O Joio e O Trigo

Senadora quer atropelar a Anvisa e tirar foto com corporação  

Relatório favorável a projeto que libera dispositivos eletrônicos para fumar é apresentado no mesmo dia em que Soraya Thronicke posa com diretor da Philip Morris

Faz pouco mais de uma semana. Tarde do dia 12 de março. A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) posta nos stories da página que possui no Instagram uma foto em que aparece ao lado – e aos sorrisos – de Eduardo Caldeirari, diretor da Philip Morris Brasil. Aparentemente como figurante, o ex-senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) também está na imagem. Não há menções à pauta do encontro. Nem outras informações divulgadas pela parlamentar a respeito de qualquer tema.  

A imagem, entretanto, não surge por acaso. O dia não é aleatório. E há motivações, já que na segunda-feira, um dia antes, o senador Eduardo Gomes (PL-TO) apresentava, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, um relatório favorável ao projeto que permite a venda de dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) no Brasil. Atualmente, o comércio é proibido por decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa.

No dia da foto orgulhosamente publicada, a comissão discutia o relatório e decidia pela realização de uma audiência pública sobre o assunto, com a inclusão da Comissão de Assuntos Sociais e de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor. 

De outro lado, na quarta-feira, dia 13, uma proposta do senador Eduardo Girão (Novo-CE) pediu a transformação da audiência pública em uma Sessão de Debates Temáticos sobre o projeto de Thronicke, que, vale lembrar, é o de número 5008/2023. 

Girão é contrário à proposta e argumenta pela presença de mais de uma dezena de convidados, a maioria atuante na área de saúde. A ideia é expor os riscos à saúde pública caso a venda seja liberada.

Nesse cenário, como a principal interessada na venda dos dispositivos eletrônicos no país e, consequentemente, na derrubada do veto da Anvisa, a Philip Morris, numa rara aparição pública de um alto executivo ao lado de políticos de carreira, se mostra empenhada em investir num projeto cheio de lacunas. 

Para em pé? 

Em apenas 15 páginas, o texto de Soraya tenta construir um suposto “sistema de regulação dos DEFs”, porém o discurso escorregadio chama mais a atenção do que a descrição do que seria esse “sistema”. 

A senadora, em nenhum momento, fala diretamente em derrubar a proibição da Anvisa, mas opta pelo uso de termos como “restringir, fiscalizar e controlar o consumo do produto” para fazer contraponto. Ou seja, vai de encontro ao posicionamento do órgão regulador pela proibição, mas pelas beiradas.   

A coisa piora quando a questão da saúde se mostra a Thronicke, que se coloca numa posição paradoxal: se, no projeto, há um genérico trecho sobre “defender a saúde”, na prática, a senadora se nega até mesmo a receber representantes da sociedade civil que atuam em favor da saúde pública. 

Tanto o texto principal como o parecer do relator, com apenas uma emenda proposta pelo próprio, reciclam argumentos que foram usados pela indústria na tramitação da proposta na Anvisa e acabaram rejeitados ou rebatidos. 

Muito do conteúdo de Gomes teve origem em estudos que foram financiados pelas corporações, como é o caso das pesquisas feitas pelo Instituto em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), citadas por Thronicke e pelo relator, e da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), usada pelo senador.

Apesar de os DEFs serem apresentados com ares de novidade, o argumento usado pela indústria e encampado pelos parlamentares é parte de uma estratégia antiga, usada, por exemplo, contra o aumento de impostos sobre os cigarros convencionais: “a potencialização de problemas já existentes”, como o contrabando. E o desenho de um cenário de caos para justificar medidas que beneficiem quem produz ou comercializa produtos derivados de tabaco no Brasil, especialmente as grandes corporações.

Soraya cita, na justificativa do projeto, que “pesquisas do Instituto em Pesquisa e Consultoria Estratégica apontam que houve aumento significativo no consumo: em 2018, 500 mil pessoas usaram algum tipo de cigarro eletrônico nos 30 dias anteriores à pesquisa”.  

Na sequência: “Já em 2022, esse número passou para 2,2 milhões de pessoas. Portanto, os pontos de preocupação citados, como o aumento exponencial de uso e a prevalência entre adultos já são uma realidade hoje. O consumo de adolescentes é igualmente preocupante, considerando os dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar de 2019: 16,8% dos adolescentes de 13-17 já experimentaram esses produtos, mostra clara de que a proibição não tem funcionado para endereçar a situação, demandando regras rígidas de comercialização”, ressalta a proposta. 

A proibição, segundo a senadora, significa falta de razoabilidade. “Não é razoável que, ao contrário de 84% dos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], o Brasil permaneça sem regras para esses produtos, deixando os consumidores à própria sorte com uma proibição ineficaz e que não reflete as melhores práticas legais e regulatórias sobre cigarros eletrônicos no mundo atual”, diz. 

Ela completa com um batido argumento econômico, de novo, herdado do discurso da indústria sobre contrabando: “Ao regular a venda e o acesso aos cigarros eletrônicos, não apenas reduzimos as chances de que esses produtos alcancem públicos mais vulneráveis, mas, também, poderemos contribuir para o financiamento de políticas públicas voltadas para o controle do tabagismo, por meio da arrecadação de impostos.” 

Eduardo Gomes, além de enfatizar a pesquisa do Ipec, despeja dados econômicos do trabalho da Fiemg para defender a aprovação. Ele insiste que “serão arrecadados mais de R$ 673 milhões de reais por meio da regulamentação do mercado de cigarros eletrônicos” e que a permissão deve gerar 55.767 novos postos de trabalho na agricultura e 14.378 empregos no comércio, além de inserir no mercado de trabalho formal pessoas que hoje estão na informalidade.

Afora esse pacote de números ser uma via de mão única financiada pela indústria do tabaco e não ter sólida base comprobatória, não leva em conta os impactos na saúde pública. Nem mesmo considera os custos em dinheiro para o Sistema Único de Saúde e à Previdência Social.  

Procurada pela reportagem do Joio via assessoria de comunicação, a senadora não se manifestou até o fechamento desta reportagem. Nem dado à sociedade civil nem ao Jornalismo, o acolhimento de Soraya Thronicke no caso dos dispositivos eletrônicos para fumar é privilégio da Philip Morris.

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Por dentro e de fora

O diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, apresentou, no dia 30 de novembro do ano passado, um relatório pela manutenção da proibição, aprovada inicialmente em 2009. No dia 12 de dezembro de 2023, foi aberta a consulta pública sobre o assunto, que durou até 9 de fevereiro deste ano e recebeu mais de 7,5 mil contribuições.  

Na ocasião, o relatório já rebatia muitos dos números que apareceram no projeto de Soraya Thronicke, principalmente os do Ipec. Por exemplo, Barra Torres utilizou como referência dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE), mostrando que 2,8% dos adolescentes brasileiros entre 13 e 17 anos fizeram uso de alguns desses equipamentos. O número é mais baixo do que em outros 60 países que produziram levantamentos semelhantes.

Thronicke tinha apresentado o projeto no Legislativo em outubro, antes da publicação do texto de Torres, mas quando já era conhecida a tendência da agência pela manutenção da proibição. 

Aliás, as discussões na Anvisa começaram em 2019. Portanto, na época em que Soraya levou o assunto ao Senado, a precedia uma fartura de documentos técnicos produzidos na Terceira Diretoria da agência, com embasamento para não autorizar a venda do produto. 

Em 29 de novembro de 2023, dia anterior à leitura do relatório de Barra Torres, a parlamentar tentou, novamente, se antecipar: fez um pronunciamento enfático no Senado em defesa da aprovação do projeto que assina.  

Somados aos movimentos mais “públicos” via Senado, a Philip Morris é sempre ativa nos bastidores da Anvisa. As pressões chegam de várias formas. E é nesse ponto que as manobras de Cássio Cunha Lima se associam às de Soraya Thronicke para além das fotos. 

Ele é useiro e vezeiro em participar de reuniões com os diretores da agência para apresentar “os argumentos da indústria”. E nunca está sozinho. Por exemplo, já contou com a parceria do ex-ministro do Tribunal de Contas da União e das Relações Institucionais José Múcio, atual ministro da Defesa do governo Lula. Mucio já admitiu publicamente administrar uma consultoria de gestão empresarial que faz “engenharia política” para clientes. 

Outras empresas do setor, obviamente, também usam nomes de ex-agentes públicos influentes para forçar a mudança de posição da Anvisa. A British American Tobacco (antes, chamada Souza Cruz) tem como consultora a farmacêutica Alessandra Bastos Soares, ex-diretora da agência (de 2017 a 2020) durante o governo presidido por Michel Temer (MDB).   

Hoje, Alessandra é executiva de negócios do escritório de advocacia “Tavares de Propriedade Intelectual”, que presta serviços para a ex-Souza Cruz. A ex-diretora é um fenômeno de porta giratória e uma das faces públicas – não que também não atue nos bastidores – da defesa da liberação. Participa frequentemente de “debates” financiados pela corporação multinacional de cigarros, inclusive em eventos promovidos por empresas jornalísticas.

Seminário “Cigarros eletrônicos — redução de riscos e a importância da regulamentação”, realizado pelo G.Lab, estúdio de branded content da Editora Globo, com o patrocínio da BAT Brasil e transmitido como conteúdo de marca nas redes sociais dos jornais O GLOBO e Valor. Foto: Reprodução

De heranças e giros 

Se o ex-senador Cássio Cunha Lima parece um figurante no mundo virtual de Soraya, a realidade mostra que não é bem assim. Lima é herdeiro de uma família tradicional na política paraibana. Exerceu mandato de senador até 2019 e chegou a ocupar a vice-presidência do Senado. 

Antes, fora governador da Paraíba por dois mandatos, deputado federal e prefeito de Campina Grande, segunda maior cidade do estado. No governo federal nos anos 1990, sob o mandato do então presidente Itamar Franco, ocupava o cargo de superintendente da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). 

Tal trajetória só foi possível pela construção de um típico espólio do coronelismo político que por aqui habita. Ronaldo Cunha Lima, pai de Cássio, também foi governador, prefeito na mesma cidade, deputado estadual e federal.

Com essa herança, mesmo sem a reeleição no pleito de 2018, Cássio teve lastro para pular para o outro lado do balcão e passou a se apresentar como consultor de empresas. A atividade é baseada no “conhecimento” e experiência adquiridos como político, para garantir acesso fácil e direto a ex-colegas do Executivo e Legislativo. 

Caso clássico de porta giratória, o ex-parlamentar usa facilidades e contatos da carreira pública para exercer atividades de interesse privado, trabalhando para poderosos clientes. 

É incumbido dessa tarefa que, atualmente, ele percorre os corredores que bem conhece na Câmara e no Senado. Não mais na condição de congressista. Agora, Cássio faz os trajetos com os sapatos de lobista da Philip Morris Brasil.

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