque é muito complexo substituir um imposto pelo outro e, ao mesmo tempo, evitar que haja queda na carga tributária e aumento de consumo”, conclui José Angelo Divino.

Navegue por tags

Matérias relacionadas