Pesquisadores contestam argumentos evocados pela microbiologista, que se diz porta-voz “da razão” e declara ser nula a chance de glifosato estar associado a casos de câncer
Defendendo as vacinas e rechaçando o “kit-covid”, amplamente defendido pelo governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) durante a pandemia da Covid-19, uma cientista brasileira demoliu o muro do castelo acadêmico e ganhou a praça pública midiática, na TV, no noticiário online e nas redes sociais. Com linguagem fácil e acessível, sua voz convenceu alguns milhares de indecisos, no auge do negacionismo no Brasil, a irem aos postos de saúde para serem imunizados. A bióloga e microbiologista Natalia Pasternak Tachner, 47 anos, teve papel crucial para salvar vidas.
Paralelo ao tema pandêmico no noticiário, Pasternak escolheu outro campo da ciência para discorrer a respeito. Ou foi escolhida: a indústria química, farmacêutica e biotecnológica enxergou nela uma voz acadêmica-popular de grande alcance.
“As pessoas têm um apelo a uma ‘falácia do natural’, sem saber que o natural já não existe. Os transgênicos são apenas uma tecnologia mais moderna da agricultura”, disse a cientista ao defender o uso de organismos geneticamente modificados (OGM) na produção agrícola.
Assim como os transgênicos, outro assunto em disputa entre a indústria do agronegócio e os especialistas em saúde pública está entre os mais citados pela cientista. “O risco do glifosato causar câncer não existe, a substância é segura”, destacou em um dos vários textos que publica listando “evidências” sobre a segurança do uso do herbicida mais usado no Brasil, associado a doenças por centenas de pesquisas científicas em todo o globo.
Para fechar o trio de pautas favoráveis ao agro e à indústria, Pasternak argumenta que os alimentos produzidos com uso de químicos sintéticos são mais saudáveis aos humanos e ao meio ambiente do que os da agricultura orgânica.
O mesmo argumento de promoção de bem-estar da população geral, usado pela cientista entre os anos 2020 e 2022 para promover a ampliação da cobertura vacinal, é adotado no pós-pandemia para atacar outros modelos de produção rural que não os vendidos pelas corporações que lucram no mercado de commodities. Ao se intitular “tradutora da ciência” para o público leigo, Pasternak sugere aos interlocutores que ela sabe do que está falando.
“O glifosato tem tanta chance de prejudicar células humanas quanto apagar as luzes de uma sala teria de desorientar um cego”
Seu alcance não pode ser subestimado. Envolto em polêmicas por tratar de temas que não são da sua área de formação, o livro Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério, lançado pela Editora Contexto e escrito por Pasternak em parceria com o marido, o jornalista Carlos Orsi, foi bastante acariciado pela mídia e figurou em listas de mais vendidos em não ficção.
A insistência em divulgar informações que atenuam os danos de substâncias químicas com uso de “evidências científicas” que, na visão da Pasternak, são a única forma crível de ver o mundo, também não pode ser desprezada. Ainda mais se o nome da cientista aparece reiteradamente ao lado das corporações.
Pasternak é parceira e colabora com publicações e eventos promovidos por organizações como International Life Sciences Institute (ILSI) Brasil, criado pela Coca-Cola e amplamente apoiado pela indústria do agronegócio.
A bióloga também é cofundadora de uma organização, o Instituto Questão de Ciência (IQC), que tem como objetivo “trazer a ciência para os grandes diálogos nacionais e globais em torno da formulação de políticas públicas”. Usando a logo e o espaço online de sua associação sem fins lucrativos, Pasternak colabora com organizações apoiadoras e apoiadas pela indústria, entre as quais estão produtoras e vendedoras de agrotóxicos.
A microbiologista ainda aceitou a cadeira do conselho consultivo da Janssen-Cilag Farmacêutica, indústria química cujos negócios abarcam, além das vacinas, medicamentos de combate ao câncer.
O IQC afirmou ao Joio que, assim como Natalia Pasternak, não possui qualquer conflito de interesses e que “não mantém parceria comercial, nem recebeu quaisquer valores das organizações citadas” na reportagem. O instituto também negou haver qualquer contrato publicitário entre Pasternak e empresas privadas do setor químico ou farmacêutico, sendo seu conteúdo financiado apenas por “aportes dos diretores e membros-fundadores”, além do Instituto Serrapilheira, empresa privada sem fins lucrativos que apoia a ciência no Brasil. A íntegra da nota pode ser lida aqui.
Batendo na tecla da “dosagem adequada”
A Genetic Literacy Project (GLP) é uma iniciativa de divulgação de conteúdo que afirma promover a “alfabetização científica” sobre temas como segurança alimentar, saúde pública, mudanças climáticas e biotecnologia.
A página na web afirma que o agrotóxico sintético é mais saudável, barato e ambientalmente sustentável em comparação aos biológicos, aqueles produzidos com ativos naturais.
No site do GLP, o herbicida glifosato, vendido para aplicação em lavouras pela primeira vez em 1974, é tema de uma série de textos para o público leigo, isto é, destinado à população geral.
Um infográfico com centenas de xícaras é a estratégia usada para afirmar que o glifosato “é um dos herbicidas menos tóxicos do mercado”. Ele sugere que o cafezinho diário é mais prejudicial à saúde humana que o glifosato, em caso de ingestão humana. A comparação é de um para três, em que é necessário triplicar a dose de glifosato para causar os malefícios à saúde que uma mesma dose de cafeína causa.
O que não está em destaque no texto é que o site é financiado pela Bayer, multinacional produtora de agrotóxicos, entre eles o Roundup, nome comercial para o ativo glifosato.
Na outra mão, a Bayer é produtora de medicamentos, como algumas fórmulas oncológicas.
Em inglês, o GLP reproduz publicações de Natalia Pasternak em defesa de agrotóxicos e transgênicos, além de abrir espaço para a cientista publicar na página em primeira mão.
Em português, os mesmos argumentos da GLP são os usados por Pasternak quando ela é autora ou entrevistada em materiais sobre o assunto. Em uma publicação de página financiada pela Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), Pasternak põe o cafezinho e o sal de cozinha na mesma balança que o glifosato, comparando a toxicidade dos alimentos e destacando a “segurança” do herbicida.
“Não quer dizer que o café é perigoso, mas mostra que, para gerar intoxicação aguda, precisamos de muito mais glifosato do que de café ou sal”, defende a cientista em outro artigo, desta vez de sua autoria.
O argumento é sempre o de que o risco de contaminação depende da dosagem utilizada.
A biomédica e toxicologista Karen Friedrich explica que a abordagem da dosagem em estudos toxicológicos e a contaminação de agrotóxicos no meio ambiente e, consequentemente, na água e nos alimentos, exigem contexto sobre o ambiente da exposição.
“O glifosato nunca é usado sozinho, mas diluído com outras substâncias. Fazer a comparação de toxicidade desse ativo com a água ou o café é ignorar todo o cenário de utilização do agrotóxico”, afirma Friedrich, que também é membro do grupo temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
A pesquisadora conta que as agências reguladoras, entre elas a brasileira Anvisa e a agência norte-americana Environmental Protection Agency (EPA), utilizam estudos toxicológicos que se propõem a calcular uma “dose segura”, para delimitar um “risco aceitável”, mas que desconsideram as interações das substâncias tóxicas com organismos vivos, como os ecossistemas e o corpo humano.
“Esses estudos são realizados ou financiados pela própria indústria, que está interessada em registrar o produto”, explica Friedrich, sobre os testes toxicológicos encomendados pela indústria com base em diretrizes internacionais, entre elas as da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
“A Anvisa desqualifica os estudos independentes porque eles não têm que seguir estas regras como a indústria. Como os estudos independentes não usam essa ‘receita de bolo’, conseguem aprofundar a pesquisa sobre os impactos na saúde de uma determinada substância, como o glifosato”, completa.
Uso seguro
Tendo realizado pesquisas sobre o discurso mobilizado para legitimar o uso de agrotóxicos, a socióloga Julia Guivant pondera que as dosagens permitidas para uso de substâncias químicas diferem das dosagens utilizadas na produção agrícola, tanto pela falta de regulação quanto pela falta de fiscalização no campo.
“O uso seguro é só o do laboratório, não é o da prática. É só pensar na quantidade de pessoas que se automedicam na farmácia: quantas pessoas realmente leem a bula? Imagina como é com os agrotóxicos. Dizer que o uso é seguro é não considerar uma perspectiva sociológica”, afirma Guivant, que também é professora e coordenadora do Instituto de Pesquisa em Riscos e Sustentabilidade (IRIS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Na contramão dos argumentos de Pasternak, um grupo de 14 cientistas questiona a efetividade dos atuais testes de toxicidade realizados pela indústria e aceitos pelas agências reguladoras, que apenas avaliam seus resultados. Segundo a publicação, as doses diárias toleráveis de glifosato nos Estados Unidos e na União Europeia se baseiam em dados científicos desatualizados e que ignoram, por exemplo, os efeitos do consumo de glifosato a longo prazo no sistema endócrino humano.
O sistema endócrino regula os hormônios humanos. É responsável pela regulação de crescimento, desenvolvimento intelectual, memória, equilíbrio de temperatura corporal, metabolismo de nutrientes, qualidade do sono, entre outros.
Uma revisão sistemática da bibliografia feita por pesquisadores colombianos encontrou 7.031 estudos ao redor do mundo que reportam danos do glifosato à saúde reprodutiva do homem e da mulher. Após aplicação de filtros para revisão minuciosa de parte das pesquisas, o estudo concluiu que metade das produções científicas aponta relação de causa entre a exposição ao ativo glifosato e problemas reprodutivos, que vão da infertilidade e do aumento de abortos espontâneos à má formação fetal e à deficiência intelectual de nascidos.
“A indústria de agrotóxicos e do agronegócio acredita em meia dúzia de artigos que eles financiaram e desacredita em 600 que os cientistas independentes produziram”, afirma Wanderlei Pignati, médico e pesquisador do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador (Neast) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Ao insistir em afirmações sobre a dosagem adequada de agrotóxicos e de que o perigo de contato com estas substâncias não representa risco devido às quantidades aplicadas nas lavouras, Pasternak ignora o chamado “efeito coquetel”.
“É comum misturar o glifosato com o 2-4,D, com o diquat, etc, o que vai dar uma combinação que aumenta o efeito tóxico”, descreve Pignati, citando exemplos de outros agrotóxicos usados no Brasil. A infiltração de agrotóxicos no solo e nas águas subterrâneas, ou mesmo o caminho que as substâncias fazem superficialmente das lavouras até os rios, levadas pela água das chuvas, resulta na mistura de diferentes compostos químicos tanto antes da aplicação quanto na natureza.
Segundo fontes científicas consultadas pelo Joio, ao apoiar o uso do glifosato, Pasternak ignora também o princípio da precaução. Tal princípio é objeto de pesquisas em outras áreas de estudos, como a do Direito, e prevê evitar ou mesmo proibir uma ação caso ainda não haja consenso científico sobre seus efeitos prejudiciais. Desde 2017 e com base em múltiplos estudos transnacionais, a Agência Internacional da Pesquisa em Câncer (IARC), vinculada à Organização Mundial da Saúde (OMS), classifica o glifosato no grupo 2A de risco de agentes químicos, o de substâncias provavelmente carcinogênicas a humanos.
Ainda assim, a microbiologista propaga que “o glifosato tem tanta chance de prejudicar células humanas quanto apagar as luzes de uma sala teria de desorientar um cego”.
O “mito dos orgânicos”
Declaradamente, o que é produzido via laboratório, com fórmulas matemáticas e a partir da ciência dura, tem mais chances de passar no crivo de Natalia Pasternak. Sua régua rechaça os variados métodos de produção do conhecimento para além do positivista: não funcionam, são falhos, falaciosos e não devem ser levados a sério.
Mesmo dentro de sua área de estudos, a das Ciências Naturais, Pasternak também lança dúvida sobre questões pesquisadas à exaustão, como a interação entre substâncias químicas em determinado ambiente.
Ao passar por uma consulta médica, por exemplo, todo profissional de saúde aplica um protocolo de perguntas simples antes de receitar um medicamento, que evitarão efeitos colaterais e até a morte do indivíduo. Perguntar ao paciente “você tem alergia a algum medicamento” e “você toma algum medicamento de uso contínuo?” dá informações ao profissional para que ele elimine o risco de interações medicamentosas, já que dentro do organismo cada substância química sofrerá modificações em contato com o próprio organismo e com outras substâncias.
Para Pasternak, no entanto, os agrotóxicos estão imunes ao princípio mais básico da química, o de degradação de compostos químicos em novos compostos que não necessariamente deixam de ser tóxicos.
“Muitos dos defensivos sintéticos mais modernos degradam-se rapidamente, protegendo o ambiente e a saúde do consumidor: são moléculas projetadas e testadas para funcionar assim”, afirma Pasternak em artigo que enaltece os agrotóxicos químicos em detrimento dos biodefensivos, aqueles que utilizam ativos de origem natural.
A engenheira química Sonia Corina Hess estuda agrotóxicos há 10 anos e adverte que a afirmação de que estas substâncias “se degradam rapidamente” é falsa. Doutora em Química e professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Hess produz pareceres técnicos ao Ministério Público sobre a presença de agrotóxicos nas águas.
Segundo ela, uma prova de que os agrotóxicos não “se degradam rapidamente” são os recentes estudos que apontam a presença do herbicida atrazina e seus metabólitos, ou seja, moléculas que se decompõem do produto original, em países onde a substância foi banida em 2004.
“Esse agrotóxico está aparecendo em várias análises atuais de águas subterrâneas na Europa. Ou seja, há quase 20 anos os europeus pararam de usar a atrazina e ela continua na água”, declara a engenheira química. “Essa falsa segurança dos agrotóxicos é cotidianamente desmentida por artigos científicos”, completa.
No meio ambiente, parte da atrazina é degradada, mas seus metabólitos, ou seja, as moléculas que se desprendem da formulação original, continuam interagindo com outras substâncias. A Agência Europeia do Ambiente concluiu que ela continua sendo encontrada em águas de lençóis freáticos por ser “muito persistente”. Por essa característica, o agrotóxico deixa resíduos no solo por longos períodos e compromete a cadeia alimentar de animais aquáticos, que poderão ser consumidos por humanos.
“Esse agrotóxico está aparecendo em várias análises atuais de águas subterrâneas na Europa. Ou seja, há quase 20 anos os europeus pararam de usar a atrazina e ela continua na água”
Liberada no Brasil e usada principalmente em lavouras de cana-de-açúcar, soja, sorgo e milho, a atrazina é só uma das substâncias usadas em lavouras que não se desintegram totalmente e permanecem no ambiente por longos períodos. É o caso de 13 agrotóxicos encontrados nas águas do Cerrado, o bioma conhecido como a caixa-d’água do Brasil por distribuir água para todas as outras regiões. Além da atrazina, entre os agrotóxicos que continuam presentes nas análises estão o glifosato, o 2,4-D e o fipronil.
Enquanto Pasternak trabalha para disseminar afirmações positivas sobre os agrotóxicos, procuradores do Ministério Público do Trabalho argumentam na Justiça para que sejam proibidos no país.“Há uma guerra química em curso no Brasil. Nosso país é uma grande lixeira química porque autoriza o uso de agrotóxicos que já são banidos em outros países”, lamenta Hess.
Wanderlei Pignati, do Neast-UFMT, alerta para a degradação do glifosato no metabólito AMPA, a abreviação para ácido aminometilfosfônico, também tóxico à saúde humana. “Fala-se que o glifosato é biodegradável, mas ele degrada em quê? Em AMPA, que tem uma vida média no nosso corpo de 4 a 5 dias. Tem pesquisas que identificam AMPA e glifosato na urina de trabalhadores”, sustenta o pesquisador.
De mãos dadas com a indústria
O International Life Sciences Institute (ILSI) Brasil reúne “cientistas da academia, do governo e da indústria” em suas publicações. Trata-se de uma organização criada em 1978 pela Coca-Cola e cuja atuação conflitante com a ciência foi documentada em diversos países – incluindo o Brasil. Uma das áreas de produção de conteúdo do instituto são os agroquímicos, tema que tem uma razão de existir: o ILSI é apoiado pela indústria do agronegócio.
Entre os apoiadores estão a trading global de commodities Cargill Agrícola S.A.; a FMC Química do Brasil, cujo menu de vendas é de agrotóxicos; a Iharabrás S.A. Indústrias Químicas, que vende mais de 70 produtos diferentes em fungicidas, herbicidas, inseticidas e acaricidas químicos; e a UPL do Brasil, fornecedora global de agrotóxicos.
Para o ILSI Brasil, Natalia Pasternak produziu material em defesa dos organismos geneticamente modificados (OGM). Com palavras-chave, ela sugere que a biotecnologia das sementes transgênicas diminui o custo com agrotóxicos e aumenta a produção agrícola. Se o pouco uso de texto da apresentação deixa dúvidas sobre sua posição de cientista em relação aos OGMs, outra publicação assinada por ela torna tudo bem claro.
No Brasil, porém, nem de longe o uso de sementes transgênicas diminuiu o uso de agrotóxicos. Ao contrário. A liberação de OGMs em 2003 fez saltar três vezes o uso de agroquímicos nas lavouras de soja, cultura que hoje já ocupa 44 milhões de hectares no país, área do tamanho do Iraque. Na Amazônia e no Cerrado, o aumento do uso de pesticidas está sendo associado por pesquisadores à morte de crianças por leucemia.
O que explica esse aumento é que a indústria dos transgênicos é irmã da indústria de agrotóxicos. Modifica-se o gene da planta para que ela fique resistente a determinados herbicidas, que farão morrer outras plantas que não interessam à produção do modelo agroindustrial.
Pasternak repete em suas aparições em nome da ciência que não possui conflito de interesses. No entanto, suas ações midiáticas têm parcerias com a indústria, e a colaboração com o ILSI não é um caso isolado.
Desde 2022, Pasternak é conselheira consultiva da Janssen-Cilag Farmacêutica, fabricante de medicamentos para diversos tratamentos, entre eles o câncer, empresa que ficou conhecida por também fabricar vacinas de combate à covid-19.
Ter Natalia Pasternak no conselho da empresa é uma estratégia publicitária com cara de ciência. A Cellva Ingredients entendeu isso e, ao aliar-se à microbiologista, tem sua marca de carne de laboratório promovida em espaços não considerados publicitários, mas científicos, como é o caso da coluna d’O Globo, para a qual Pasternak escreve periodicamente. A carne cultivada em biorreatores “é um caminho promissor”, descreve a colunista, que deixa pouco espaço para as ressalvas do modelo que é aposta de grandes da indústria, como a JBS.
Multinacionais de ciclo completo das commodities, que lucram do fornecimento de insumos à logística global, como a Cargill S.A. e a Archer Daniels Midland (ADM), são associadas de outra representante da indústria parceira da divulgadora científica, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia). A Abia já recebeu Pasternak em evento para divulgar o projeto Rede Rotulagem, da indústria de ultraprocessados. A iniciativa foi criada durante a discussão, pela Anvisa, de um novo modelo de rotulagem frontal de alimentos. Por meio dela, os fabricantes buscaram emplacar a adoção de um semáforo nutricional cuja eficácia já foi demonstrada nula pelo conjunto de evidências científicas. Sim, de novo, uma questão de ciência.
Um instituto para chamar de meu
As indústrias química, farmacêutica e de biotecnologia não recebem críticas por parte da cientista, mas o mesmo não se pode dizer sobre instituições que pesquisam doenças.
Entre as organizações mais criticadas por Pasternak está a Agência Internacional da Pesquisa em Câncer (IARC), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS) que investiga a causalidade entre agentes químicos, físicos e biológicos e tipos de câncer.
A contraposição de Natalia Pasternak ao IARC é quase sistemática, e feita num espaço online que ela e seu grupo podem publicar quando quiserem. A cientista preside e é co-fundadora, junto com Carlos Orsi e outros dois sócios, do Instituto Questão de Ciência (IQC).
Quando os pesquisadores da IARC divulgaram resultados de pesquisas realizadas em colaboração internacional, como a classificação do adoçante aspartame como possivelmente cancerígeno, o Instituto Questão de Ciência (IQC) questionou o “alarde”. A credibilidade da IARC, à qual o Instituto Nacional do Câncer (INCA) no Brasil é vinculado, também é atacada pela cientista quando a agência faz alertas ao uso do glifosato.
Segundo Pasternak, o IQC é uma tentativa de “criar uma comunidade cética no Brasil”, a exemplo de organizações norte-americanas e europeias que lançam dúvida sobre temas dentro e fora da ciência. “Nós somos o único instituto promovendo o ceticismo no país”, orgulha-se.
Representando, além do IQC, o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), Pasternak ensina plateias a comunicarem os “benefícios” dos produtos da indústria.
Dez regras de comunicação sobre agrotóxicos foram listadas em uma de suas apresentações como selo do instituto. “Celebre as conquistas: rendimentos mais elevados, colheitas seguras, menos trabalho” é uma das dicas para promover o uso de agrotóxicos. Outra regra diz: “coloque a toxicidade em um contexto banalizado”. Relativizar a toxicidade de substâncias sintéticas, aliás, é tema de várias de suas publicações.
O IQC de Pasternak também colabora para a Alliance For Science, organização vinculada à norte-americana Cornell University. A Alliance For Science usa o carimbo científico para tornar a opinião pública favorável ao uso de agrotóxicos e transgênicos.
“Eu sou muito apaixonada pelo que eu faço, isso é o que me move. Eu realmente acredito na promoção do ceticismo e do pensamento racional. Se a gente se esforçar, talvez a próxima geração seja feita por crianças que pensem”, declarou Pasternak em live, a convite da organização.
“Nós somos o único instituto promovendo o ceticismo no país”, orgulha-se.
A maior financiadora da Alliance For Science é a Bill & Melinda Gates Foundation, que também injeta dinheiro em outras organizações com o objetivo de expandir o modelo de sementes modificadas e agroquímicos para a África e a Ásia. Apesar da aba de “transparência”, o site do IQC não publica relatórios de receita da organização.
O IQC afirmou que “não recebe verbas da administração pública, portanto não tem obrigação legal de dar publicidade a seu balanço anual”, conforme nota que pode ser lida aqui na íntegra.
Natalia Pasternak desdenha da existência do lobby da indústria. Isso ocorreu em palestra para um público do seu nível acadêmico, não para organizações privadas, mas dentro da universidade pública que a formou, a Universidade de São Paulo (USP). Com tom – ou tentativa – de humor, ela critica o que chama de “pseudociências”, que mais tarde chamaria de “bobagens” em seu livro, citando a psicanálise e a acupuntura, entre outros.
Para usar a mesma linguagem cômica da cientista, seu nome lembra uma cena do filme Relatos selvagens (2014). Na comédia argentina, Pasternak é nome do comissário de vôo do avião cujos passageiros estão fadados ao destino escolhido por ele. Nas mãos do único que tem poder e informação para decidir se o avião pousa tranquilamente ou é destroçado, nem o psiquiatra de Pasternak – que, diferente do psicanalista, pode receitar medicamentos – é capaz de dissuadi-lo.