O Joio e O Trigo

Cigarro: o ecossistema do contrabando

Objetivo central de entidades ligadas aos fabricantes é convencer o poder público a reduzir impostos sobre o tabaco, sem levar em conta uma política que tem conseguido reduzir o número de fumantes no Brasil

Cenas de carros em alta velocidade, lanchas tunadas, veículos com máquinas de fumaça acopladas no escapamento para despistar perseguidores e toneladas de produtos apreendidos. No formato série e documentário na íntegra, “Cigarro do Crime” é o principal material disponível na página do YouTube do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP).

Produzido pela extinta Vice Brasil e dirigido pelo conceituado documentarista João Wainer, é o único vídeo publicado com milhares de espectadores. Com estilo de filmes policiais, com cortes rápidos e cenas de ação, o documentário trata de como funciona o contrabando de cigarros do Paraguai para o Brasil e relaciona a atividade a uma forma de crime organizado.

O filme falha em comprovar duas teses preciosas para quem está por trás dele: que os cigarros paraguaios são mais nocivos à saúde dos consumidores do que os similares brasileiros e a suposta participação do crime organizado no contrabando de cigarros, notadamente o Primeiro Comando da Capital (PCC). A negativa vem de um insuspeito Lincoln Gakiya, promotor de Justiça que investiga a facção criminosa nas duas últimas décadas.

Se erra em dois alvos, o filme martela outros pontos importantes para o FNCP, que o patrocina. É o caso da tese de que a política de preços e impostos adotada pelo governo federal para encarecer o cigarro brasileiro é a principal responsável pela inundação do mercado nacional pelos contrabandeados do Paraguai – estratégia que, segundo especialistas em economia do tabaco, é a mais eficaz na redução do tabagismo em todo o mundo.   

O Brasil foi o segundo país a cumprir, na década passada, a meta da Organização Mundial de Saúde (OMS) para a queda do número de fumantes. Em dez anos, a redução foi de 40%. Além da cobrança de impostos mais altos, a restrição à publicidade e ao patrocínio de eventos culturais e esportivos fazem parte das medidas responsáveis pela mudança.

O FNCP – assim como o Grupo de Proteção à Marca (BPG), o Instituto Brasil Legal (IBL), o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) e a Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) – tem entre suas atividades cooperações com órgãos públicos, participação no Conselho Nacional de Combate à Pirataria, do Ministério da Justiça, e atuação no Congresso Nacional em defesa das fabricantes de cigarro neste tema. Um dos principais lobbies da entidade do Legislativo é pela aprovação de um projeto de lei que aumenta as penas para o crime de pirataria.


Apesar de tantos nomes diferentes, a atuação dessas e outras entidades se mistura. Misturados também estão alguns de seus dirigentes.

Juntinho com a imprensa

O ETCO é um ótimo exemplo disso. O Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial tem uma divisão específica pra tratar dos produtos derivados do tabaco, com participação direta da BAT, a British American Tobacco – uma das maiores fabricantes do mundo que, por aqui, ficou conhecida por décadas como “Sousa Cruz”, mas foi vendida para a corporação britânica em 1914.  


O ETCO tem em comum com o Fórum Nacional Contra a Pirataria e o Instituto Brasil Legal seu presidente, Edson Luiz Vismona. Ele também tem laços com o poder público: foi secretário estadual da Justiça de São Paulo na gestão Mário Covas.

No ETCO, Vismona trabalha junto com Delcio Sandi, executivo da BAT desde 2004 que faz as vezes de presidente do conselho de administração da entidade.

O instituto já teve como presidente o embaixador Roberto Abdenur, que havia sido secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores. E, ainda, Evandro do Carmo Guimarães, que antes foi vice-presidente de Relações Institucionais da Rede Globo por 13 anos.

Para Fernando Rabossi, professor de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ), a ida de Guimarães para o comando da ETCO ajuda a explicar a capacidade da entidade de emplacar reportagens, mesmo com dados de fontes duvidosas, e o apoio de veículos da grande imprensa para seminários de interesse da indústria do fumo.

Veículos de grande circulação como Estadão, Folha, Valor, Exame e Correio Braziliense foram parceiros do ETCO na produção de seminários sobre pirataria, por exemplo.

Em parceria com o Valor Econômico, o ETCO realizou em 2019 um seminário sobre tributação que foi acompanhado por um caderno especial publicado no jornal. Foto: Divulgação/ETCO

A iniciativa de criar eventos em conjunto com jornais e revistas se mostrou eficiente para conseguir espaço para a divulgação de reportagens de interesse da entidade. Também alavanca seus integrantes à condição de especialistas a serem entrevistados e ajuda, inclusive, na divulgação de dados preparados por parceiros. A criação deste tipo de evento também se tornou uma fonte de dinheiro interessante para esses mesmos veículos de comunicação – mesmo que isso crie conflitos de interesses que possam afetar sua credibilidade.

Em seu último relatório de atividades disponível, de 2020, a entidade estima que teria gasto cerca de R$ 3,6 milhões com publicidade caso não tivesse “conquistado” tanto espaço na mídia.

Modelo exportação

Rabossi tem acompanhado essa teia de interesses que envolve a indústria do tabaco faz mais de 20 anos. Argentino, chegou ao Brasil no final dos anos 1990 para fazer seu doutorado no Museu Nacional. Seu tema era a globalização e as relações comerciais da fronteira. Neste trabalho, ele acompanhou a vida de sacoleiros e camelôs. Um exemplo foram os comerciantes de Caruaru, que viajavam para o Paraguai para vender roupas e compravam eletroeletrônicos para revender na famosa feira da cidade pernambucana.

“Comecei a notar uma mudança em quem era o autor dos dados mais divulgados pela imprensa sobre contrabando. Os auditores da Receita Federal perderam espaço para as associações ligadas às empresas, como a ETCO e o FNCP”, afirma. Começou uma espécie de guerra de narrativas, na qual as entidades muitíssimo bem articuladas com a imprensa saíam ganhando.


Desde então, a atuação dessa miríade de entidades e sua relação com a indústria do tabaco passaram a ser focos das suas pesquisas. De acordo com Rabossi, a experiência no Brasil também serviu de modelo para a atuação da indústria do fumo em outros países da América Latina.

Em 2015, por exemplo, diversos veículos repercutiram o informe “O custo do contrabando”, feito por uma outra entidade que ainda não mencionamos: o Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (Idesf).

Imagem: Reprodução/ O custo do contrabando, 2015

De acordo com o Idesf, o cigarro seria o produto mais contrabandeado do país, representando 67,4% do total de mercadorias ilegais circulando por aqui. O número, por sua vez, saiu de uma pesquisa da Empresa Gaúcha de Opinião Pública e Estatística (Egope), que fez um malabarismo matemático para chegar ao resultado desejado.

No balanço aduaneiro de 2014, o cigarro representou 28,6% das mercadorias apreendidas. Para conseguir chegar aos 67%, explica, o informe nacionaliza os dados de Foz do Iguaçu e exclui da lista quatro itens: veículos, outros produtos, mídia ótica gravada e mídia ótica não gravada. Depois nacionaliza os mesmos dados usando os números preparados.

O Idesf foi criado por Luciano Stremel Barros que, por 12 anos, foi representante da Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF), com sede em Foz do Iguaçu. Economista de formação, Stremel decidiu criar o Idesf neste período. Ele conta que trabalhava como consultor de empresas para diversos temas, inclusive hotelaria, quando viu a oportunidade de se especializar nas questões relacionadas às fronteiras.

“De lá para cá, visitei toda a fronteira seca do Brasil do extremo Norte ao extremo Sul”, contou ao Joio. O instituto trata de diversos temas de fronteiras, com cursos inclusive de pós-graduação, editora de livros e produção de pesquisas.

O pai de todos

A ABCF é a mais antiga das entidades do ecossistema do contrabando. Criada em 1992, hoje ela é presidida pelo delegado federal aposentado João Carlos Sanches Abraços – ligado ao ex-diretor da Polícia Federal Paulo Lacerda, que também prestou serviços para a associação.

Até pelo perfil de seu presidente, a ABCF posa com ares mais técnicos, de diálogo com os órgãos públicos que atuam no setor, enquanto as demais entidades investem em uma atuação mais política e empresarial.


Ao Joio, Edson Vismona, do ETCO – a grande entidade que substituiu a ABCF –, deixou escapar que a relação direta da associação com escritórios de advocacia poderia configurar conflito de interesses, porque essas bancas trabalham diretamente para clientes que têm seus direitos de marca violados.

No perfil profissional na página de seu escritório, o fundador da ABCF, Fernando Ramazzini, se apresenta como “pioneiro no combate à pirataria”.

Também advogado, Rodolpho Heck Ramazzini é o atual diretor de comunicação da associação. Ele é dono de uma empresa de serviços investigativos, que segundo seu site, atua em “investigações e trabalhos de inteligência especializados em pirataria, combatendo crimes relacionados à falsificação, a fraudes no comércio, à sonegação de impostos, à concorrência desleal e a furto continuado em empresas”.

O escritório Pinheiro, Nunes, Arnaud e Scatamburlo Advogados, igualmente especializado em propriedade intelectual, também faz parte da entidade. Procurada, a ABCF não respondeu aos contatos do Joio.

Inflacionando o problema

O dado dos quase 70% não é a única coisa estranha nessa história. Depois da pesquisa do pequenino Egope, contratado pelo Idesf, o gigante Ibope Inteligência entrou no samba –, desta vez contratado pelo Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade. Novamente, o mercado ilegal de cigarros parece ter sido superdimensionado.

O pesquisador sênior do Instituto Nacional do Câncer (Inca) André Szklo afirma que o Brasil é um país com pesquisas públicas sobre tabagismo e que, portanto, não depende dos dados apresentados pela indústria. “Nossos números apresentam uma diferença expressiva. Hoje, por exemplo, nós estimamos o mercado ilegal em 10% abaixo do número que eles apresentam”, afirma.

Para Szklo, um dos maiores indícios de que os dados são manipulados para defender os interesses das fabricantes de cigarros é que o número de unidades produzidas legalmente fica abaixo dos números oficiais da Receita Federal. “Os nossos dados têm relação com a situação macroeconômica, diferentemente dos deles”, compara.


Szklo afirma que o mercado ilegal no Brasil, segundo os dados de 2019, é de pouco menos de 39%. Um problema grave – mas muito menor do que o apresentado pelas empresas.

Em nota, a assessoria de comunicação do Ipec Inteligência, sucessor do Ibope Inteligência, afirma que “podem existir discrepâncias sobre os números dos consumidores de cigarros legais e ilegais em função da metodologia utilizada por cada instituto”. Segundo a empresa, área de abrangência da pesquisa, método de coleta, público pesquisado, tipo de pergunta podem ser alguns dos fatores que expliquem a diferença.

O Ipec Inteligência afirma ainda “desconhecer a metodologia do Inca para fazermos qualquer análise que ajude a entender as possíveis diferenças entre os resultados das duas pesquisas.” Já Szklo, do Inca, afirma que sua metodologia “está publicada em artigos científicos que passaram por revisão por pares e a pesquisa deles não tem nada além de uma informação geral sem que conheçamos os detalhes cruciais da amostra e análise”.

Depois da publicação da reportagem, o FNCP enviou uma nota (acesse a íntegra aqui) em que “ressalta a relevância e a seriedade da pesquisa”. De acordo com o Fórum, “o Ipec, antigo Ibope, é um instituto de pesquisa reconhecido internacionalmente” e a pesquisa patrocinada pela entidade é a “única” que “analisa o consumo de cigarros ilícitos por meio de entrevistas presenciais com fumantes e com recolhimento das embalagens para checagem”. O segmento pesquisado, afirma o Fórum, “representa 77% da população, com todas as regiões geográficas contempladas”.

“Por esses motivos, a incidência do mercado ilegal apresentada anualmente pelo Ipec difere dos dados trabalhados pela comunidade de controle do tabaco, que tomam como base a pesquisa do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), feita por telefone e com base apenas nos dados da produção legal brasileira”, diz a nota.

Szklo contesta a afirmação. De acordo com ele, a última pesquisa do Inca usa não só os dados do Vigitel, como também da Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE. Além disso, diz, foram realizadas entrevistas presenciais com fumantes de duas cidades e recolhidos maços de cinco capitais brasileiras. “Dizer que se entrevista os fumantes de uma cidade não diz muito, pois você pode selecionar os fumantes que quer entrevistar. Nós entrevistamos os fumantes de forma aleatória. Não há recolhimento do maço do fumante, mas há recolhimento do maço descartado na rua em cinco cidades. E mesmo nessas cidades, os dados não coincidem.”

Mas o fato é que de posse de números grandiosos de contrabando, a solução apresentada tanto pelas entidades-satélite das empresas quanto por elas próprias, é reduzir o imposto e o preço mínimo dos cigarros. A lógica é que cigarros legais mais baratos teriam condições de competir com o produto contrabandeado.

André Szklo rebate com veemência a suposta “solução”. O pesquisador do Inca lembra que, no Brasil, o preço mínimo não é reajustado desde um longínquo 2017. Levando em conta a inflação do período, o cigarro já está mais barato do que seis anos atrás.

Atualmente, o cigarro brasileiro já é o segundo mais barato da região das Américas. E, além disso, a desvalorização do real no mercado internacional tornou o produto ilegal mais caro, o que o tornou menos atrativo ao consumidor.

Szklo, Rabossi e outros especialistas no assunto ligados a universidades e instituições públicas defendem o contrário: a continuidade da elevação dos impostos e preços, política que tem se mostrado eficiente na redução no número de fumantes no Brasil.

Nos últimos anos, no entanto, com o preço congelado, um problema já pode ser detectado. “O número de fumantes de 18 a 24 anos, que é uma faixa etária de entrada no consumo, parou de cair. Esta estagnação pode ter consequências futuras”, alerta Szklo.

Marcas “de combate”?

Vismona evita usar a expressão redução de preços e fala em “equalização”. A estratégia, segundo ele, seria criar uma única marca para fabricantes interessados em concorrer diretamente com o cigarro contrabandeado. Esta marca “de combate” teria o imposto menor durante um período para desarticular o sistema e as indústrias paraguaias ligados ao crime. Ele evita cravar qual prazo seria este.

Para ele, não é possível combater o contrabando apenas com medidas policiais: é preciso asfixiar a concorrência desleal também com medidas econômicas. Vismona também é crítico da possibilidade de fiscalizar melhor o destino da produção de tabaco do Brasil, que alimenta as indústrias paraguaias, muitas vezes com transações igualmente clandestinas. “Os fabricantes buscariam outros fornecedores e iríamos penalizar ainda mais o produtor brasileiro”, diz.

Edson Luiz Vismona. Foto: Rodrigo Rossi/ Câmara Municipal de Caxias do Sul.

O Brasil é o principal exportador de tabaco para o país vizinho. Para manter a produção no mesmo patamar, os paraguaios teriam de apelar para o tabaco chinês.

Stremel, do Idesf, também defende a criação das marcas “de combate”, mas é mais contundente ao falar de prazos. Para ele, a estratégia poderia ser aplicada de seis meses a dois anos, dependendo do monitoramento feito para medir sua eficiência.

Mas, diferentemente de Vismona, ele admite que não é a única alternativa. “O Brasil tem discutido até mesmo uma moeda única dentro do Mercosul, poderia trabalhar para que os outros países passassem a cobrar impostos semelhantes sobre o cigarro”, afirma, para concluir: “Uma política unificada para o tabaco e seus produtos seria um gol de placa. ”

Stremel afirma que as diferenças de taxações e impostos são fundamentais para criar um mercado clandestino cada vez mais sofisticado nas fronteiras. “Junta-se a isto a falta de políticas sociais específicas para as fronteiras”, diz. Com poucas possibilidades, muitos moradores destas cidades acabam se tornando mão-de-obra barata para o comércio ilegal. Para ele, os produtos de contrabando são os mais variados possíveis, conforme as regiões de entrada no país e podem sofrer mudanças conforme a época. “Temos agora sinais de um crescimento da entrada irregular de vinho argentino, por exemplo”, cita.

Exportabando

A ação das entidades no combate à pirataria passa longe também de outro ponto delicado para as empresas, a suspeita de que elas criaram a rota de contrabando para conseguir vender cigarros com menor tributação no Brasil. “Executivos da BAT admitiram que era uma estratégia internacional da empresa em investigações internacionais. Ao vender o produto para um país que cobrava menos impostos, conseguia vender depois mais barato no mercado de destino”, afirma Rabossi.

O contrabando de cigarros para o Brasil teria começado em pequena escala nos anos 1970, quando seu principal atrativo era a comercialização de marcas caras internacionais, algumas inclusive que não eram vendidas no Brasil. O volume também era pequeno.

Nos anos 1990, o contrabando ganhou escala, assim como a venda de marcas brasileiras, produzidas pelos grandes fabricantes. Como a exportação para o Paraguai era bem maior do que seu mercado consumidor, os pesquisadores não têm muitas dúvidas de que houve conivência destes fabricantes. Mais do que isto: suspeitam de que eles próprios criaram a ponte para que os produtos contrabandeados chegassem ao mercado brasileiro.

Na época, a exportação de cigarros para países do Mercosul não era taxada. A situação muda no final dos anos 90, quando o Brasil passa a cobrar impostos sobre a exportação. Com os canais de contrabando abertos, os paraguaios passam a se estabelecer com produtos para atender o cliente que buscava um cigarro mais barato.

Presidente do Paraguai entre 2013 e 2018, Horácio Cartes se tornou o principal empresário do setor naquele país, com investimento em marcas próprias de baixo custo, cujo principal mercado é o contrabando para o Brasil.

.Horácio Cartes. Foto: Foto: Luis Astudillo C. / Cancillería del Ecuador (CC BY-SA 2.0)

Um problema diplomático

O especialistas em economia do fumo Roberto Iglesias lembra que o método de contrabando pelas próprias empresas para escapar de impostos era usado também no Porto Livre de Colon, no Panamá, para alcançar a Colômbia, e nos territórios indígenas dos Estados Unidos.

Para Iglesias, o que chama a atenção com relação ao combate ao contrabando de cigarros do Paraguai é a falta de ações diplomáticas e de governo fora da esfera policial. Uma das medidas seria o próprio controle da produção de tabaco no Brasil. “Muito do cigarro paraguaio é produzido com tabaco brasileiro, inclusive retirado ilegalmente do país”, afirma.

Um estudo feito em 2013 pela pesquisadora Aline Biz indica que em torno de 50% do tabaco brasileiro – ou seja, a matéria-prima – se tornou oficialmente cigarro entre 2000 e 2012. O excedente pode ter servido para alimentar mercados clandestinos. Um estudo semelhante com a mesma metodologia foi feito em 2018.

A atuação do Ministério das Relações Exteriores do Brasil é apontada por estes especialistas como dúbia. Ao mesmo tempo que não é contundente com o Paraguai para minar o contrabando em sua origem, tende a ser favorável aos interesses das empresas, que transformam o discurso contra o contrabando em uma arma tributária. Procurada pelo Joio, a pasta não deu retorno.

Um dos possíveis motivos seria a influência do embaixador Luiz Felipe Lampreia, morto em 2016. Filho, neto e bisneto de diplomatas, ele tinha grande ascendência dentro do Itamaraty e foi chanceler do Brasil durante boa parte dos governos de Fernando Henrique Cardoso. Quando se aposentou, Lampreia foi do conselho de administração de diversas empresas, entre elas a BAT.

Rede intrincada

A rede de influências das empresas inclui espaços dentro da academia e dos governos. Um dos nomes favoráveis à indústria do tabaco dentro do Ministério da Justiça durante a gestão do ex-juiz e agora senador Sergio Moro (UB-PR) foi o professor e economista Pery Shikida, nomeado para o Conselho Nacional de Políticas Criminal e Penitenciária.

Shikida escreveu artigos defendendo a redução dos impostos sobre o cigarro como forma de combater o contrabando. Ele participou ao lado de Edson Luiz Vismona de seminários financiados pelo FNCP que trataram da proposta. O economista também escreveu artigos com base em dados do Idesf em que sustenta que o contrabando também é responsável por trabalho infantil e evasão escolar em cidades de fronteira.

Além de pesquisadores ligados organicamente às fabricantes de cigarro, existem outros que não hesitam em receber apoios pontuais destas empresas.

É o caso de Leandro Piquet Carneiro, professor do Departamento de Ciência Política e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP). Ele participa também da Rede Interamericana de Desenvolvimento e Profissionalização Policial e recebeu o financiamento da PMI Impact, programa global da Philip Morris International para um curso de capacitação de policiais de fronteira para o combate ao comércio ilegal.

Assim como Shikida, Carneiro tem relações estreitas com o poder público. Ele foi por cinco anos do Conselho da cidade do Rio de Janeiro e participa dos conselhos de Segurança Pública da cidade de São Paulo, da Secretaria de Segurança Pública paulista e do “Brasília Vida Segura”, um programa de consumo consciente de álcool. Participou da organização de fóruns sobre combate ao crime na Fundação FHC, é ligado ao Instituto Millenium e foi coordenador do programa de governo do presidenciável Felipe D’Ávila (Novo) em 2022. O pesquisador é um dos divulgadores no Brasil da Política de Tolerância Zero do ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani.

Como o Joio já mostrou, o Ministério da Justiça não era o único foco favorável ao tabaco na gestão Bolsonaro. Nelson Andrade Junior, chefe de gabinete da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo do Ministério da Agricultura, atuou contra a Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle Do Tabaco (Conicq), mesmo tendo assento nela. O ministro Onyx Lorenzoni (PL), primeiro da Casa Civil e depois do Trabalho e Previdência, também participou das articulações, cujo resultado positivo foi comemorado pelo próprio presidente Jair Bolsonaro.

Lorenzoni, depois, como candidato ao governo do Rio Grande do Sul, fez campanha no Vale do Rio Pardo com o discurso em defesa dos produtores de tabaco. “A indústria do tabaco gera milhares de oportunidades. São milhares de famílias que são sustentadas e, nos governos anteriores, uma série de pedras eram colocadas”, afirmou. Ele fez campanha na região ao lado do deputado federal Marcelo Moraes (PL) e da estadual Kelly Moraes (PL), ambos filhos de Sérgio Moraes e ligados ao setor.

Marcelo faz parte da bancada do fumo, ao lado de colegas como Alceu Moreira (MDB), Luiz Carlos Heinze (PP) e Heitor Schuch (PSB), todos do Rio Grande do Sul. Presidente da Frente Parlamentar Mista de Combate ao Contrabando e à Falsificação, Efraim Filho (UB-PB), também se notabilizou pela defesa dos interesses da indústria, tanto em artigos pela redução da taxação como em projeto para criminalizar a falsificação de cigarros. Quando o financiamento eleitoral de empresas era permitido, Efraim recebia o apoio financeiro do setor. Outro deputado que demonstrou alinhamento foi Chiquinho Brazão (Avante-RJ), que apresentou um projeto para tornar o contrabando de cigarros um crime hediondo.

O lobby também está articulado internacionalmente dentro de organizações de segurança pública com forte apelo para a direita na América do Sul, como mostra Rabossi. O Fórum Parlamentar de Inteligência e Segurança, cuja 16ª edição foi realizada em 2019 em Brasília, teve a participação da Philip Morris International. O evento é capitaneado pelo senador republicano dos Estados Unidos Robert Pittenger, que teve como anfitriões no Brasil os deputados Sargento Gurgel (PL-RJ) e Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Pittenger entrevistou Vismona para um podcast da entidade.

Também esteve no Brasil para participar do fórum o diretor regional da Crime Stoppers para o Caribe, Bermudas e América Latina, Alejo Campos. Ele também participa Aliança Latino-Americana Anti Pirataria. A Crime Sttopers é uma organização dos Estados Unidos criada para receber denúncias anônimas para o esclarecimento de delitos. A entidade recebe financiamento da Philip Morris International.

Por Redação

Matérias relacionadas