Fabricantes de cigarros e de produtos ultraprocessados estão entre os parceiros de instituto fundado por Bernard Appy, figura proeminente do governo Lula
Secretário especial da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda do governo Lula, o economista Bernard Appy tem, neste ano, o compromisso prioritário de elaborar um projeto de legislação para a regulamentação da proposta de reforma aprovada no Congresso Nacional em 2023.
Um dos pontos mais aguardados é o imposto seletivo, que servirá para aumentar as alíquotas de produtos que são prejudiciais à saúde das pessoas e ao meio ambiente. E, neste tema, Appy andou mal acompanhado nos últimos anos.
Ele foi um dos criadores, em 2015, do Centro de Cidadania Fiscal. A entidade se apresenta como “um think tank independente”, que atua para “desenvolver estudos e propostas que ajudem a simplificar e aprimorar o sistema tributário brasileiro e o modelo de gestão fiscal do país”. Entre as propostas, segundo texto do site institucional, aparecem os objetivos de “garantir o uso sustentável dos recursos naturais” e “reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
O instituto é financiado por corporações controversas: British American Tobacco (BAT), mais conhecida pelo antigo nome de Souza Cruz, Ambev, Coca-Cola, Raízen, Carrefour, Braskem, Huawei, Itaú, Natura, Mercado Livre, 99, Vale e Votorantim. Pelo menos as seis primeiras têm interesse direto no imposto seletivo. O tabaco, por exemplo, é considerado presença certa na lista de produtos que terão a incidência da cobrança.
No entanto, ainda há dúvidas de como o imposto será aplicado, já que faltam a decisão sobre o valor da alíquota e de como se dará a cobrança. Esses pontos são de grande interesse da BAT e de outras corporações do tabaco, como a reportagem do Joio já mostrou, casos da Philip Morris e da Japan Tobacco International.
As três megaempresas têm diversas estratégias para tentar reduzir impostos, como a defesa da criação de “marcas de combate” para disputar preço com o cigarro contrabandeado do Paraguai.
Apesar da autodeclarada independência, Appy, quando esteve à frente do CCiF, se reunia quinzenalmente com as empresas que bancam a entidade. Na época em que ele liderava o centro, os apoiadores eram BAT, Ambev, Vale, Itaú, Braskem, Votorantim, Natura e Huawei.
A proximidade do economista com as empresas do setor bancário e industrial era vista com preocupação por representantes de outros setores da economia, antes mesmo de Appy ir para o governo. Isso porque, algumas das propostas do atual secretário da Reforma Tributária já faziam parte do projeto apresentado pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP), que sofreu vários reveses no Congresso, apesar de contar com o apoio, no início da legislatura passada, do então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.
Na eleição presidencial de 2018, Bernard Appy já era protagonista na discussão da reforma e conseguiu levar propostas para sete dos candidatos, num movimento bastante elástico do ponto de vista ideológico: Marina Silva (Rede), Ciro Gomes (PDT), Geraldo Alckmin (PSDB), Guilherme Boulos (PSOL), Manuela D’Ávila (PCdoB), João Amoêdo (Novo) e Fernando Haddad (PT).
Apesar de ter sido procurado por alguns desses candidatos, em geral, a via era inversa: a iniciativa de contato partia do próprio CCiF. Uma forma de apresentar o instituto aos concorrentes à presidência.
A circulação pela porta giratória que liga as dimensões do setor público e do poder privado está longe de ser uma novidade na trajetória profissional do economista. Diferente disso, é uma característica do trabalho dele.
Os giros de Appy
Nascido em São Paulo em 1962, Bernard se formou na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), no início dos anos 1980, e fez mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Logo em seguida, foi pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e assessor econômico da liderança do Partido dos Trabalhadores (PT) na Câmara dos Deputados, agremiação à qual chegou a ser filiado.
Na década seguinte, era pesquisador do Instituto de Economia do Setor Público (IESP), da Fundação do Desenvolvimento Administrativo do Estado de São Paulo (Fundap) e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O mesmo período marca a entrada de Appy na iniciativa privada, como sócio fundador da LCA Consultores.
Em 2002, o economista retorna ao poder público para ter atuação destacada nos dois primeiros governos de Lula. Ele foi secretário executivo do Ministério da Fazenda entre 2003 e 2007, nas gestões dos ministros Antonio Palocci e Guido Mantega. Chegou, inclusive, a ser ministro interino. Vem dessa época a primeira proposta de reforma tributária que apresentou, mas o texto acabou rejeitado pelo Congresso.
Em 2009, meses depois de ter deixado o governo, Bernard tornou-se diretor de Pesquisas e Projetos de Negócios da Bovespa. Ele ainda retornou para a LCA, como diretor de políticas públicas e tributação, e colaborou na elaboração do programa econômico da candidatura presidencial da atual ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede), em 2014, antes de criar o CCiF.
Portas entre amigos
O caso de Appy não é isolado dentro do CCiF. Outro nome importante do centro também fez parte do governo petista. O atual vice-presidente, Nelson Machado, ocupou cargos no primeiro escalão dos governos anteriores de Lula, como ministro do Planejamento e Gestão, e da Previdência Social, antes de suceder Appy como número dois do Ministério da Fazenda.
Machado e Eurico Santi, atual presidente do centro, organizaram um livro de mais de 800 páginas a respeito de impostos sobre bens e serviços, em que tratam de aspectos da reforma tributária. Nele, defendem o imposto seletivo “incidente sobre bens e serviços geradores de externalidades negativas, como fumo e bebidas alcoólicas”.
“A proposta é que o imposto seletivo tenha incidência monofásica, sendo devido apenas na etapa de produção e nas importações”, explicam. O livro faz uma só menção à possibilidade de tributação de bebidas açucaradas, apesar de citar experiências da Bélgica e da Dinamarca nesse sentido.
A organização garante, no site institucional, não defender “o interesse econômico específico de qualquer empresa, grupo ou setor econômico, nem defenderá políticas que reduzam, de qualquer forma, o grau de concorrência na economia brasileira” e atuar “de forma independente e imparcial, tendo como referência os interesses difusos da população brasileira”. A entidade inclui, entre as atividades, a “interlocução com o Poder Executivo e o Poder Legislativo nas esferas Federal, Estadual e Municipal”.
Um olhar atento ao CCiF sob a lente do conflito interesses envolvendo entidades privadas e poder público explicita que desenvolver propostas de “interesses difusos da população brasileira” não combina com o apoio recebido da indústria de tabaco, associada a diversas doenças crônicas não transmissíveis e a milhões de mortes anualmente, além do óbvio impacto negativo que o setor causa nas contas públicas.
Sentar à mesa quinzenalmente com corporações que fabricam produtos notadamente maléficos à saúde e aos cofres públicos para pensar reformas para o país é tão contraditório quanto colocar a indústria armamentista em uma mesa de negociações com o intuito de parar guerras.
Ultraprocessados
Nem só de tabaco vive o CCiF. Os produtos ultraprocessados da indústria alimentícia também são motivo de atenção para as megampresas parceiras do instituto. Apoiadoras da entidade, Ambev e Coca-Cola têm dois motivos para preocupação com o imposto seletivo: a incidência sobre bebidas alcoólicas, como as cervejas produzidas por ambas, produtos candidatos ao tributo. Aí, entra, mais uma vez, a discussão de como será a cobrança e qual a alíquota.
O interesse não para nisso. Há, também, um tema mais controverso: a cobrança sobre alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas, das quais as duas corporações são grandes produtoras.
Os refrigerantes, chás e sucos adoçados, energéticos e preparados em pó fazem parte dessa lista. Apesar da defesa da inclusão feita pelos profissionais da saúde, sociedade civil, ativistas e pesquisadores, a situação é mais complicada quando comparada a outros produtos, como os derivados de tabaco e álcool.
O Carrefour e a Raízen – sócia da rede Oxxo, ao lado da Femsa, maior franquia da Coca-Cola no Brasil – têm presença relevante na venda de bebidas alcóolicas e de produtos ultraprocessados. Raízen e Braskem também tem atuação nas áreas de combustíveis fósseis e derivados de petróleo, candidatos a serem incluídos no novo tributo por serem prejudiciais ao meio ambiente.
Em comum, todos compõem o quadro de patrocinadores do Centro de Cidadania Fiscal fundado por Bernard Appy.
Resposta curta
Foi com um punhado de linhas que a assessoria da Secretaria Especial da Reforma Tributária respondeu à reportagem do Joio:
“O secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy se afastou de suas atividades no Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) antes de assumir a função. Desde então, as interações com empresas – sejam elas financiadoras ou não do CCiF – têm ocorrido em âmbito estritamente institucional, e a atuação da Secretaria tem se pautado exclusivamente em critérios técnicos”, diz a sintética reposta institucional.
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