Guia completa dez anos, mas educação alimentar não é realidade no Brasil

Apesar de ter uma diretriz que é referência e um instrumento de apoio à educação alimentar, governo federal não materializa as orientações em políticas de formação de educadores e na inclusão da classificação NOVA em materiais didáticos

A versão atual do Guia Alimentar para a População Brasileira completa dez anos em 2024. Neste período, foram lançados 12 editais do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), da educação infantil ao ensino médio. Em nenhum deles foram incluídos materiais didáticos para a Educação Alimentar e Nutricional (EAN), que promovessem os conceitos do Guia e facilitassem a formação de educadores.

Essa lacuna motivou a elaboração de uma recomendação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) ao Ministério da Educação (MEC), no início de setembro. O comitê pediu que o MEC incorpore esses materiais nos editais do PNLD, por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O tema foi deliberado pelo Consea durante uma plenária em agosto.

“Talvez um dos principais desafios para que este tema seja abordado de maneira abrangente e qualificada nas escolas seja a predominância de uma pedagogia fragmentada, que tem enormes desafios para integrar e articular conhecimentos. É necessária uma pedagogia que estimule a leitura da realidade, articule conteúdos e proporcione uma aprendizagem ativa, criativa e problematizadora” avalia Elisabetta Recine, presidenta do Consea. 

A recomendação do conselho afirma que a EAN foi incluída como tema transversal no currículo escolar da educação básica na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 2018. A nota também cita um decreto assinado pelo presidente Lula, em dezembro de 2023, que destaca a educação alimentar como uma das ações de promoção da alimentação adequada e saudável no ambiente escolar.

Os editais lançados pelo PNLD este ano, para livros que serão utilizados nas escolas de educação infantil e do ensino médio entre 2026 e 2029, mencionam que as obras não podem ferir as recomendações do Guia Alimentar. No entanto, não trazem a EAN, as culturas e os sistemas alimentares para a lista de conteúdos necessários.

O edital vigente para o ensino fundamental foi lançado em 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro, para materiais didáticos que serão utilizados até 2027. Há uma menção à Lei de Alimentação Escolar, mas não ao Guia Alimentar.

O processo de inscrição, avaliação e contratação das editoras no PNLD é demorado e dura em média dois anos. Por essa razão, os editais divulgados em 2024 são para livros que serão distribuídos em 2026. Isso acende um ponto de alerta na recomendação do Consea, já que, mesmo que o MEC prossiga com a inclusão da EAN nos próximos editais, só será possível ver o tema nos livros e materiais didáticos da rede pública de ensino a partir de 2027.

Da forma como as estruturas são hoje, os educadores precisariam dar conta das demandas das disciplinas tradicionais e também daquelas que dialogam com a vida cotidiana, como alimentação, violência e educação financeira. Mas como exigir que um educador sobrecarregado vá em busca, sozinho, de conhecimentos e ferramentas para educação alimentar?

A recomendação do Consea aponta para a necessidade de o MEC desenvolver estratégias que apoiem e encorajem o uso de materiais didáticos de EAN para formação de professores, e assim contribuir para sua inclusão no currículo escolar. “Este caminho se relaciona com os materiais didáticos e com o apoio aos profissionais não apenas nos aspectos pedagógicos, mas também nas condições de trabalho”, diz Elisabetta. 

Educação alimentar segue no papel 

Órgãos ligados ao governo federal tentam avançar com a implementação da educação alimentar há anos, mas interrupções entre mandatos presidenciais atrasam a discussão, a exemplo da dissolução do Consea, em janeiro de 2019. A EAN segue, então, sem uma integração efetiva aos currículos escolares e às atividades pedagógicas. 

Tampouco há uma conexão clara entre o que se vê nas escolas e o que poderia ser apresentado à população adulta, que já não frequenta as salas de aula, mas que poderia ser introduzida à educação alimentar em Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou no Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Em 2012, o Marco de EAN, elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), estabeleceu a educação alimentar e nutricional como um campo de conhecimento e de prática contínua e permanente, transdisciplinar, intersetorial e multiprofissional. No papel, o objetivo foi promover o acesso a conhecimento alimentar que gerasse escolhas e hábitos alimentares saudáveis na população. 

“O Marco de EAN traz muito a importância de metodologias ativas para trabalhar esse tema e a importância dos saberes coletivos. E de olharmos para a EAN não como uma propriedade do nutricionista, mas que todo ator social se entenda como alguém que se alimenta, que tem conhecimento sobre alimentação adequada e saudável e que é capaz de contribuir para esse debate”, diz Giorgia Russo, integrante do Comitê Consultivo do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) e consultora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec).

Passados mais de dez anos do Marco de EAN, a realidade aponta que a promoção da alimentação adequada e saudável ainda não decolou. Um estudo de pesquisadores do Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura (Palin) da Fiocruz Brasília, divulgado durante o Congresso Internacional sobre Obesidade, em junho, estima um salto no índice de sobrepeso e obesidade entre adultos brasileiros, de 56% em 2023 para 75% em 2044. Em outras palavras, três quartos da população estará acima do peso em 20 anos. 

A dieta rica em açúcares, gorduras e carboidratos, presentes em grandes quantidades nos ultraprocessados, é a principal responsável pelo aumento da obesidade. O estudo da Fiocruz estima que teremos 10,9 milhões de novos casos de doenças crônicas e 1,2 milhão de mortes atribuíveis ao sobrepeso e à obesidade até 2044.

Aliada ao Guia, a educação alimentar pode ser um dos caminhos de contenção dos ultraprocessados nas dietas infantis. Ainda mais diante do aumento no consumo desses produtos, que já representam quase 25% das calorias consumidas por crianças brasileiras de até cinco anos, segundo relatório do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani) divulgado em setembro.

Por sua vez, as editoras de livros didáticos podem ter um papel importante na promoção da EAN, inclusive se adiantando à sua aparição nos editais do PNLD. As obras didáticas precisam ser finalizadas antes da inscrição junto ao FNDE e podem abarcar as recomendações do Guia Alimentar, além dos conteúdos já previstos nas diretrizes para a educação básica. 

Maria Alvim, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), desenvolvia estudos transversais sobre educação alimentar quando foi convidada pela Editora Saíra, de São Paulo, para escrever obras que tratassem do tema. Ela é autora de quatro livros sobre alimentação para crianças, sendo dois didáticos e dois paradidáticos, que trazem as recomendações do Guia Alimentar e a classificação NOVA, publicados entre 2022 e 2024. 

Os paradidáticos “Ultra-o-quê?” e “Comer direito é um direito!” foram aprovados em um edital da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em 2022, mas a autora conta que a prefeitura não comprou as obras. Portanto, os livros nunca chegaram à rede pública de ensino. 

O edital pedia a inscrição de “livros impressos, desde que não sejam literários, que proponham trabalho pedagógico relacionado à Matriz de Saberes do Currículo da Cidade e aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e às Ações de Educação Alimentar e Nutricional”. Projetos de recursos audiovisuais, jogos de tabuleiro, brinquedos educativos e propostas de ensino no formato virtual também poderiam concorrer. 

A reportagem procurou a prefeitura de São Paulo para entender que objetos aprovados no edital haviam sido comprados e se há previsão de aquisição dos demais materiais, a exemplo dos livros paradidáticos citados no texto. A Secretaria Municipal de Educação informou que desenvolve ações de EAN em toda a rede de ensino, mas não respondeu sobre a compra dos itens aprovados no edital.

Livros em descompasso

A inconsistência da presença da EAN nos materiais didáticos não é observada apenas em São Paulo. A pedido do Joio, pesquisadoras do Centro de Memória e Pesquisa História da Alfabetização, Leitura, Escrita e dos Livros Escolares – Hisales, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), fizeram um levantamento em livros didáticos disponíveis no acervo para avaliar a presença de conceitos que contrariam recomendações do Guia. 

Um livro de Língua Portuguesa, dirigido a estudantes do 2º ano do ensino fundamental e publicado em 2022 pela SAS Educação, por exemplo, trazia uma foto da série de Gregg Segal sobre hábitos alimentares de crianças em diferentes países. Uma oportunidade para trazer para a sala de aula a classificação NOVA, além de discussões sobre culturas alimentares e desigualdades, certo? No entanto, o mesmo livro apresentou, poucas páginas depois, uma pirâmide de alimentos – conceito considerado ultrapassado pelo Guia Alimentar.

“O grande problema da pirâmide alimentar como um instrumento de educação é que ela coloca no mesmo grupo elementos que são muito diferentes sob a perspectiva do grau de processamento. A batata-doce pode aparecer junto ao biscoito recheado, o que é uma aberração. Educar um aluno para pensar com essa perspectiva de que tudo é fonte de carboidrato, independente do grau de processamento, é muito equivocado”, avalia Maria Alvim.

Para ela, faz sentido estimular que os jovens pensem na composição de um prato de comida e em alimentos regionais, temas ignorados pela pirâmide alimentar. “A pirâmide é voltada para a alimentação ocidental, centrada nos Estados Unidos, o que não é coerente com as práticas alimentares tradicionais dos brasileiros”, reforça.

Os livros didáticos de Ciências e Natureza costumam trazer a alimentação como parte da saúde individual e seu impacto no uso de recursos naturais, como água e solo. “Há textos que problematizam as questões dos alimentos e da saúde, como a obesidade infantil e o alto consumo de calorias e carboidratos encontrados nos ultraprocessados. Um fato que não foi possível verificar é a questão da alimentação como fator cultural, aspecto que ainda queremos aprofundar”, explica Vania Grim Thies, uma das coordenadoras do Hisales. 

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece que sistemas e redes de ensino têm autonomia para incorporar a EAN aos currículos e às propostas pedagógicas, como um dos temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala local, regional e global. O texto ainda fala que isso deve ser feito, preferencialmente, de forma transversal e integradora. Mas não apresenta exemplos de como isso pode ser realizado.

Para a educação infantil, a alimentação aparece na BNCC atrelada aos cuidados pessoais, junto a higiene, conforto e aparência. No caso do currículo do ensino fundamental, a recomendação é discutir a “participação do ser humano nas cadeias alimentares e como elemento modificador do ambiente”. 

Aparecem a nutrição do organismo e os hábitos alimentares, em um contexto de aprendizagem sobre os sistemas digestório, respiratório e circulatório. Portanto, do ponto de vista da saúde. A abordagem sociocultural da alimentação não está evidente na BNCC, com a transversalidade recomendada pelo Marco de EAN.

Primeiro, a educação para educadores

Um dos desafios para firmar a EAN nos currículos é a formação de educadores. Além de professores, entram nessa lista cozinheiras, nutricionistas e gestores escolares. “A cozinheira escolar, que é uma profissional extremamente ligada à alimentação, com conhecimentos preciosos, poderia ser um ator social de EAN magnífico. É importante que aconteça um certo empoderamento para que elas ocupem esse lugar na educação alimentar, de ir a uma sala de aula e falar: ‘Eu tenho muito a dizer sobre isso’”, ressalta Giorgia Russo.

Segundo ela, há iniciativas em curso para a formação pedagógica em EAN, mas ainda muito dependentes dos esforços de instituições da sociedade civil. Na cidade de São Paulo, Giorgia cita o trabalho do Instituto Comida e Cultura na formação de professores e cozinheiras, além de cursos realizados pelo Sesc. “Trazer a EAN para dentro da sala de aula é uma novidade para a educação, além de ser algo que o educador não se sente pronto para promover”, diz.

No Rio de Janeiro, o Idec se uniu ao Unicef para criar um documento orientador para gestores e educadores sobre como promover a alimentação saudável nas escolas. O guia, intitulado “Promovendo um Ambiente Alimentar Escolar Saudável: Apoio à Gestão Local”, foi lançado em 2023 e está disponível de forma gratuita. 

Um ponto interessante no debate sobre a formação de educadores em EAN reside na própria alimentação escolar. “Por muito tempo, a alimentação escolar foi vista pela educação como um serviço escolar, assim como o transporte e o uniforme. E não como algo que está ali para educar”, continua a consultora do Idec. Uma nova abordagem pedagógica, que una EAN e alimentação escolar, pode abrir espaço para a participação ativa das cozinheiras enquanto educadoras alimentares.

“Quando você chega com os aspectos do Guia Alimentar para as cozinheiras, faz muito sentido para elas porque são pessoas que ainda têm uma conexão muito forte com a comida e que conseguem levar esses conceitos para outras pessoas. O que, às vezes, não acontece com os professores, que podem estar muito desconectados do que é ‘comida de verdade’”, completa Giorgia. 

Dentro e fora dos muros da escola

O impacto da educação alimentar não acaba na escola, assim como observa-se em qualquer processo de aprendizado e de desenvolvimento de senso crítico. O ambiente escolar se expande para a comunidade em que está inserido, seja por meio de atividades pensadas para o público externo, como um dia de escola aberta, por exemplo, ou com o envolvimento das famílias em deveres de casa.

Há relatos do impacto da EAN em familiares, que passam a pedir receitas que foram preparadas em cozinhas pedagógicas ou que buscam informações sobre alimentos nativos após comentários das crianças em casa. Mas, como não existe uma sistematização da educação alimentar pelo MEC, ou mesmo pela maior parte dos estados e municípios, é difícil mensurar esse impacto. 

Apesar de o país ainda patinar em políticas públicas de EAN e de promoção da alimentação saudável no entorno das escolas, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) já garante que, pelo menos, a merenda ofereça refeições adequadas aos estudantes. A exceção é a presença da margarina, um ultraprocessado, entre os itens permitidos para compras do Pnae. 

O FNDE informou ao Joio que está trabalhando na elaboração de uma nota técnica sobre a inclusão da EAN no currículo escolar. O órgão destacou também que, em 2023, foi firmado o Acordo de Cooperação Técnica (ACT) nº 05/2023 entre o MEC, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), o MDS, o Ministério da Saúde (MS) e o FNDE para fortalecer ações de promoção de uma alimentação adequada e saudável no ambiente escolar, com ênfase no PNAE e no apoio à agricultura familiar.

No caso da rede particular, que não está coberta pelas diretrizes do PNAE, os entraves para a EAN começam já nas lanchonetes das escolas. Um exemplo é o Colégio Mackenzie, uma escola de elite de São Paulo. As mensalidades começam em R$ 3.096 para a Educação Infantil e chegam a R$ 4.257 no Ensino Médio (valores de 2024). No tour disponível do site do colégio, é possível passear pelos diferentes espaços da escola. 

Na praça de alimentação do Ensino Fundamental, há uma lanchonete. Já no espaço acessado por estudantes do Ensino Médio, são encontradas unidades da Bob’s, da padaria Benjamin e do Rei do Mate, além de uma loja que vende sorvetes Nestlé e outra dedicada apenas a doces, a Candy Place.

Giorgia Russo, do Idec, lembra que não é possível implementar a EAN com sucesso sem atrelar outras políticas a ela, inclusive dando atenção especial à alimentação que é ofertada aos estudantes dentro das escolas. “É importante pensar na regulamentação das cantinas, e não na sua proibição, já que isso pode favorecer pontos alternativos de venda no entorno, que costumam ofertar alimentos muito mais inadequados”, pondera.

Praça de alimentação do Mackenzie. Créditos: Reprodução site institucional.

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