O Joio e O Trigo

A ex-Souza Cruz de mãos dadas com grupos de comunicação na defesa dos cigarros eletrônicos

, especial para O Joio e O Trigo

Parcerias vestidas como informativas misturam executivos da corporação do tabaco com o jornalismo de interesse privado no limbo do conteúdo patrocinado

Quem segue o debate sobre a regulamentação do cigarro eletrônico no Brasil já deve ter ouvido falar de Lauro Anhezini Junior, “especialista” citado em pelo menos 15 matérias e convidado de dois seminários de veículos jornalísticos pertencentes a grandes grupos de comunicação do país. 

Sempre, nos textos ou em eventos, ele discursa a favor da liberação dos Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEfs). Lauro não é cientista. E não prioriza argumentos embasados sobre como o cigarro eletrônico é supostamente menos prejudicial à saúde humana, se comparado ao cigarro tradicional. 

Ele também não é economista. Não mostra preparo na avaliação dos presumidos benefícios tributários que a liberação dos DEFs geraria para a macroeconomia brasileira e para as contas da saúde pública. 

Em realidade, Lauro é o principal lobista pela liberação dos DEFs da BAT Brasil, antiga Souza Cruz, subsidiária brasileira da multinacional britânica British American Tobacco – uma das maiores empresas de tabaco do mundo – cujas marcas incluem Lucky Strike, Kent e Dunhill.

Diante da tendência global de redução dos fumantes de cigarros convencionais no mundo nas últimas décadas, a BAT aposta nas novas tecnologias – que incluem os vaporizadores (também chamados de vapes) e produtos de tabaco aquecido. 

Lauro tem um papel importante nisso. Ele está ajudando a empresa a abrir um novo mercado no Brasil, por meio da liberação do cigarro eletrônico, já que somos um dos países que menos usa tabaco no mundo, com apenas 9% da população declarada fumante, de acordo com dados internacionais publicados em 2021. 

Como a Anvisa proíbe os DEFs desde 2009, a BAT pressiona a agência pela  liberação. Não só fazendo lobby tradicional, mas, também, usando grupos de comunicação para influenciar a opinião pública. 

A ideia espalhada é de que os cigarros eletrônicos fazem menos mal à saúde e ajudam as pessoas a pararem de fumar o cigarro tradicional; e que a liberação contribuiria com a economia brasileira e com o combate ao mercado ilegal.

A empresa publicou 37 conteúdos patrocinados em oito jornais do país entre novembro de 2021 e dezembro de 2023, segundo levantamento de O Joio e o Trigo

Apuramos o conteúdo publicado entre 2017 e 2023 pelas dez publicações jornalísticas  com maior audiência na internet – O Globo, Folha de S. Paulo, Veja, Estado de S. Paulo, CNN Brasil, Valor Econômico, Poder360, Exame, IstoÉ e Zero Hora. Entre esses 37 conteúdos patrocinados foram realizados três seminários, um podcast e publicadas 26 matérias patrocinadas

Mais de 85% do conteúdo saiu no segundo semestre de 2023, sinalizando uma estratégia de influência concentrada no período da reunião da Anvisa sobre a liberação dos DEFs, realizada em novembro do ano passado. A Folha organizou o seminário “Cigarro Eletrônico: Importância da Regulamentação no Brasil”, patrocinado pela BAT, um dia antes do encontro na agência reguladora, que ocorreu no dia 30 de novembro de 2023. 

Seis meses antes, Lauro Anhezini Junior esteve no jornal para uma visita, junto com a gerente de comunicação externa da corporação, Fernanda Ferreira, para planejar a  parceria entre o jornal e a fabricante de tabaco que, além do seminário, incluiu matérias patrocinadas e publicações na versão impressa do jornal. 

Apesar de não ser um dos participantes do seminário, Lauro foi um dos “especialistas” nos outros dois seminários patrocinados – realizados pelo Poder360 e pela Globo (e transmitido e divulgado também pelo Valor Econômico). 

O trabalho de Lauro na mídia o destacou. Tanto que ele foi promovido na corporação, de chefe de relações científicas e regulatórias para diretor de assuntos regulatórios e científicos, em dezembro do ano passado.

Trio eletrônico   

Ele não é o único integrante da BAT que tem feito o trabalho de lobby e marketing ao mesmo tempo, vestindo a máscara de especialista independente “preocupado” com a saúde da população. 

Carolina Fidalgo participou do seminário da Folha como “advogada especialista em regulação sanitária”. Esse é a especialidade em que ela é destacada na divulgação do seminário e nas publicidades pagas. No entanto, na verdade, como advogada, ela representa os interesses da BAT desde 2019. Ela já esteve à frente de processo movido pela BAT contra a agência, ou em recursos negados pela Anvisa, caso do que consta desta ata, de 2021.

Hoje, é sócia no escritório Rennó Penteado Sampaio – Advogados, onde já atuou em pelo menos três casos como advogada da corporação. Esse vínculo não é mencionado nenhuma vez pela Folha. Nem pela Veja, que publicou a matéria patrocinada “Cigarro eletrônico: uma alternativa na redução de danos para fumantes”, com o subtítulo “Evidências científicas revelam que o dispositivo pode ser até 95% menos prejudicial quando comparado ao cigarro convencional,” em setembro de 2023, três meses antes da reunião da Anvisa. 

Além da advogada da empresa, a matéria também entrevista a “farmacêutica e ex-diretora da Anvisa” Alessandra Bastos. O que a matéria não menciona é que Alessandra atua como consultora científica da BAT Brasil desde 2021. A matéria também não menciona de forma explícita que se trata de um “conteúdo patrocinado”. 

Aliás, em nove das matérias patrocinadas (publicadas por O Globo, Veja, CNN Brasil e Valor Econômico) Alessandra é a “entrevistada” e a ligação dela com a empresa não é mencionada.  

No conteúdo pago pela BAT a CNN, “Mitos e verdades: o que é real e fictício sobre cigarros eletrônicos”, o médico Renato Veras é outra “fonte” entrevistada sobre a “importância” do cigarro eletrônico para a redução de danos no tabagismo. Em nenhum lugar, é mencionado que ele é consultor da BAT Brasil.

Nesse bolo de nomes e siglas, reside outro problema fundamental na comunicação de larga escala feita pela mídia corporativa: o nome da megaempresa é reconhecido pelo imaginário popular brasileiro como Souza Cruz e imediatamente relacionado ao tabaco. 

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O velho normal 

Alternativas vendidas como soluções ao cigarro tradicional, os riscos dos vapes reúnem cientistas, médicos e profissionais pelo mundo. Já se fala em “epidemia” de vaporizadores em alguns países. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em dezembro de 2023, apelou a medidas urgentes para abordar tendências alarmantes no uso de DEfs pelos jovens. Segundo a organização, os produtos contêm substâncias tóxicas que causam câncer e outras doenças. E o uso aumenta o risco de problemas cardíacos e pulmonares; pode afetar o desenvolvimento do cérebro e o desenvolvimento fetos em mulheres grávidas.

“Existe um consenso científico de que o cigarro eletrônico é prejudicial à saúde humana,” Vera Luiza da Costa e Silva, secretária executiva da Conicq – Comissão Nacional para a Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco –, disse ao Joio. “O uso de cigarros eletrônicos causa dependência e pode levar a danos pulmonares graves, incluindo Evali (E-cigarette or Vaping Product Use Associated Lung Injury), doenças respiratórias, doenças cardiovasculares, câncer, tosse, irritação na garganta, convulsões, além de queimaduras por explosão do produto.”

Porém, existem estudos – muitos deles financiados pela indústria de tabaco – que apontam danos reduzidos. O estudo mais querido pela indústria do tabaco foi citado nos três seminários patrocinados pela BAT, no podcast e em várias das matérias, O material foi publicado pelo King’s College London, em 2015 (e depois atualizado em 2022). 

A pesquisa, chamada pela BAT de “independente” e a “maior revisão científica sobre o tema” analisa 400 estudos sobre vapes e chega à conclusão de que cigarros eletrônicos são 95% menos prejudiciais à saúde do que cigarros tradicionais. 

Ele foi duramente criticado por parte significativa da comunidade científica, não só pela  metodologia, mas, também, pelas ligações entre os autores dos estudos que construíram a base da análise alinhada à indústria do fumo.

“A indústria do tabaco tem um objetivo: vender produtos mais viciantes,” Caroline Renzulli, diretora de comunicação na organização antitabagista estadunidense Campaign for Tobacco Free Kids, declarou a nossa reportagem. “Qualquer informação proveniente de uma empresa de tabaco não deve ser isenta desse contexto. As empresas tabaqueiras não são uma fonte credível de informação sobre saúde.”

“A indústria do tabaco tem um objetivo: vender produtos mais viciantes,” segundo Caroline Renzulli, diretora de comunicação da Campaign for Tobacco Free Kids, Adobe Stock

Brasil em cena

A epidemia de tabaco mata 8 milhões de pessoas ao redor do mundo a cada ano, 161.853 dessas mortes ocorrem no Brasil. 

E apesar de o país estar entre os que menos fuma, é o maior exportador de tabaco do mundo, posição ocupada há mais de 30 anos. A grande maioria da produção de tabaco ocorre na Região Sul, onde trabalhadores são frequentemente encontrados em situações análogas à escravidão e de trabalho infantil.  

As empresas de cigarro, como a BAT, falam da importância das safras de folhas de fumo para a economia de vários municípios do Sul, como São João do Triunfo, no Paraná, e Canguçu, no Rio Grande do Sul, mas não explicam o estrago real que o tabaco traz  não só para a economia, mas, também, para a saúde pública. 

De fato, as despesas do SUS para o tratamento de doenças provocadas pelo tabagismo são três vezes maiores do que os tributos pagos pela indústria aos cofres públicos, segundo estudo da Fiocruz e do Instituto de Efectividad Clínica y Sanitaria, da Argentina, que tiveram o apoio da ACT – Promoção da Saúde, organização da sociedade civil com sede no Brasil, para iniciar as pesquisas.

O Brasil ratificou a Convenção-Quadro da Organização Mundial da Saúde (CQCT/OMS) em 2005. O primeiro tratado internacional de saúde pública da OMS determina ações de controle da epidemia de tabagismo, estabelecendo regulamentações sobre comércio ilegal, impostos e publicidade do cigarro. 

Entretanto, vem de mais de um século a relação das corporações de tabaco com o imaginário popular. Entre 1910-1930 eram comuns  propagandas de crianças e até do Papai Noel fumando cigarros. Ali, a Souza Cruz já era considerada uma das maiores anunciantes do Brasil. 

Os primeiros passos, em termos de políticas públicas mais abrangentes contra o uso de desinformação pela indústria para confundir o público, só começaram a ser dados em 1996, quando foram implementadas leis que restringiram as propagandas de cigarro – nas rádios, TVs, jornais e nos pontos de venda. 

“No Brasil, por exemplo, a Lei 9.294/96 proíbe a publicidade de cigarros em diversos meios de comunicação,” explica Vera Luiza, da Conicq. “Entretanto, a produção de conteúdo informativo, por exemplo, não está proibida. Assim, as empresas de tabaco ainda podem disfarçar a publicidade como conteúdo informativo, como artigos de opinião ou reportagens especiais. Isso pode confundir o público e levá-lo a acreditar que o conteúdo é ‘imparcial’.”

Além do conteúdo patrocinado, a BAT investe em artigos de opinião publicados por integrantes da empresa. Foram publicados oito artigos desse tipo, ao longo dos seis anos pesquisados pela reportagem do Joio.

Alessandra Bastos, ex-Anvisa, foi a principal executora da estratégia, publicando cinco artigos de opinião em três jornais (O Globo, Folha e Exame) que justificam a liberação do cigarro eletrônico no Brasil. “Eu não sou fumante,” ela escreve no texto “A Anvisa deve liberar o cigarro eletrônico no Brasil? SIM”, publicado pela Folha em dezembro de 2021. “Mas não é preciso sequer ser simpatizante desse hábito para falar de saúde, estar disposto a abraçar novas tecnologias e a lutar pelo direito de escolha de todos, defendendo ativamente essa regulamentação.”

“Despatrocinar” é preciso 

O conteúdo patrocinado é coisa disseminada por um antigo diretor de marketing do McDonald’s, Larry Light, a partir de 2004. E tem aumentado como fonte de financiamento para jornais que perderam leitores e anunciantes com a digitalização do jornalismo. A ideia é apresentar uma publicidade com técnicas jornalísticas, não para vender um produto, mas para promover marcas, divulgando conteúdo “informativo”. 

A BAT, por exemplo, não pode usar conteúdos para vender diretamente uma marca de vape. Então, opta por publicar conteúdo patrocinado, semelhante, no formato, a uma reportagem. Na verdade, é uma “venda” insidiosa, que se utiliza do formato jornalístico, mas é incompatível com a ética inerente ao jornalismo de interesse público.         

O conteúdo patrocinado é considerado duas vezes mais memorável do que publicidades normais, segundo estudo realizado em 2016. A pesquisa também mostra que pessoas tendem a enxergar esse material como “mais positivo”, porque acreditam na “função educativa” das publicações.

Filma, edita e publica

Conglomerados de comunicação do Brasil têm estúdios que não só publicam conteúdo patrocinado. Possuem estratégias para a criação de projetos que envolvem negociações e orientações às corporações atendidas. 

A Folha tem o Estúdio Folha, que propõe as opções de publicidades em formato impresso e digital, além de eventos e vídeos para as empresas. O Blue Studio, do Estado de S. Paulo, oferece eventos, podcasts, mídias sociais e publicidades pagas. O Poder360 tem o Poder Conteúdo Patrocinado e a Veja, o Abril Branded Content. A Globo e o Valor Econômico contam a G.lab, que já trabalhou com a Braskem, a Coca-Cola e a Unilever, entre outras multinacionais de produtos nocivos à saúde. 

O valor desses conteúdos patrocinados – principalmente dos seminários – não é de conhecimento do público em geral. O Estúdio Folha vende anúncios de uma página inteira nos dias úteis, na versão impressa, por R$ 565.968, e meia página por R$ 282.984. Isso significa que a BAT Brasil investiu mais de R$ 1,4 milhão apenas para quatro anúncios pagos na Folha. Ou seja, para patrocinar quatro do total de 37 conteúdos patrocinados a BAT Brasil gastou mais de R$1,4 milhão.

Uma busca no YouTube com as palavras-chave “cigarro eletrônico Folha de S. Paulo” traz o seminário patrocinado pela BAT como primeiro resultado

As conexões entre o poder privado de empresas que vendem produtos reconhecidamente maléficos à saúde e a mídia corporativa vão além do conteúdo patrocinado e dos artigos de opinião: o 2º Encontro Folha de Jornalismo, realizado em 2018, foi patrocinado pela BAT Brasil, que também convidou o jornalista Gabriel Alves, idem pela Folha, para ir a Washington, em 2018, escrever uma matéria sobre a regulamentação dos vapes, comparando a situação dos Estados Unidos com a do Brasil. 

Óbvio que a BAT não faria esses movimentos sem pedir algo em troca. Essas ações visam ao networking para manter “boas relações” e influência nas publicações para a circulação de conteúdo favorável à indústria. 

“A mídia pró cigarros eletrônicos tem papel importante, inclusive para influenciar jovens na experimentação do produto e iniciação do tabagismo. E para estimular fumantes a migrarem do cigarro convencional para os cigarros eletrônicos,” explica Vera Luiza, a secretária executiva da Conicq. “A indústria do tabaco pode utilizar o conteúdo patrocinado para criar uma imagem positiva do cigarro eletrônico, apresentando-o como uma alternativa mais saudável ao cigarro tradicional. O conteúdo pode ter informações enganosas e usar termos que, de certa forma, estimulam o uso do produto, como “livre de nicotina”, “não causa dependência”, “alternativa segura”, “novidade”.”

Não à toa, são essas as palavras usadas pelo lobista da BAT, Lauro Anhezini Júnior, citado em matéria patrocinada da Veja em dezembro de 2023. “[Se] a pessoa não quer ou não consegue [parar de fumar], o cigarro eletrônico regulamentado é uma alternativa de menor risco”. 

A matéria não apresenta nenhuma opinião médica contrária, apenas citando Lauro, Alessandra Bastos e outras vozes aliadas à indústria, como a da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), que se tornou parceira das corporações do fumo ao apresentar um projeto de lei sobre a liberação do vape em outubro do ano passado.

Com cigarros convencionais ou eletrônicos, jovens são historicamente público-alvo da desinformação disseminada pela indústria do tabaco Foto: Ruslan Alekso/Pexels

Da desinformação à notícia falsa

As vozes de parceiros institucionais da BAT Brasil, em formato de organizações da sociedade civil, se dizem preocupadas com temas econômicos e de saúde no país.  Jaime Recena, diretor de Relações Governamentais da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), participou de um seminário patrocinado do Poder360 “Cigarros eletrônicos: por que rever a proibição é fundamental?” sem nenhuma menção da parceria entre a BAT e a Abrasel. A proximidade também não foi mencionada nas sete matérias de divulgação (não patrocinadas) publicadas pelo jornal sobre o assunto. A fala ganhou destaque em um desses conteúdos, com a manchete “Regulamentar cigarros eletrônicos é solução, diz diretor da Abrasel”

Como uma pesquisa de 2018 mostrou, 70% dos brasileiros só leem as manchetes e não matérias completas. Publicar uma manchete sem explicar os interesses financeiros atrás dela, já é uma forma de desinformação. Outras matérias (patrocinadas e não patrocinadas) entrevistam representantes do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) e da Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF), parceiros importantes da BAT, sem mencionar essa ligação com a empresa.

Propagandista de discursos sobre combate à falsificação de produtos, dos benefícios para a economia, e da redução de danos para fumantes, a BAT se lança sobre o setor das organizações da sociedade civil, disputando espaços com as entidades que têm compromisso real e legítimo com a saúde pública. 

“As empresas tabaqueiras afirmam que querem fazer parte da solução para a epidemia global do tabaco – um problema que é alimentado e impulsionado, exclusivamente, pelas maiores empresas tabaqueiras do mundo,” critica Caroline Renzulli, da Campaign for Tobacco-Free Kids.

Também para fingir essa preocupação, a BAT Brasil tem se aproveitado do termo “redução de danos”, terapia utilizada para tratamentos diversos que supostamente oferecem produtos menos prejudiciais à saúde.

Encomendas 

 “A indústria do tabaco tem feito uso [do conceito de redução de danos] para justificar a introdução dos cigarros eletrônicos no mercado, associada à promoção do consumo,” explica Vera Luiza, da Coniqc. “Cabe ressaltar que não é a primeira vez que argumentos desse tipo foram feitos por tais empresas, tomando como exemplo a introdução dos chamados cigarros de baixos teores, cujos supostos benefícios em reduzir riscos e danos foram contestados por evidências científicas, posteriormente.”

Segundo Caroline, “as empresas tabaqueiras, como a British American Tobacco, não estão preocupadas com a saúde. Elas estão preocupadas com resultados financeiros, e viciando mais pessoas em produtos de tabaco e nicotina.”

Para seguir com a estratégia antiga de gerar dúvidas científicas para vender, a BAT  também produz ou encomenda os estudos. Esses foram citados em onze matérias – patrocinadas e não patrocinadas – entre 2017 e 2023, e nos seminários do Estadão e do Poder360. Ter estudos bancados pela empresa presentes em publicações pagas pela BAT é esperado. O seminário do Poder360, por exemplo, faz referência a um estudo cujo autor principal é integrante da British American Tobacco, sem mencionar essa conexão.

A matéria “Consumo de vapes cresce no Brasil; falta de regulamentação aumenta riscos à saúde”, publicada pela CNN, em setembro de 2023, apesar de não ser patrocinada pela empresa, entrevista Lauro e Alessandra. mencionando “um estudo da Federação das Indústrias de Minas Gerais (FIEMG) que mostra que, com a fabricação interna e comércio legal, ‘pode’ haver um aumento na arrecadação de impostos líquidos no setor de fumo, chegando a quase R$ 136 milhões por ano.” Esse estudo foi encomendado pela BAT. E outras cinco matérias e o seminário da Globo fazem referência ao material sem avisar quem o encomendou.

A empresa tabaqueira parece até ser considerada uma fonte confiável por alguns veículos, já que as estimativas dela são correntemente mencionadas em conteúdos. Em duas matérias do Poder360 é dito que as estimativas da BAT Brasil consideram que 2 milhões de brasileiros consomem os cigarros eletrônicos não legais. Outra estimativa da empresa, de que 16,8% da população acima dos 18 anos já experimentou o vape, aparece em outras duas matérias do Poder360. Tais números foram citados sem nenhuma fonte, nenhum estudo de interesse público que sirva de base, e nenhuma perspectiva contrária 

A estratégia de desinformação científica da indústria de tabaco não é nova. De fato, esse setor industrial pode ser visto como um dos pioneiros das fake news. Desde que os primeiros estudos começaram a mostrar a ligação entre o cigarro e o câncer nos anos 1940, a indústria  passou a financiar pesquisadores e pesquisas que manipularam a ciência para gerar dúvidas sobre os efeitos nocivos. 

“As empresas tabaqueiras promoveram a desinformação durante décadas, confundindo a verdade e mentindo ao público e aos legisladores sobre os malefícios do fumo e a dependência dos produtos,” diz Caroline, Tobacco Free Kids. “O marketing dos cigarros eletrônicos utiliza muitas das mesmas estratégias utilizadas pela indústria do tabaco para chegar nas crianças [com os cigarros convencionais] durante décadas.”

Apesar dos seminários serem chamados de debates pelos organizadores ou participantes, nenhum deles ouviu a voz de especialistas que se posicionou contra a indústria sobre o vape. Os debatedores eram sempre integrantes da BAT Brasil, representantes de outras entidades parceiras, como a Abrasel, e especialistas com posicionamentos favoráveis à corporação. 

Todos os seminários também incluíram um debatedor que tinha parado de fumar o cigarro tradicional usando o vape, para falar sobre a experiência. Curiosamente, não incluíram ninguém que começou a fumar com o cigarro eletrônico, ou quem foi do vape para o cigarro tradicional, ou quem fuma os dois ao mesmo tempo. 

“O que a British American Tobacco não te dirá é que o uso de cigarros eletrônicos pelos jovens está aumentando rapidamente em muitos países em todo o mundo, porque esses produtos estão sendo comercializados agressivamente para crianças em sabores chamativos,” de acordo com Caroline Renzulli.

Debater a regulamentação dos DEFs é necessário, Porém, a discussão não deveria ser dominada por executivos das corporações, seja a BAT ou não, que representam os interesses de empresas que visam ao lucro com a liberação. 

Nesse ponto, talvez possamos concordar, em certa medida, com o lobista da BAT, Lauro Anhezini, que afirmou no seminário do Poder360: “A gente precisa aprofundar o debate com alta qualidade de revisão científica.” 

Sim, mas “qualidade de revisão científica” não combina com a presença da indústria ao centro da mesa de negociações.

Nota da corporação

Em nota enviada ao Joio após a publicação desta reportagem, a assessoria de comunicação da fabricante de produtos para fumar enfatizou que o uso de recursos “jornalísticos” usados em parceria com grupos de comunicação “têm por objetivo tão somente a divulgação de informações e o fomento ao debate sobre regulamentação dos cigarros eletrônicos”.

O texto também destaca que:  “O diálogo da BAT Brasil e de seus executivos é aberto e republicano, com todos os atores sociais envolvidos neste tema tão importante para a sociedade brasileira.”

Abaixo, você pode ler nota da empresa, na íntegra.

“Em relação à matéria “A ex-Souza Cruz de mãos dadas com grupos de comunicação na defesa dos cigarros eletrônicos”, a BAT Brasil informa que todos os projetos de conteúdo institucional da companhia e publicados em veículos da imprensa brasileira, bem como a participação de seus executivos no debate público, cumprem toda legislação aplicável. Tais projetos são expressão do direito constitucional à liberdade de expressão e estão baseados na importância da livre expressão de ideias e informações para a formação de uma opinião pública livre, crítica e independente.

Os conteúdos jornalísticos têm por objetivo tão somente a divulgação de informações e o fomento ao debate sobre regulamentação dos cigarros eletrônicos, que se encontra na agenda regulatória de diversos órgãos e entidades de vigilância sanitária no Brasil e no exterior, bem como no Congresso Nacional. Não há qualquer conteúdo que promova marcas de produtos derivados de tabaco ou de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar, estando, portanto, em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro, algo que o mercado ilegal não cumpre e deveria ser foco de atenção do debate e da mídia.

Por fim, vale ressaltar que todas as declarações do executivo Lauro Anhezini Junior, diretor de assuntos científicos e regulatórios da BAT Brasil, advogado de formação e jamais se colocando como profissional de saúde, representando a empresa ou o setor, são sempre embasadas e referenciadas em dados científicos e econômicos públicos e que podem ser consultados por qualquer interessado. O diálogo da BAT Brasil e de seus executivos é aberto e republicano, com todos os atores sociais envolvidos neste tema tão importante para a sociedade brasileira.”

*Esta reportagem foi atualizada, com a inclusão da nota da BAT Brasil, no dia 9 de abril de 2024, às 14h41.

*Ao contrário do que foi mencionado nesta matéria quando da publicação, a advogada Carolina Fidalgo não trabalhou na Anvisa. Ao contrário, ela presta serviços a BAT Brasil, encabeçando ações contrárias a posições da agência. Atualização feita às 15h38 de 9 de abril de 2024.

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