Comissão de biossegurança deve dar sinal verde à semente transgênica da Monsanto que resiste a quatro venenos – dentre eles o glufosinato de amônio, banido na União Europeia
O Brasil está prestes a protagonizar um novo recorde mundial – e não é nas Olimpíadas. O país pode se tornar o primeiro a aprovar uma semente transgênica de soja resistente a uma combinação inédita de quatro agrotóxicos: 2,4-D, dicamba, mesotriona e glufosinato de amônio – este último banido na União Europeia.
Quem coloca o time em campo é a Monsanto, empresa da Bayer que é líder mundial em agrotóxicos e sementes transgênicas. Quem apita sobre a introdução da nova semente no Brasil é a CTNBio, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. A votação, que acontece nesta quinta-feira (1), pode ter um impacto e tanto: hoje, o país dedica 46 milhões de hectares à plantação de soja.
O pedido de liberação comercial da soja foi protocolado pela Monsanto na CTNBio em 26 de dezembro de 2022. De lá para cá, o processo passou pela Comissão Vegetal e Ambiental, com parecer favorável emitido pelos pesquisadores Zaira Hoffmam e Galdino Andrade em dezembro de 2023.
Em seguida, foi para a Comissão de Saúde Humana e Animal onde, de novo, não houve problemas: os pareceristas Caleb Guedes e Mariana Emerenciano deram sinal verde para a nova soja em junho deste ano.
Sem demora, o pedido da Monsanto estava pronto para ser examinado pelo plenário da CTNBio. Mas, chegando lá, um pedido de vistas impediu a votação.
“Os riscos me chamaram atenção e resolvi pedir para examinar”, conta Leonardo Melgarejo, membro da comissão indicado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Segundo ele, um dos pontos de atenção é o fato da tecnologia induzir quem está no campo a usar “uma mistura de agrotóxicos nunca antes vista”.
Isso porque os quatro agrotóxicos aos quais a semente é resistente devem ser misturados no momento da aplicação. Aplicar um produto por vez demandaria quatro pulverizações, o que representa mais custo com combustível e mão de obra. Para economizar, os agricultores devem fazer um coquetel com as quatro substâncias para efetuar apenas uma aplicação.
A prática, observa Melgarejo, está prevista em um manual do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). “Eles vão aplicar um coquetel sobre o qual não existem estudos de risco nem na Anvisa, nem no Ministério da Saúde”, constata. “Liberar uma tecnologia sem levar em consideração esse tipo de repercussão é perigoso.”
Voo cego
Outra coisa que chamou atenção de Melgarejo é que a Monsanto não quer apenas que essa semente transgênica seja liberada no Brasil. A empresa também não quer que haja vigilância de como a nova soja vai se comportar no campo. É como se uma farmacêutica pedisse a liberação de uma vacina, mas não quisesse que a vigilância sanitária monitorasse possíveis efeitos adversos na população.
Para Gabriel Fernandes, representante do Ministério do Meio Ambiente na comissão, a dispensa de monitoramento é problemática quando se trata da commodity mais plantada no país. “Estamos falando em 46 milhões de hectares”, observa. “A gente não sabe o efeito do OGM [organismo geneticamente modificado], das combinações possíveis, o que vai acontecer no médio e longo prazo – e nem a escala na qual essa tecnologia será adotada.”
Mas o pedido de dispensa de monitoramento após a liberação comercial não é algo raro. Pelo contrário. Segundo fontes ouvidas pelo Joio, a maior parte das empresas pede isso. E o CTNBio, via de regra, concede.
A opção passou a valer em 2021, em pleno governo Jair Bolsonaro, quando todas as vozes mais críticas ao modo como se analisam transgênicos no Brasil foram varridas da CTNBio.
Laboratório mundial
Tanto para Fernandes, quanto para Melgarejo há outra preocupação envolvendo a nova soja: o fato de a Monsanto ter baseado o seu pedido em estudos realizados na safra de 2020, em oito locais dos Estados Unidos – onde, aliás, a semente não foi liberada.
A empresa também usou dados da literatura científica para embasar o pedido de liberação, mas nada que mostrasse o comportamento da soja em campo exposta aos quatro tipos de agrotóxicos.
A CTNBio até solicitou que fossem apresentados estudos feitos no Brasil. “Eles fizeram esses estudos, mas parte deles não estão concluídos. Os riscos dessa planta não foram analisados, por exemplo, após aplicação dos herbicidas. Se foram, não temos esses dados ”, explica Melgarejo, que defende que para subsidiar a avaliação da soja com mais segurança, os estudos deveriam aplicar os quatro herbicidas aos quais ela é resistente e observar os impactos em humanos, animais e no meio ambiente.
Gabriel Fernandes complementa afirmando que, ao analisar o processo, viu que os estudos da soja foram feitos em apenas um ciclo agrícola – “período insuficiente”, avalia. “Não houve análise do risco dessa mistura de agrotóxicos, mas, sim, da aplicação dos agrotóxicos de forma individual.”
Fizemos contato com a assessoria de imprensa da Monsanto, perguntando se foram realizados testes no Brasil sobre o impacto da soja, levando em conta os quatro tipos de agrotóxicos a que ela é tolerante. A empresa respondeu que “centenas de estudos científicos foram realizados em laboratório e em campo, em vários ecossistemas, incluindo todas as regiões edafoclimáticas no Brasil relevantes para a cultura da soja.” O texto não cita se esses estudos de campo incluíram análises da soja após a aplicação da mistura de agrotóxicos.
Em outro trecho do e-mail, a empresa afirma que os testes demonstraram que a soja “é tão segura para o meio ambiente, saúde humana e animal quanto a sua versão convencional”. Você pode ler a resposta completa aqui.
Com a aprovação se confirmando, o Brasil será o laboratório desta nova bala de prata da produtividade da soja. Sendo o maior produtor da commodity no mundo, o país pode exercer pressão para que outros aprovem a tecnologia.
Estímulo a agrotóxicos proibidos na Europa
O glufosinato de amônio, um dos quatro agrotóxicos a que a soja transgênica é resistente, foi banido da União Europeia em 2009.
A decisão foi tomada com base em mais de 113 estudos, que mostraram que a substância causa intoxicações agudas e crônicas, provoca convulsões, perda da memória e alterações respiratórias. Inibe a fotossíntese, processo crucial para a sobrevivência das espécies vegetais e causa intoxicação por bioacumulação em animais.
Com a aprovação da soja transgênica, a demanda pelo agrotóxico pode aumentar. “Ao ampliarmos o uso desse produto no Brasil, nós vamos resolver o problema da indústria, que está perdendo mercado com a proibição na Europa”, observa Melgarejo. “É preciso que o Brasil examine com atenção os estudos realizados lá, que levaram à proibição, e os repita aqui.”
Glufosinato de amônio
Em 2022 – último ano com dados disponíveis – foram comercializadas
18,4 mil toneladas
do veneno no Brasil.
Hoje, há
42 produtos
registrados no Brasil contendo esse ingrediente ativo.
Mas o coquetel de quatro agrotóxicos ao qual a nova soja da Monsanto é resistente não é o único problema. Há um quinto elemento a ser levado em consideração, segundo os especialistas ouvidos pelo Joio.
Isso porque o plantio da soja é muitas vezes intercalado com o do milho para aumentar a rentabilidade da terra. Após a colheita da soja transgênica, será preciso limpar a área para receber o novo cultivo.
“Quando essa soja for colhida, vão cair grãos no chão e vão germinar, atrapalhando a próxima colheita. Eles estão recomendando um quinto agrotóxico para eliminar essas plantas invasoras: a atrazina”, informa Leonardo Melgarejo.
O agrotóxico foi banido na União Europeia em 2004, após dados obtidos via monitoramento ambiental mostrarem a contaminação das águas subterrâneas acima do nível considerado aceitável pelo bloco para agrotóxicos em geral.
“Estudos mostram que esse agrotóxico ainda hoje é encontrado nos rios europeus”, afirma Sônia Hess, professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A pesquisadora lembra que, no Brasil, a atrazina foi aprovada em 2003 – ou seja, um ano antes da sua proibição por lá. Novamente, ela observa, absorvemos uma boa fatia de mercado que a indústria perdeu com a proibição da venda do produto na maior parte da Europa.
Atrazina
Em 2022, foram comercializadas
77 mil toneladas
no Brasil.
Hoje, há
78 produtos comerciais
registrados no país com esse ingrediente ativo.
Uma ação do Ministério Público do Trabalho pede a
proibição
da atrazina no Brasil.
Onde isso vai parar?
Na maior parte das vezes, as combinações transgênicas têm como objetivo conferir a certas plantas – normalmente commodities – vantagens produtivas. Como, por exemplo, tolerância a herbicidas que combatem outras plantas (consideradas invasoras daquele monocultivo).
A ideia é que essas variedades transgênicas resistam a agrotóxicos capazes de eliminar as “pragas” sem afetar o seu desenvolvimento. Trocando em miúdos: vale tudo para não atrapalhar a safra e, consequentemente, os lucros.
E, nessa história, tanto a Monsanto quanto a soja têm protagonismo.
A empresa inventou o glifosato – herbicida mais consumido no mundo – e, mais tarde, sementes transgênicas resistentes ao glifosato. Depois disso, foi inventando sementes resistentes a várias coisas ao mesmo tempo.
A primeira soja desse tipo foi aprovada no Brasil em 2010, a pedido da Monsanto. Era resistente ao herbicida e a insetos – no jargão dos especialistas, tinha dois “eventos transgênicos sobrepostos” ou “piramidações”.
Em 2018, a Monsanto avançou duas casas e apresentou à CTNBio a Intacta2Xtend, uma soja com uma combinação de quatro eventos transgênicos. Este ano, a BASF superou a Monsanto e aprovou uma patente com cinco eventos transgênicos. Pensando nessa linha do tempo, é o caso de nos perguntarmos: onde vamos parar? Já há um milho da Sygenta com dez eventos transgênicos sobrepostos regulamentado no Canadá, Japão, Singapura, Coreia do Sul, Taiwan e Tailândia. O céu é o limite?
“Essas piramidações podem não ter fim, pois é natural que as plantas adquiram resistência”, responde Gabriel Fernandes.
Para especialistas como ele, essas tecnologias têm efeito de curta duração. Por isso, são facilmente substituídas sempre que as plantas adquirem resistência a determinados tipos de herbicidas.
“Entre 2003 e 2023, 12 espécies espontâneas desenvolveram resistência ao glifosato em áreas de soja, sendo nove delas com resistência múltipla a até quatro herbicidas diferentes. Dos 12 casos de resistência em soja, dez ocorrem também em milho”, informa Fernandes. “Ou seja: é a vida útil da tecnologia se esgotando e deixando graves problemas para trás.”
Criar variedades de soja em laboratório, com modificações genéticas combinadas, se tornou a principal alternativa para esticar a corda de um sistema alimentar baseado na monocultura em larga escala.
O grande problema é que há uma discrepância entre o avanço das soluções para manter a produtividade e a realização de pesquisas sobre os efeitos que esses transgênicos bebedores de agrotóxicos provocam – em nós, nos animais e no meio ambiente.