Estamos sentados em uma área de convivência de uma comunidade rural de uma cidade no interior do Pará. Os moradores vão chegando aos poucos e se juntando à roda. Começa uma assembleia. E, invertendo os papéis de quem pergunta e quem responde, somos nós, os repórteres com 20 e 25 anos de estradas rodadas, que entramos numa sabatina inesperada.
Mesmo com tanto tempo de exercício da profissão e tendo tantas convicções em relação à nossa função no mundo, não é confortável ter que responder a tantas perguntas sobre por que viemos, o que ganhamos com aquilo ou para que serve o jornalismo. Não é exclusividade dessa comunidade: se tem uma coisa que as plataformas sociais deixaram transparecer, é que há uma enorme confusão entre informação e entretenimento, jornalistas e influenciadores.
“O que nós vamos ganhar com esse trabalho de vocês?”
“O que vocês vão ganhar com essa matéria?”
“Quem mandou vocês aqui?”
“Se não podemos ver o texto antes da publicação, não tem como dar entrevista.”
A sabatina fora precedida por três longas negociações. Uma, por telefone, e duas presencialmente, com lideranças da comunidade. Em todos os casos, as perguntas se repetem. Agora, o passar do tempo nos angustia: o que pensávamos ser uma breve explicação acaba se transformando num processo longo e repetitivo, que se arrasta ao longo de duas horas.
Ao final, parece que nos saímos bem: a pessoa mais desconfiada, que havia feito meia dúzia de perguntas, abre o sorriso, dando uma espécie de aval para que os papéis se invertam, e nós voltemos a ser entrevistadores. Mas algo havia mudado em nós mesmos: a necessidade de repassar em minúcias os porquês do jornalismo nos conduziu a uma reflexão sobre a dificuldade em, no século 21, se fazer relevante.
Decidimos compartilhar com você essas reflexões porque também podem ser úteis para entender por que fazemos o que fazemos.
“Quem mandou vocês aqui?”
Essa é a graça do jornalismo: ninguém nos manda a lugar nenhum. Vamos porque sentimos que é relevante contar uma história. Vamos aonde vemos sinais de injustiça, de novidade, de algo que valha ser narrado. Em temos de influenciadores digitais, esse é um ponto recorrente no nosso diálogo externo: o jornalismo busca o interesse público. Nós não podemos trabalhar a mando de alguém, receber ou pagar por informação, ou publicar “conteúdo patrocinado” (ainda que veículos jornalísticos façam isso, nesse caso trata-se de publicidade, e não de jornalismo).
“O que vocês ganham com isso?”
Essa é uma pergunta muito complexa e, ao mesmo tempo, muito simples. Na sabatina inesperada, respondemos que ganhamos o mesmo que um professor ganha para entrar na sala de aula ou um médico ganha por entrar numa unidade de saúde. A razão de contar uma história não mora em um ganho pessoal. Contar histórias é o nosso ofício – podemos dizer, com privilégio, que é a nossa paixão.
“O que a gente ganha com isso?”
Essa pergunta embute um dilema ético do jornalismo: nós retratamos vidas e seguimos em frente em nossas próprias vidas. Especialmente no contexto de violência dos últimos anos, tem sido frequente ouvir a recusa de potenciais entrevistados – afinal, individualmente eles não ganham nada com isso. Nós vamos embora, o medo fica com eles.
Mas, para além de situações-limite e desse dilema, é nessa pergunta que existe o motivo central do jornalismo. Em sociedades com um jornalismo forte e atuante, ganhamos todos. Bom, nem todos: no geral, pessoas em situação de poder são quem tem a sair perdendo. Durante a sabatina, tivemos de buscar um sem-fim de exemplos de como o jornalismo pode ser um caminho para transformar a realidade: denunciar abusos, compartilhar realidades com pessoas que não conhecem um determinado local, expor violações de direitos, cobrar por uma redução das desigualdades.
O jornalismo pode ser um aliado para pressionar governos municipais, estaduais e federal. Para limitar o poder de corporações.
“Por que eu não posso ler antes?”
No Pará, quase colocamos tudo a perder nessa hora. Existe, em qualquer lugar do Brasil, uma enorme confusão entre jornalismo e assessoria de imprensa. Enquanto um serve para expor complexidades, o outro serve para fazer valer a narrativa do cliente. Algumas pessoas se indignaram com o fato de que não poderiam ler previamente a reportagem.
Como poderiam confiar em nós nessa situação?
Ao final, todos se convenceram com a explicação de que o jornalismo busca retratar complexidades, e isso implica em diferentes versões de uma mesma história. Ou seja, dar acesso antecipado a uma das pessoas poderia implicar em um controle sobre aquilo que está sendo contado, com capacidade de incidir para fazer dessas várias versões uma coisa só, uníssona, descomplexificada.
Para nossa surpresa, horas depois havia uma outra sabatina – ou melhor, uma saraivada – em curso em nossa página do Instagram. Entre milhares de comentários relativos a um episódio do Prato Cheio sobre parentalidade trans, emergia a ideia de que o jornalismo serve para concordar com meu ponto de vista. De novo, uma confusão entre influenciadores e jornalistas.
Não tem sido fácil navegar o século 21. Em meio a uma enxurrada de informações diárias (e a uma enxurrada muito maior de desinformação), a um cotidiano frenético e a uma realidade precária, nós mesmos nos perguntamos: “Pra que serve o jornalismo?”. Muitas vezes, pode parecer que o jornalismo foi algo que se deu em um certo tempo e espaço, e que agora isso está superado. Mas, quando olhamos o resultado de nossas investigações, entendemos que a nossa profissão ainda tem uma capacidade singular de retratar e ajudar a transformar realidades. Ainda é um instrumento importante para que a sociedade possa filtrar, depurar, refletir. Para separar o joio e o trigo.
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