Para driblar legislação brasileira que proíbe propaganda de fórmulas para bebês, indústria focou em produtos para crianças maiores, mostra estudo
Entre 2006 e 2020, as vendas de fórmulas infantis comuns aumentaram 7,5 vezes no Brasil – passando de quase R$ 280 milhões para R$ 2,3 bilhões ao ano. Já a categoria de fórmulas especializadas – por exemplo sem lactose, para insônia ou má digestão – cresceu 23 vezes no mesmo período, atingindo R$ 307 milhões de vendas em 2020. É o que revela um estudo publicado em fevereiro na revista Globalization and Health, que disseca as táticas da indústria para contornar a lei brasileira que regula a venda e promoção de fórmulas infantis, compostos lácteos, papinhas e outros alimentos para crianças.
“Eles vão achando brechas para continuar vendendo”, resume Laís Amaral, uma das pesquisadoras por trás do estudo, que também coordena o Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor.
Sancionada em 2006, a lei brasileira é referência no mundo todo por proibir a publicidade de fórmulas e criar restrições no caso de produtos voltados a bebês maiores. Ela é o ápice de uma série de regulações criadas a partir de 2001 que são diretamente ligadas ao aumento dos índices de amamentação do país.
Em 1996, só 23% das crianças receberam exclusivamente leite humano durante os primeiros seis meses de vida. Dez anos depois, esse percentual saltou para 37% e se manteve estagnado até a pesquisa mais recente, de 2019, quando atingiu 45%. No entanto, ainda estamos longe da recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 70%.
Dando a volta por cima
O que aconteceu? De acordo com o estudo, a indústria de fórmulas se adaptou – e cresceu.
Como a lei de 2006 só proíbe a publicidade de fórmulas, as empresas investiram na promoção de outros produtos que são enquadrados de forma mais leve. Produtos cuja publicidade é permitida, embora haja algumas restrições, como a presença de frases de advertência nas embalagens alertando para a importância do aleitamento. Estamos falando de snacks e do composto lácteo, produto que foi criado depois da lei brasileira. “Justamente para burlar a regra”, sustenta Amaral.
A estratégia da indústria também envolveu o desenvolvimento de fórmulas para fins especiais, como para alérgicos à lactose. Há produtos para todo tipo de comportamento, do bebê que não dorme a noite toda à criança que não come tanto.
Jornal de Pediatria, SBP – 1972
Houve uma “epidemia do desmame” nesse período. Por causa da urbanização, da entrada das mulheres no mercado de trabalho e da publicidade desregulada de produtos para substituir o aleitamento, inclusive entre profissionais de saúde – a parceria entre a Nestlé e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) já era sólida a essa altura.
Em 1986, menos de 5% dos bebês de até 6 meses estavam em aleitamento materno exclusivo.
Foto: Breno Esaki/Agência Brasília
Uma das principais respostas institucionais a essa “epidemia” foi a criação da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (Nbcal), que proíbe a publicidade de fórmulas para bebês de até 6 meses e cria uma série de regras para venda e promoção de alimentos para crianças de até 6 anos.
Entre 1996 e 2006, o índice de aleitamento materno exclusivo nos 6 primeiros meses foi de 23,9% para 37,1%.
Foto: Idec/Reprodução
Entre 2006 e 2013, o aleitamento materno exclusivo nos 6 primeiros meses estagnou, mas em 2019 o índice voltou a crescer e atingiu 45%. No mesmo ano, foi publicado o Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 anos, que traz orientações sobre o aleitamento e a introdução alimentar, além da recomendação expressa de não consumir ultraprocessados em nenhuma refeição. Mesmo assim, a indústria de fórmulas se adaptou e cresceu, apostando em fórmulas especializadas e produtos para bebês maiores. O marketing se sofisticou e a parceria com a SBP continua firme e forte. Entre 2006 e 2020, as vendas de fórmulas comuns aumentaram 7,5 vezes e as de fórmulas especializadas 23 vezes.
Para entender a dimensão desse movimento de mercado, é preciso olhar para o passado. Há 20 anos, não havia tantas opções de fórmulas para substituir o leite humano – e muito menos de outros produtos para substituir as fórmulas.
Na falta do leite humano, a fórmula era administrada até a introdução alimentar, que acontecia o mais cedo possível. Não eram utilizadas as chamadas fórmulas “de seguimento” ou “de crescimento” – hoje recomendadas pelos fabricantes e até por alguns profissionais de saúde – para o período da introdução alimentar, quando a criança começa a comer mais ou menos o mesmo que a família: frutas, legumes, verduras, arroz, feijão, carne…
Na prateleira da farmácia, supermercado ou e-commerce, a gente vê o paredão de Nan 1, 2 e 3, sequência que já indica a faixa etária recomendada e a sugestão de uso continuado. O mesmo acontece com as outras marcas.
Segundo o estudo, no Brasil o “marketing intensivo iniciado pela indústria coincidiu com o declínio da amamentação e a normalização do uso de fórmulas”. Ao mesmo tempo em que houve um aumento do consumo de ultraprocessados entre adultos e crianças.
Driblando o preço
Um dos principais motivos para cortar o uso das fórmulas e partir logo para a comida é econômico. Esses produtos são – e sempre foram – caros, a ponto de virar sinônimo de status.
Para lidar com o obstáculo econômico, a indústria criou os compostos lácteos, que podem sair pela metade do preço. Mas, para o consumidor, a solução se transformou em mais um problema.
Além de desnecessários do ponto de vista nutricional, eles podem confundir: as embalagens de compostos e fórmulas são quase iguais.
Em 2020, o Idec chegou a protocolar uma ação contra a Nestlé Brasil, a Mead Johnson Brasil e a Danone por promoção cruzada. A prática, que associa mercadorias diferentes para estimular os consumidores a migrar de um produto para outro, viola o Código de Defesa do Consumidor. A ação ainda não foi julgada.
A manobra também pode representar uma infração à Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (Nbcal), conjunto de medidas do qual a lei de 2006 faz parte.
Isso porque, ao misturar compostos lácteos e fórmulas, as empresas estão promovendo indiretamente os últimos – o que é proibido. No entanto, o estudo aponta que nem a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável pela fiscalização da Nbcal, e nem as empresas reagiram quando organizações da sociedade civil as notificaram sobre as violações.
Todo ano, a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan) realiza um monitoramento do cumprimento da Nbcal no país. Voluntários verificam se há alguma infração em pontos de venda físicos e online, nos rótulos… No último monitoramento, foram encontradas 864 infrações – quase metade envolvendo a promoção de fórmulas infantis.
O monitoramento também abarcou materiais técnico-educativos, que são folhetos e cartilhas distribuídos por aí. Dos 14 materiais analisados, 12 continham infrações. Desses, metade foi produzida por fabricantes como Danone e Nestlé. Mas a outra metade foi produzida por associações ligadas a profissionais de saúde ou a causas, como a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB).
No fim do processo, todas as empresas são notificadas. E, quando se trata de problemas nos rótulos, a Anvisa também. Mas a nutricionista, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro da Ibfan, Enilce Sally, sustenta que a taxa de retorno às notificações é “baixíssima”. Ou seja, a várzea está criada.
Cooptação dos pediatras
O estudo mostra que um pequeno número de empresas transnacionais sediadas na União Europeia e nos Estados Unidos moldaram fortemente o sistema alimentar para a criança menor de três anos, de forma a desnormalizar a amamentação e impulsionar o aumento do uso de fórmulas em escala global.
De acordo com a pesquisa, essas empresas – especialmente Nestlé, Danone, Mead Johnson, Abbott e FrieslandCampina – “se envolvem em atividades políticas corporativas, para neutralizar ameaças e promover ambientes regulatórios, políticos e no campo científico que sejam favoráveis ou permitam seu marketing e expansão”. Essas atividades incluem o marketing agressivo, lobby, a influência na ciência e a cooptação de profissionais de saúde.
O estudo trata do caso da Nestlé e da Danone – as grandes donas do pedaço. Juntas, elas respondem por mais de 90% deste mercado no Brasil.
A Nestlé tem um relacionamento de longa data com a Sociedade Brasileira de Pediatria – que não é ciumenta e também mantém laços com a Danone. Desde 1956, a Nestlé realiza um curso de “atualização em pediatria”, em parceria com a SBP. Em 2020, a parceria também rendeu um programa de formação para estudantes residentes de pediatria, que prometia uma bolsa de estudos no exterior para quem tivesse um bom desempenho. A cerimônia de abertura do programa contou com a presença de representantes da Nestlé e de um pediatra que já havia coordenado estudos financiados pela Danone.
Várias campanhas, como a ‘Caminhada pela Valorização do Pediatra’, e documentos supostamente científicos e técnicos, desenvolvidos pela SBP, são patrocinados pela Nestlé. No Joio, já mostramos que há materiais com orientações controversas, que favorecem o consumo de produtos da empresa. Em 2020, um representante da Nestlé chegou a integrar o Conselho Executivo da SBP, que sempre conta com o apoio das corporações para realizar o Congresso Brasileiro de Pediatria. Também em 2020, e durante a pandemia, Danone e Nestlé promoveram, em parceria com a SBP, eventos online para profissionais de saúde.
O problema é que quando profissionais de saúde endossam ou recomendam expressamente o uso de fórmulas, compostos lácteos e semelhantes acabam legitimando esses produtos. E já é sabido que o marketing de fórmulas impacta na redução do início, exclusividade e duração da amamentação.
Os autores do estudo publicado na Globalization and Health afirmam que o conflito de interesses dentro do campo pediátrico no Brasil “acaba minando a credibilidade da profissão” e coloca em xeque “a imparcialidade da orientação fornecida aos profissionais de saúde e conselhos que os pediatras dão”.
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Faça parteAlém das fórmulas
A multiplicação de produtos da indústria não se restringiu às fórmulas para crianças. Existem muitos outros. Por isso, o estudo fala na criação de um first-food system – ou primeiro sistema alimentar.
O termo se refere, em parte, ao ambiente alimentar a que estão expostas crianças de até três anos. Os produtos incluídos aí são os primeiros que a criança vai consumir na vida: fórmulas, compostos lácteos, papinhas e até ultraprocessados “raiz”, como o Danoninho. Mas o conceito também olha as corporações por trás desses produtos e outros aspectos que envolvem o acesso à alimentação e “estruturam as práticas alimentares em nível populacional”.
O estudo descreve essa transição para dietas com fórmulas mais sofisticadas como um reflexo de transformações nesse sistema. Os produtos disponíveis no mercado estão cada vez mais diversificados e as estratégias das corporações que dominam o setor também se sofisticaram, justamente para resistir ao cerco que se formou em torno delas.
Um capítulo importante desse cerco no Brasil foi escrito 10 anos atrás, quando foi lançado o Guia Alimentar para a População Brasileira – que recomenda expressamente que ultraprocessados não sejam consumidos. Um guia voltado para crianças menores de dois anos foi lançado em 2019. E orienta que, após seis meses, seja oferecido entre as refeições principais: leite materno, frutas, cereais, raízes ou tubérculos. “Os únicos alimentos não recomendados em nenhuma das refeições são os alimentos ultraprocessados”, frisa o documento do Ministério da Saúde.
Na contramão disso, a indústria tem apostado na formulação de snacks – em bom português, petiscos – para bebês. É o caso da Nestlé com a linha de produtos “Meu Primeiro Lanchinho”, criada para atender aos intervalos entre as refeições do bebê a partir de oito meses.
No mês passado, a família de snacks cresceu, com o lançamento da “Minha Primeira Pipoquinha”, em um evento que contou com a presença e divulgação de Gabriela Prioli, advogada que ganhou fama como influenciadora digital e apresentadora da CNN (hoje, ela apresenta o programa Saia Justa, da GNT).
Ela tem mais de dois milhões de seguidores no Instagram e mais de 300 mil no TikTok. Há dois anos, ela se tornou mãe e vem construindo uma sólida parceria comercial com a Nestlé. Prioli também já participou de outros eventos da linha Materna e fez publicidade da linha NanCare mais de uma vez. Ambas são de suplementos. No evento de lançamento da pipoquinha, também participaram uma nutricionista e uma pediatra.
As fotos publicadas no Instagram renderam comentários negativos de todos os lados. “Como alguém que admira seu trabalho, fico chocado com essa publi. Você não precisa disso, Gabriela”, disse o pediatra Daniel Becker. “Isso faz mal à saúde, induz obesidade, deforma o paladar (a criança passa com o tempo a recusar comida natural e saudável) e é a porta para uma alimentação que leva a doenças crônicas e morte precoce. Não nutre: adoece”, completou.
Já a apresentadora Titi Muller comentou: “Venho aqui como mãe pedir para você não aceitar esse tipo de publi. É tentador, eu sei. Já recebi ofertas semelhantes. Você tem um comprometimento sério com o que é fato ou fake em tudo que diz respeito à questões políticas e sociais nas suas falas. Não dá pra promover um produto tão nocivo, para um público que confia na integridade do seu discurso”.
Do ponto de vista legal, o caso é controverso. A Nbcal não menciona o marketing digital e suas múltiplas possibilidades, então não há regras explícitas para esses casos.
Por exemplo, onde a frase de advertência, obrigatória, informando as recomendações oficiais de alimentação, deve ser adicionada? Na imagem ou na legenda da publicação? Em que tamanho? Há uma série de regras para farmácias e supermercados, mas nenhuma para redes sociais.
Além disso, a Nbcal penaliza apenas fabricantes, importadores e distribuidores dos produtos regulados. Não fala em anunciantes e influenciadores. “Às vezes você vai ver e nem está ilegal a prática, mas é uma questão muito mais ética mesmo”, pondera Laís Amaral, autora do estudo.
Apesar das ferramentas serem novas, muitas vezes o discurso é apenas um retrofit do que já é dito há décadas. As corporações continuam apelando para o coração das famílias, que querem sempre o melhor para a criança – mas muitas vezes acabam oferecendo ultraprocessados achando que se tratam de opções saudáveis, quando não são.
Nas publicações de Prioli, ela fala sobre os desafios, inseguranças e culpas que surgem com a maternidade. Algo que a personagem Ruth Beatriz, criada pela Nestlé, já fazia desde os anos 1940. Ela dava conselhos às mães, em cartilhas da corporação, e ensinava sobre a admirável vida urbana e moderna.
“Nossas descobertas revelam que a atividade política corporativa desta indústria provavelmente será uma barreira importante para o fortalecimento de futuras ações para proteger, promover e apoiar mulheres e famílias que amamentam no Brasil. Isto sugere que novas modalidades de ação de saúde pública são necessárias, para reduzir o poder corporativo sobre o primeiro sistema alimentar no Brasil, incluindo ações para limitar o acesso da indústria a formuladores de políticas”, concluíram os autores do estudo publicado na Globalization and Health.
Eles também elencaram como ação prioritária “a eliminação de conflitos de interesse dentro da profissão pediátrica no Brasil”. “No mínimo, isto poderia incluir o fim das relações financeiras que as associações profissionais têm com a indústria, a prevenção e gestão de conflitos de interesses entre os seus membros e a prevenção da participação da indústria em atividades de formação profissional e conferências”, diz o texto.
Enilce Sally, da Ibfan, também acha que a legislação precisa ser atualizada, para englobar a publicidade online. “Precisa estar no Código Internacional, para que o mundo inteiro considerar o marketing digital como um ambiente, hoje, extremamente permissivo, e implicar todos” – não só fabricantes e distribuidores, mas também anunciantes, plataformas e quem precisar. “Se não você nunca consegue identificar quem é o culpado”, finaliza.
*Errata: Esta reportagem foi alterada às 15h30 de 11 de março de 2024. Os trechos que afirmavam ser proibida a publicidade de fórmulas para bebês de até seis meses foram corrigidos, para informar que é proibida a publicidade de fórmulas para bebês de qualquer idade.