Relatório mostra como projetos de crédito de carbono ameaçam modo de vida, aumentam disputa por territórios e não remuneram quem faz a preservação da floresta em pé
José Francisco Nascimento Barroso tinha 13 anos quando seu pai foi chamado para uma reunião do antigo seringal Valparaíso, em Cruzeiro do Sul, no Acre, para tratar da comercialização dos créditos de carbono. Segundo ele, uma ata foi feita com o nome de todos os presentes e este documento serviu para a uma empresa mostrar o consentimento dos integrantes de sua comunidade tradicional de seringueiros para a venda dos créditos da área onde vive.
Hoje, dez anos depois, José Francisco luta para entender o que são os créditos de carbono, como eles são vendidos e quais são os benefícios que o negócio pode trazer para sua comunidade, se é que eles existem de fato e estão disponíveis para pessoas como ele, um trabalhador que sobrevive de seus roçados e da pesca. A extração da seringa, que levou seus antepassados para aquela região há 100 anos, é apenas uma lembrança.
O território é dividido em lotes não-demarcados onde vivem 180 famílias divididas em dois seringais: Valparaíso e Russas, ambos com projetos de créditos de carbono. No início, a comunidade recebeu um barco a motor, mas os benefícios prometidos nunca foram entregues. Segundo alguns moradores, os antigos proprietários deixaram o lugar com o fim do ciclo da borracha e retornaram agora para um novo ciclo: o dos créditos de carbono.
Equipamentos tomados
Por enquanto, ele e seus familiares só conheceram os problemas vindos depois da negociação. “Temos recebido as visitas de um homem que alega ser proprietário da terra e é um dos beneficiários do contrato”, afirma. Ele e seus funcionários reprimem os moradores quando derrubam uma árvore para fazer uma canoa ou construir uma casa e limitam as áreas de roçado dos trabalhadores. “Um vizinho foi obrigado a demolir a casa que estava construindo para ele ao lado de onde mora o pai”, conta. Os equipamentos usados para o serviço foram tomados do camponês.
O caso é considerado emblemático porque o Acre é pioneiro dentro do Brasil na criação de uma legislação de comercialização dos créditos de carbono, porque elaborou em 2010 o Sistema de Incentivo aos Serviços Ambientais (Sisa), que deu origem ao primeiro programa de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD) Jurisdicional. Seu modelo foi replicado nos últimos anos e hoje todos os estados amazônicos criaram os seus. “A criação e execução do jurisdicional acaba servindo como indutor do voluntário”, explica Fabrina Furtado, professora de Ecologia Política Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA-UFRRJ). E a história de José Francisco está longe de ser um problema isolado, como mostra o relatório “Em Nome do Clima: Mapeamento Crítico – Transição Energética e Financeirização da Natureza”, elaborado pela Fundação Rosa Luxemburgo e pelo CPDA-UFRRJ. O trabalho será lançado na noite desta segunda-feira (11/03), em São Paulo. A pesquisa foi realizada por dez pesquisadores das duas instituições e é organizada por Fabrina Furtado e Elisangela Soldateli Paim, da Rosa Luxemburgo.
No trabalho, dividido em um eixo dedicado à transição energética e outro à financeirização da natureza, elas apontam problemas como a falta de informações a respeito dos temas dentro das comunidades e como o mercado voluntário de carbono pode aumentar os conflitos agrários e prejudicar o modo de vida tradicional dos povos, ao criar barreiras para a agricultura de subsistência e ao estigmatizar os camponeses como responsáveis pelo desmatamento. Tudo isto sem as contrapartidas prometidas. “A gente começou o trabalho como uma forma de explicar para as comunidades o que é o carbono, como são criados os créditos e qual a forma como são negociados”, explica Elisangela. Segundo ela, em muitos casos, as pessoas nem sabiam o que era o que elas estavam vendendo, quanto vale e para que serve.
O acesso à informação é um desafio para as comunidades, muitas delas em áreas isoladas. “Até as entidades que querem fiscalizar os acordos e atuar na proteção dos direitos desses povos acabam tendo dificuldade de visitá-los com alguma frequência”, diz Fabrina. O resultado é que muitas vezes eles só conhecem a parceria por meio de uma voz interessada, a da empresa que os procura para comercializar os créditos. E, muitas vezes, eles não conseguem nem cobrar as contrapartidas prometidas. Os contratos, quando chegam às mãos dos camponeses, não são suficientemente claros sobre obrigações e, principalmente, direitos.
Avanço em áreas públicas
O relatório aponta que o mercado voluntário aumenta o conflito por terras, o avanço em áreas públicas – inclusive com sobreposições –, e provoca conflitos internos dentro das comunidades, inclusive povos indígenas. É o caso do povo Ka’apor, do Maranhão. Os créditos de carbono estão sendo negociados para uma empresa estadunidense, a Wildlife Works, por uma ONG ligada a um grupo de indígenas, a Associação Ka’apor Ta Hury do Rio Gurupi, como mostrou uma reportagem do Intercept Brasil. Os líderes do povo que não são ligados à entidade dizem que são contra o negócio e sequer foram consultados. A organização, segundo eles, foi fomentada para permitir o negócio e não tem representatividade nem relação com as organizações tradicionais do povo.
Para Fabrina, o problema não está só nos meios. Ela contesta a própria eficiência da política de comercialização para o objetivo de preservação da floresta. “O mercado vende créditos sobre áreas que normalmente já seriam preservadas para quem avança no desmatamento em outras frentes poder continuar destruindo a floresta e causando outros danos ambientais”, acredita. Ela aponta ainda uma estigmatização dos povos tradicionais e originários. “É uma política que impõe a responsabilidade sobre a preservação para quem faz um uso sustentável da floresta e acaba por inibir as retiradas normais de madeira desses povos para suas necessidades ou a criação de pequenos roçados”, diz.
Por isso, o relatório destaca que os projetos são marcados pelo “racismo ambiental”, pois “os efeitos danosos dos projetos de investimento recaem de forma desproporcional sobre populações negras e não brancas localizadas na fronteira de expansão do extrativismo ou, como nesse caso, responsabilizadas pelo desmatamento e pela mudança climática. Aliás, são projetos realizados nesses territórios em decorrência do racismo estrutural”.
Levantamento em 15 estados
Para ressaltar a diferença entre quem vende e quem compra o crédito de carbono, o trabalho mapeou 107 projetos privados de compensação ambiental, que incluem uma área total de quase 19 milhões de hectares, em 15 estados. O Pará é o estado com o maior número de projetos, com 34, que correspondem a 48% da área total. O Amazonas aparece em segundo, com 27 projetos e 19% da área.
O levantamento foi feito com base nos dados das certificadoras.Uma delas é a Verra, organização estadunidense que foi responsável, no final de 2022, por 64% das compensações de carbono do mundo. A certificadora foi alvo de uma investigação no ano passado do jornal britânico The Guardian, do semanário alemão Die Zeit e da agência de jornalismo investigativo SourceMaterial que apontou que 94% dos créditos comercializados pela Verra não trouxeram benefícios para o clima, e que a ameaça de desmatamento foi superestimada em uma média de 400% nos projetos registrados pela certificadora.
Do total, 87 projetos estão registrados pela Verra, inclusive os de Valparaíso e Russas. Do total, 57 são de nove empresas que estão com mais de uma proposta no sistema. As recordistas são a Future Carbon Group com 16, a Ecológica Assessoria e a Biofílica Ambipar Environment com 9 e a Carbonext, com 7. Esta última tem a Shell como uma de suas acionistas e tem outros sete projetos ainda em desenvolvimento, sem registro em qualquer certificadora.
A Carbonext participou de três projetos que foram abandonados depois de denúncias de irregularidades, todos em terras indígenas (TIs). Na TI Alto Rio Guamá, no Pará, as denúncias foram de pressão para que os indígenas assinassem os documentos e a utilização de folhas assinadas por eles em branco, conforme reportagem da InfoAmazônia. Em junho de 2023, a Carbonext informou ao Ministério Público Federal (MPF) que havia desistido do projeto. Fatos semelhantes foram denunciados na relação com os indígenas da TI Coatá-Laranjal, no Amazonas, e da TI Kayapó, no Pará.
Donos da terra?
Nos casos de Russas e Valparaíso, Ilderlei Cordeiro e Manoel Batista Lopes se declaram, respectivamente, donos das terras, e assinam como sócios dos demais proponentes. Os posseiros afirmam que nenhum documento de propriedade de Cordeiro e Lopes lhes foi apresentado. O primeiro se declara proprietário de uma área de 41.976 hectares e o segundo, de 28.096 hectares. Segundo Fabrina, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Igreja Católica, já levantou documentos que demonstram que parte da área é pública. A questão é fundamental para saber como os posseiros teriam seu direito à terra assegurado, por um assentamento ou pelo usucapião, em caso de terra privada. Os documentos de Lopes que a CPT teve acesso até agora indicam que a área que ele seria dono é pouco mais de 10% do total do projeto.
Outra certificadora pesquisada é a colombiana Cecarbono, que tem 20 projetos registrados no Brasil, 19 deles em terras indígenas, do Pará, Mato Grosso, Tocantins, Rondônia e Amazonas. Os projetos estão em 10 territórios originários, habitados por sete povos. Todos eles, com exceção do que foi proposto no Tocantins, têm em comum a participação de uma empresa estadunidense chamada Indigenous Carbon LLC. Ela consta como proponente em 17 deles e financiadora em outro. Registrada no estado de Delaware, nos Estados Unidos em 2022, a empresa se apresenta como uma “consultoria de carbono terceirizada contratada pelos povos indígenas para explicar e auxiliar na elaboração dos projetos”. Pouco mais se sabe dela além disso. Os nomes de representantes legais não aparecem nos documentos disponíveis.
Os projetos da Indigenous chamam a atenção por uma declarada alta adesão dos indígenas. Dos 18, 17 teriam sido aprovados pelos indígenas dos territórios por unanimidade. Em apenas um deles, na Terra Indígena Munduruku, no Pará, 20% dos moradores teriam se manifestado contra a proposta. A empresa não informa qual dos cinco projetos na TI não foi aprovado por unanimidade. Outro ponto controverso é que existem dois ou mais projetos dentro da mesma terra indígena em áreas dos Mundurukus e dos Kayapós, no Pará, e dos Cinta Larga, no Mato Grosso e em Rondônia. Nos mapas da empresa, não fica claro se são áreas subjacentes ou há sobreposição.
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Não é o único problema apontado pelos pesquisadores. Dos 107 projetos identificados, foram encontradas denúncias de conflitos em pelo menos 16, 7 deles no Pará. Desterritorialização, mudanças no modo de vida tradicional, geração de conflitos dentro das comunidades, ameaças, sobreposição com áreas públicas de preservação e com terras indígenas que não estão incluídas no projeto original são apontados em alguns casos.
Todos citados em conflitos estão inscritos no Verra e dez já contam com a autorização para vender créditos. Em setembro do ano passado, havia 26 com as autorizações necessárias e 24 com operações. Até então, os 24 projetos emitiram 65.928.762 de créditos de carbono, dos quais 33.634.709 haviam sido comercializados. Entre os clientes estavam companhias aéreas, empresas de petróleo e gás, bancos, indústrias automobilísticas, petroquímicas e mineradoras. Todos com suas emissões de carbono supostamente compensadas.
No caso de Valparaíso, onde mora José Francisco, foram emitidas 1.079.264 unidades de crédito de carbono da área e 697.071 foram comercializadas. Os principais compradores foram a intermediária canadense Ostrom Climate, a inglesa Ecologi Action e a empresa de consultoria e auditoria PricewaterhouseCoopers Brasil (PwC Brasil). Os proponentes são a CarbonCo LLC, Freitas International Group LLC e Manoel Batista Lopes ME, empresa do suposto dono da terra. No vizinho Russas, foram emitidas 840.707 unidades, das quais 507.930 foram negociadas. Os compradores foram a PwC Brasil, a montadora de carros estadunidense Bentley GreenWich, e a intermediária chilena CarboNeutral SA. As proponentes são as mesmas CarbonCo e Freitas International, mais a I.S.R.C. Investimentos e Assessoria LTDA, de Cordeiro. Do outro lado, José Francisco e os outros moradores e moradoras dos seringais Russas e Valparaíso esperam alguma retribuição pelo trabalho deles de preservação.